quarta-feira, 4 de julho de 2018

Na Flip 2018: Editora baiana Corrupio será homenageada e irá relançar obras esgotadas

As editoras Arlete Soares e Rina Angulo comandam a Corrupio,que fará 40 anos em 2019 - Foto: Margarida Neide / Ag. A TARDE
As Editoras Arte Soares e Rita Angulo foto:reprodução
Por um tempo tiveram que esconder o segredo, contaram só para os amigos mais próximos, que também ninguém é de ferro. Mas depois do anúncio oficial, há coisa de um mês, puderam espalhar pelos ventos. A Editora Corrupio, criada e mantida majoritariamente por mulheres há quase 40 anos, feita e refeita a publicar histórias de negros em nobres páginas de livros, será homenageada na Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), maior evento do gênero no país, que acontece entre os dias 25 e 29. 
Com o orgulho pelo reconhecimento na bagagem, as editoras Arlete Soares e Rina Angulo irão participar de uma exposição na casa da Editora Sesi que recontará a trajetória da editora por meio de livros, cartazes, correspondências e demais preciosidades, como um prefácio de dom Timóteo escrito à mão e recados-rabiscos de Carybé. A mostra trará ainda fotos de três livros de Pierre Verger: Retratos da Bahia, Orixás e Fluxo e Refluxo. Foi a Corrupio que pela primeira vez publicou as obras do etnólogo e fotógrafo francês no Brasil.
Durante a Flip, a Corrupio também irá divulgar a publicação de obras que estão esgotadas no catálogo e outras inéditas, numa parceria com a Editora Sesi. Os títulos ainda estão sendo negociados com os autores, daí o mistério.  Arlete e Rina  vão ainda participar de debates sobre cultura afro-brasileira.
A jornalista baiana Josélia Aguiar, há dois anos à frente da curadoria da Flip, conta que teve o primeiro contato com a Corrupio quando estudava comunicação na Ufba. Na mesma época, conheceu Verger. “Foi talvez a pessoa que entrevistei que mais me impressionou, pelo seu misto de mistério e dignidade”. 
Josélia já morava em São Paulo quando decidiu estudar Retratos da Bahia,  primeiro livro editado pela Corrupio, no mestrado em história da USP.  “Essa homenagem me diz muito respeito, tanto do ponto de vista sentimental quanto intelectual. A Corrupio é uma editora de mulheres que publica títulos seminais de cultura afro-brasileira. Criar e manter uma editora independente, antes das facilidades que existem hoje de publicar e circular permitidas pela internet, exigia muita coragem e esforço”.
Pequena editora, grandes obras
A Corrupio nasceu para um autor,  Pierre Verger. Em 1979, o fotógrafo veio instalar-se definitivamente na Bahia e contou do desejo de reunir seus negativos, que estavam em Paris. Arlete voltou de lá com 120 quilos de material fotográfico.  Ali, em meio a milhares de imagens, estavam os registros do que Verger viu quando pisou pela primeira vez na Bahia, em 1946. Arlete, Cida Nóbrega, Enéas Guerra e Arnaldo Grebler, parceiros do coletivo ZAZ de fotografia,  tiveram a ideia de franquear aquela beleza a mais vistas.
Com as imagens reunidas depois de uma árdua seleção, Arlete iniciou a romaria para “seduzir os editores do Sul” a publicarem Retratos da Bahia. “Mas eles diziam: ‘Como é que vai fazer um livro com 256 fotos só de negros? Não vai vender’”. Arlete não tinha coragem de dizer a Verger  que ninguém tinha se interessado pela obra. “Quando vi que não ia sair, pensei: não vai ter jeito, vou ter que fazer uma editora”.
A Corrupio foi criada  em dezembro de 1979, tomando o nome emprestado do endereço de Verger, que vivia  no Alto do Corrupio, na Federação. Retratos da Bahia, lançado em agosto seguinte, ganhou elogios de Carlos Drummond no Jornal do Brasil. “Saravá, mestre! Recebi Retratos da Bahia e agora não posso dizer mais que ‘nunca fui lá‘.  Se o professor Freud desembarcasse lá, sei não, mas a psicanálise seria outra ciência, ou talvez uma arte“, escreveu o poeta. 
Apesar do sucesso da obra, Arlete teve que vender um terreno em Itacimirim para pagar as dívidas do livro. A editora publicou mais três obras de Verger até seguir para outros autores. O primeiro deles foi o antropólogo Antonio Risério, que em 1981 lançou pela Corrupio Carnaval Ijexá, seu primeiro livro.
Fotolito do clássico
Fotolito do clássico "Orixás", de Pierre Verger, lançado em 1981
Enéas Guerra, que integrou a equipe da Corrupio até 1983 e hoje está à frente da Solisluna, ressalta como tantas vezes cabe às pequenas editoras revelar novos autores. “As grandes dão poucas chances e, muitas vezes, estão mais preocupadas em adquirir obras consagradas no exterior. São as pequenas que valorizam o que temos de melhor”. 
Para o pesquisador Jeferson Bacelar,  do Centro de Estudos Afro-Orientais da Ufba, todas as publicações da Corrupio, “de Verger a Goli Guerreiro”, são “exemplares”. “Atualmente, tenho usado muito os livros de alimentação de Vivaldo da Costa Lima, por causa da temática que venho trabalhando”.
Quase um museu
Na última década, a Corrupio modernizou-se. Criou um site e passou a vender por lá as obras que publica. Driblou, assim, um problema que costumava atormentar as pequenas editoras, a distribuição. Também fez parcerias com distribuidores nacionais e vende diretamente nas livrarias da Travessa do Rio de Janeiro e São Paulo. Os autores mais procurados são Verger, Vivaldo da Costa Lima e mestre Didi. 
Mas os leitores, de modo geral, andam sumindo, diz Arlete, recostada numa cadeira à frente da estante cheia de livros do seu escritório. “Isso aqui é quase um museu”, aponta, e lembra do tempo em que toda casa que se prezasse tinha biblioteca e não varanda gourmet. “As pessoas leem cada vez menos. Mas sempre vai ter alguém que curta e se delicie”. 
No ano passado, as vendas de livros caíram 7% no Brasil. “Num país que já lê pouco, é muito”, emenda Rina. “Nós temos um problema que é a falta de política para o livro, de investimentos para a cultura”. 
Um caminho para as editoras fecharem as contas costuma ser a venda de livros didáticos e paradidáticos, mas Rina conta que os órgãos oficiais locais preferem negociar com empresas de fora da Bahia. “Por exemplo, para a aplicação da lei de ensino da história e cultura afro-brasileira, as editoras do Sul não produziam conteúdo. E mesmo assim a gente oferecia nossos livros e não conseguia. Não é uma queixa, é uma constatação”. 
Arlete relê um bilhetinho bem-humorado rabiscado por Carybé
Arlete relê um bilhetinho bem-humorado rabiscado por Carybé
E para além da crise de leitores há outra, a econômica, e sabe-se lá o quanto não estão amparadas. As obras da Corrupio, reconhecidas pelo apuro visual, custam em média R$ 45. Arlete admite que o preço do livro é alto no país. “Tem o atravessador, a comissão do livreiro, o transporte...”. Para ser barato, diz, a solução é “fazer milhares”. “O público não é tão grande assim para o assunto da gente. Então, falta uma visão do governo. Mas como eles não estão sacando quase nada, há muito tempo, não estão nem aí para livro”. 
Neste ponto da conversa, Rina volta ao princípio para marcar que a Corrupio, afinal, nasceu de um sonho. “É o desejo de querer publicar, como tantas editoras pequenas. Nunca é por um negócio de ‘ah, vamos fazer dinheiro’”, gargalha. “Veja que a Cosac Naify, que era gerida por aquelas pessoas milionárias, fechou. Imagine a gente aqui, né, Arlete? Nós somos a resistência”. 
Próximos passos
A Corrupio é formada por uma equipe de apenas quatro pessoas. Volta e meia, Rina faz pacotes e entrega livros.  Os corredores da sede da editora, na Barra, estão abarrotados de caixas com as obras publicadas, Verger vizinho de mestre Didi e Juana Elbein, Vivaldo aninhado a dona Canô. 
Em quase 40 anos, foram 67 obras lançadas. “Não é muito, se você parar para pensar”, diz Arlete, mas os números ali nunca mandaram em muita coisa. Rina lembra que livros que deveriam ficar prontos em nove meses levaram cinco anos.
Para os próximos anos, além das obras que serão lançadas em parceria com a Sesi Editora, Arlete e Rina estão envolvidas num projeto  para comemorar os 100 anos do Museu de Arte da Bahia. E tem ainda uma série que Sérgio Machado está fazendo com um material que estava abrigado na Corrupio há mais de 20 anos – cerca de 16 horas de filmes feitos por Verger enquanto perambulava entre o Brasil e a África. 
E é isso o que se pode falar em matéria de futuro, tempo que Arlete trata sem reverência. “Cada um escreve a sua própria história. E quando o tempo passa, passa, a verdade sempre aparece. O que pude fazer fiz em prol da cultura dessa cidade, que abrange muitos países. Porque a cultura voa, navega mares longínquos. O que a Corrupio vai ser nos próximos anos... Sei lá. Só espero ter a lucidez de não fazer besteira”.   
fonte:atardeonline de 04/07/2018 às 00:06min.

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