O Brasil sempre fez vista grossa para as tensões raciais no País. Mas o preconceito é real e são necessárias medidas concretas, como as cotas nas universidades, para reduzir o abismo social existente
CARTÃO VERMELHO
Camila Pitanga e Lázaro Ramos teriam sido vetados pela Fifa para fazer o sorteio da Copa
Na África do Sul, a política
segregacionista do apartheid, combatida por Nelson Mandela, oprimiu a
população negra do país de 1948 ao início da década de 1990.
Abertamente racista, o regime africano não encontrou muitos ecos no
Brasil, onde a ideia da democracia racial – a convivência pacífica
entre negros e brancos – está firmemente cravada no imaginário popular.
Essa tolerância à brasileira, no entanto, é apenas uma fachada para
esconder a discriminação que os descendentes de africanos sofrem por
aqui. Segundo a pesquisadora Eugenia Portela de Siqueira Marques, que
fez doutorado sobre cotas raciais na Universidade Federal de São Carlos
(Ufscar), existe no Brasil um “racismo cordial”, em que as pessoas não
explicitam seus preconceitos. Para ela, apesar de não haver no País
embates diretos como os da África do Sul, a discriminação se manifesta
nas diferenças de riqueza e renda, principalmente. “A desigualdade é
gritante”, afirma. Já Evandro Piza Duarte, professor de direito da
Universidade de Brasília (UnB), afirma que a democracia racial
brasileira é um mito que fez com que ocultássemos as diversas formas de
segregação que aconteceram por aqui. “Até os anos 1970, por exemplo,
existiam no Brasil clubes onde os negros não entravam”, diz.
Os dois especialistas não são os únicos a
afirmar que existe um preconceito racial velado no País. Um caso que
ganhou repercussão nas mídias sociais no mês passado foi o suposto
pedido da Fifa para substituir os atores negros Lázaro Ramos e Camila
Pitanga como apresentadores do sorteio da Copa do Mundo. A notícia de
que a organização teria preferido os atores Fernanda Lima e Rodrigo
Hilbert, ambos brancos, provocou uma onda de manifestações nas redes
sociais acusando a entidade de racismo. “A Fifa precisa estar mais
capacitada para entender a diversidade do mundo”, afirmou frei David
Santos, diretor da ONG Educafro. “Foi um caso de racismo explícito e
pedimos que seja feito um pedido de desculpas”, diz o ativista. A
entidade se justificou, afirmando que não vetou a participação dos
atores. Em um comunicado, a organização explicou que quem propõe os
apresentadores é a agência GEO, que pertence às organizações Globo.
“Dependemos do país-sede e os artistas vão refletir a diversidade do
Brasil”, afirma o documento. A instituição declarou, ainda, que a
escolha dos novos apresentadores se deu pela experiência no lançamento
do logo da Copa do Mundo, em 2010, e no Sorteio Preliminar, em 2011. O
professor Evandro Piza ressalta que o evento pode ser ainda mais
excludente. “O preconceito se torna mais grave quando pensamos que a
Copa está sendo financiada com o dinheiro de pessoas que não serão
beneficiadas diretamente”, afirma. “Portanto, uma decisão como essa
chega a ser uma provocação à população brasileira.”
Outro recente caso polêmico é o do negro Rafael Braga Vieira, morador
de rua e primeiro condenado por ter participado das manifestações de
junho no Rio de Janeiro. Ele recebeu uma pena de cinco anos de prisão
pelo porte de duas garrafas que, segundo o juiz Guilherme Schilling
Pollo Duarte, da 32a. Vara Criminal, seriam usadas como bombas
incendiárias. De acordo com um laudo utilizado pelo magistrado para
justificar sua decisão, um dos recipientes possuía “mínima aptidão para
funcionar como coquetel molotov”, mas a defesa diz que as garrafas
continham água sanitária e desinfetante. Também afirma que, por serem
de plástico, os vasilhames não poderiam ser usados como arma. O juiz
considerou a versão “pueril e inverossímil”.
A ideia de que o racismo não existe no
Brasil se esvai definitivamente quando vem à tona o que aconteceu com a
gerente administrativa Maria Izabel Neiva, 37 anos. Ela foi impedida de
fazer a rematrícula do filho Lucas, 8 anos, em uma escola particular de
Guarulhos, na Grande São Paulo. Em depoimento à polícia, a diretora do
Colégio Cidade Jardim Cumbica afirmou que o cabelo do menino é “muito
grande e crespo”. A mãe de Lucas lembra que a diretora já havia chamado
a atenção do garoto em agosto, afirmando que o corte não seria adequado
à instituição de ensino. Na terça-feira 3, Maria Izabel foi informada
de que não havia mais vagas na escola para o garoto. “Quando a diretora
pede que o aluno se desfaça de sua estética afro, ela desrespeita a
diversidade cultural”, afirma frei David, da Educafro. “A tentativa de
fazer Lucas ficar parecido com os demais alunos da escola faz com que a
instituição pratique a ideologia do embranquecimento social. Atitudes
como essas refletem o racismo institucional, um dos problemas mais
graves do País. “São situações em que as organizações se tornam
incapazes de prover serviços para a população negra”, diz Felipe
Freitas, gerente de projetos da Secretaria de Políticas de Promoção da
Igualdade Racial.
Ainda hoje a sociedade brasileira remonta ao século passado em exemplos
de discriminação social. A antropóloga Júlia O’Donnel, autora do livro
“A Invenção de Copacabana: Cultura Urbana e Estilos de Vida no Rio de
Janeiro”, analisou o projeto de civilidade que se construiu na orla a
partir de sua ocupação pelos cariocas entre os anos 1890 e 1940. “A
praia era um espaço exclusivo das elites, nem ônibus circulavam em
Copacabana”, afirma ela. Do século passado até hoje, Júlia acredita que
o cenário não é muito diferente. O recente caso dos arrastões nas
praias cariocas revela que pessoas de classes desfavorecidas, em sua
maioria negras, podem ir à praia, porém são malvistas e maltratadas.
“Assusta a naturalização do preconceito nas redes sociais, que falam
que ‘é um absurdo ter ônibus para o Alemão de 15 em 15 minutos.” O
período da escravidão no Brasil deixou um legado sentido até hoje por
96,8 milhões de pessoas. “A tendência é que os adultos negros que
tiveram poucas oportunidades na educação tenham filhos também com um
baixo nível de escolaridade”, afirma Daniel Cerqueira, diretor de
Estudos e Políticas do Estado, das Instituições e da Democracia do
Ipea. “Se não houver políticas públicas para mitigar essas questões
históricas, o problema continua.”
Uma das soluções propostas pelos especialistas para resolver o problema
do racismo no País é a implantação de cotas em setores como a educação
e o funcionalismo público. A reserva de vagas nas universidades existe
há dez anos e deu bons resultados. Para servidores, ainda é novidade.
Na sexta-feira 6, o governo paulista lançou um plano para a inclusão de
negros. O objetivo é reservar 35% das vagas dos certames para a
população negra e indígena. “Os partidos políticos têm que minimizar a
desigualdade racial no País”, diz frei David. “Para passar em um
concurso, os candidatos precisam fazer cursos de especialização que
chegam a custar R$ 3 mil por mês. Com isso, a população negra é
automaticamente excluída.” Na opinião da pesquisadora Eugenia Portela,
as cotas são importantes por causa das disparidades existentes no
Brasil, mas considera que não basta apenas incluir excluídos no topo do
sistema. “Precisamos também investir na base”, afirma.
fotos: Marcos Michael/folhapress; Daryan Dornelles
Fotos: Mateus Pereira/Secom; Rubens Cavallari/Folhapress
Fontes: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), Dieese,
Fundação Seade, Ministério do Trabalho, IBGE (Censo 2010 e Síntese de
Indicadores Sociais 2013)
Revista Isto é Edição do dia 07/12/13/reprodução - seção Comportamento.
0 comentários:
Postar um comentário