domingo, 7 de dezembro de 2025

DF: O que se sabe sobre feminicídio de militar no quartel do Exército


Maria Freire era musicista do 1º RCG e estava no Exército há cinco meses-foto:(Reprodução Rede Sociais)   




Mais uma mulher perdeu a vida para o feminicídio no Distrito Federal. No 26º caso registrado neste ano, Maria de Lourdes Freire Matos, 25 anos, teve a trajetória interrompida cinco meses após ingressar no Exército. Cabo e musicista em ascensão da Fanfarra do 1º Regimento de Cavalaria de Guardas (RCG), no Setor Militar Urbano, ela foi encontrada carbonizada após um incêndio nas dependências do quartel. Durante o rescaldo, militares do Corpo de Bombeiros (CBMDF) localizaram o corpo com um corte profundo no pescoço. O autor do crime, o soldado Kelvin Barros da Silva, 21, confessou ter golpeado Maria com um punhal e incendiado o local antes de fugir. 

Apaixonada pela música, Maria de Lourdes, Malu, não escondia seu amor pela profissão. Nas redes sociais, quase todas as fotos repetiam a mesma cena: o saxofone em mãos, o olhar concentrado e a promessa da carreira musical em ascensão. 

"Cada vez mais tenho a certeza que é a música que eu quero fazer. A música oferece vários benefícios, dentre eles, a busca incansável de ser melhor. E para isso é preciso estudar, estudar e estudar", escreveu Maria, em uma foto postada em março.

A advogada criminalista Leila Santiago — representante da família da vítima e assistente de acusação — afirma que Maria de Lourdes é a única vítima do caso: "Qualquer tentativa de associá-la ao agressor é falsa, ofensiva e profundamente cruel".

A jovem era católica e atuante em uma das comunidades da igreja que frequentava, relata. A advogada destaca que a postura religiosa, ética e disciplinada eram traços profundos da personalidade de Maria de Lourdes. "Sua conduta sempre foi marcada por seriedade, responsabilidade e retidão."

Solteira e considerada de comportamento exemplar, Maria estava totalmente focada na carreira militar. "Preparava-se para os concursos do Corpo de Bombeiros e da Força Aérea Brasileira, projetos que ela levava com extrema dedicação", disse. "Não tinha interesse em relacionamento naquele momento de sua vida e rejeitava expressamente a ideia de qualquer vínculo amoroso no ambiente de trabalho", acrescenta Leila.

Para Leila Santiago, os elementos já apurados reforçam a hipótese de que o crime tenha sido motivado pela incapacidade do agressor de aceitar a autoridade feminina exercida por Maria naquele dia, quando ela ocupava posição hierárquica superior e tinha o soldado sob sua coordenação. "A dinâmica dos fatos mostra que o agressor a chamou até a sala de isolamento acústico sob o pretexto de um problema técnico. Maria foi até o local porque estava cumprindo sua função e, ali, foi brutalmente atacada", afirma.

A advogada observa ainda que o incêndio provocado pelo suspeito teve o objetivo de destruir provas, o que evidencia um nível ainda mais elevado de violência. "Demonstra desprezo, ódio e violência direcionada à sua condição de mulher, elementos típicos de crimes cometidos em contexto de violência de gênero."

Maria de Lourdes Freire Matos tinha 25 anos de idade, ocupava a patente de Cabo e era musicista do Regimento
Maria de Lourdes Freire Matos tinha 25 anos de idade, ocupava a patente de cabo e era musicista do Regimento(foto: Reprodução/Redes Sociais)

Em nota, o 1º RCG lamentou o ocorrido. "O 1º Regimento de Cavalaria de Guardas manifesta profundo pesar pelo falecimento da cabo Maria de Lourdes Freire Matos, cuja trajetória na instituição foi marcada por dedicação, profissionalismo e um compromisso exemplar com o serviço prestado na Fanfarra. Neste momento de dor, expressamos nossas mais sinceras condolências aos familiares, amigos e irmãos de farda". 

O feminicídio ocorreu na tarde de sexta-feira, próximo às 16h, quando o 1º RCG foi alvo de um incêndio. Pessoas ouvidas pelo Correio contaram que escutaram um grito vindo das dependências do Regimento. Logo depois, viram o incêndio. Militares do Exército entraram no local, que continha muito material combustível, para retirar itens, como instrumentos musicais, mas o corpo de Maria só foi encontrado posteriormente, pelo CBMDF. Para evitar que o fogo se alastrasse, as construções vizinhas foram resfriadas.

O Comando Militar do Planalto afirmou que a família da vítima está recebendo todo o apoio necessário. As perícias estão a cargo do Batalhão de Polícia do Exército, da Polícia Civil do Distrito Federal (PCDF) e do Corpo de Bombeiros (CBMDF).

Quando encontrada, a militar apresentava um corte no pescoço. 

A família aguarda o resultado oficial do exame de corpo de delito, realizado pelo Instituto Médico Legal (IML). Conforme a advogada, somente após isso, será possível providenciar o sepultamento.

Confissão

Após o crime, Kelvin Barros fugiu em direção ao Paranoá. Capturado pouco tempo depois por agentes da 2ª Delegacia de Polícia (Asa Norte), responsável pelo caso, o suspeito foi preso e confessou o crime na delegacia. De acordo o delegado Paulo Noritika, que está à frente da investigação, ele apresentou cinco versões sucessivas e contraditórias. Em uma, negou o crime. Em outra, confessou, mas prestou relatos incompatíveis entre si.

Depois, disse que o crime teria ocorrido após uma discussão motivada por um suposto relacionamento e que a vítima teria exigido que ele terminasse com a namorada e assumisse a relação com ela.

Maria de Lourdes Freire Matos tinha 25 anos de idade, ocupava a patente de Cabo e era musicista do Regimento
Maria de Lourdes Freire Matos tinha 25 anos de idade, ocupava a patente de Cabo e era musicista do Regimento(foto: Reprodução/Redes Sociais)

À reportagem, familiares da vítima afirmaram que não havia qualquer vínculo e levantaram a hipótese de perseguição por parte do soldado. Pessoas próximas à militar no quartel também relataram que Kelvin se apresentava como "bom samaritano" e costumava "se aproveitar" das recém-chegadas. "Ele se pagava de bom para todas as mulheres. E, como ela chegou agora, não via maldade, e acabou acontecendo isso", disse uma fonte ao Correio.

No depoimento, em outra versão, ele disse que a vítima teria sacado uma arma de fogo e tentado municiá-la. Segundo essa variante do relato, ele teria segurado a pistola com uma das mãos e, com a outra, teria alcançado uma faca militar presa à cintura da própria vítima, golpeando-a no pescoço. Em seguida, Kelvin disse que teria usado álcool e um isqueiro para provocar o incêndio antes de fugir levando a arma, conforme detalhou o delegado-chefe da 2ª DP, Paulo Noritika.

Em outra narrativa, alegou que Maria teria sofrido um surto psicótico. Depois, disse que era alvo de assédio por parte dela. Em outro momento, declarou que "não resistiu" às investidas da militar, que os dois teriam se beijado e que ele prometera terminar com a namorada. Então, ele voltou atrás e negou que tivesse havido uma discussão.

Quanto à arma e ao celular da jovem, também houve mais de uma versão. Primeiro, afirmou ter jogado o armamento na quadra de polo do quartel. Depois, confessou tê-lo descartado em um bueiro no Itapoã. Policiais da 2ª DP encontraram a arma no local, enrolada em uma gadola militar — uniforme de combate. O celular ainda está sumido. 

Prisão

Kelvin passou por audiência de custódia neste sábado (6/12) e teve a prisão em flagrante convertida em preventiva. Ele foi autuado por feminicídio, furto de arma de fogo, incêndio e fraude processual. Detido no Batalhão de Polícia do Exército de Brasília, deve ser excluído da Força, segundo a corporação. Em nota, o Exército informou ter instaurado um Inquérito Policial Militar (IPM) para apurar as circunstâncias do crime e confirmou que o soldado, que é do 1º RGC, conhecido como Dragões da Independência — responsável pela segurança cerimonial do presidente da República — , será expulso.

Ivonete Granjeiro, advogada e consultora legislativa de direitos humanos da Câmara Legislativa do DF (CLDF), destaca que o principal desafio no caso é garantir rapidez, cooperação entre instituições e ausência de interferências na investigação. "O Código Penal Militar é claro no sentido de que a competência para julgar crimes cometidos em instituições militares depende da situação: se o crime for praticado em serviço ou relacionado à função, a Justiça Militar julga; mas se for um crime comum, sem conexão com a caserna, a competência é da Justiça Comum. Assim, o assassino de Maria de Lourdes será julgado pelo Tribunal de Júri, de acordo com a jurisprudência do STF e o Código de Processo Penal", afirma.

A advogada lembra ainda que a Lei nº 14.994/24 tipifica o homicídio de mulheres como crime qualificado e hediondo, com pena de 20 a 40 anos quando motivado por razões de gênero. "Do ponto de vista legislativo, houve mais avanços do que retrocessos. Mas, para que a lei não se torne uma mera folha de papel, é preciso fortalecer a rede de proteção, com Delegacias da Mulher 24h, equipes qualificadas e integração entre saúde, segurança e Judiciário", afirma. "Políticas públicas estruturadas, educação para igualdade de gênero e capacitação obrigatória de agentes do sistema de Justiça em perspectiva de gênero são medidas de alto impacto para enfrentar o feminicídio de forma sistêmica e duradoura", conclui.

Fonte:  Por Darcianne Diogo e Ana Carolina Alves*/Correio Braziliense - 07/12/2025

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