No dia 15 de maio, quatro ônibus e 40 camionetes saíram de Primavera do Leste, no Mato Grosso, rumo a Brasília, levando, além de fazendeiros e outros produtores rurais, um grupo de indígenas Xavante da Terra Indígena de Sangradouro para participar da manifestação de ruralistas a favor do presidente Jair Bolsonaro. A caravana foi organizada pelo Sindicato Rural de Primavera do Leste, o mesmo que, com a Fundação Nacional do Índio (Funai) e o Governo do Mato Grosso, foi responsável pela criação, neste ano, de uma cooperativa agrícola dentro do território, onde vivem 4.200 indígenas Xavante em 57 aldeias. O projeto Independência Indígena, também chamado de Agroxavante, pretende “levar desenvolvimento, segurança alimentar e qualidade de vida” a esses povos originários ao disponibilizar ferramentas e maquinários, além de capacitar indígenas na operação de tratores e colheitadeiras. Tudo é financiado pelos ruralistas, adversários históricos dos grupos indígenas em disputas por terra no interior do país. A criação da cooperativa criou uma divisão entre os próprios Xavante e é vista por lideranças e antropólogos como um “laboratório da política anti-indigenista” do Governo Bolsonaro.
A Cooperativa Indígena Sangradouro e Volta Grande foi criada para o cultivo de arroz com base na experiência da Coopiparesi, cooperativa implementada nas Terras Indígenas Paresi, Rio Formoso e Utiariti, também do Mato Grosso. A iniciativa opera desde 2003 no cultivo da soja com contratos de parceria com fazendeiros, especialmente com o empresário Blairo Maggi, que foi Ministro da Agricultura do Governo Michel Temer, e defendeu, por diversas vezes, o fim das demarcações de terras indígenas. Desde 2019, os Xavante de Sangradouro têm viajado 680 quilômetros até o território Paresi para aprender técnicas de colheita mecanizada.
“O Sindicato Rural está ensinando essa tecnologia aos nossos jovens, estão ensinando a usar colheitadeira e trator. Indígenas também precisam de tecnologia. Estamos querendo progresso, trabalhar e produzir”, conta ao EL PAÍS Graciano Pronhõpa, presidente da Associação Auwêuptabi e um dos caciques que impulsionaram a nova cooperativa. Ele diz que 24 indígenas trabalham no local e que já iniciaram a primeira colheita em 50 hectares dos 1.000 previstos para este ano. A safra será vendida aos próprios empresários da região e o dinheiro beneficiará apenas aqueles que trabalham na cooperativa —não foi informado à reportagem qual será esse valor. O discurso de Graciano é reiterado por Bartolomeu Patira Xavante, líder dos caciques Xavante: ”Pretendemos desenvolver e acompanhar o mundo moderno econômico sociais e cultural, sem abandonar a cultura milenar do nosso povo xavante”, afirma à reportagem, É também o que diz o próprio presidente Bolsonaro, que, em 6 de fevereiro, postou nas redes sociais um vídeo de uma reunião entre membros do sindicato ruralista e indígenas Xavante, no qual se menciona “o apoio irrestrito do presidente da República” à cooperativa. Bolsonaro, por diversas vezes, defendeu que as terras indígenas sejam exploradas por atividades econômicas de larga escala, incluindo o agronegócio e a mineração.
A iniciativa, entretanto, gera conflitos dentro da própria comunidade. Luciano Xavante, técnico em gestão da Federação dos Povos Indígenas do Mato Grosso (Fepoimt) diz que entre as nove Terras Indígenas Xavante no Estado, Sangradouro é a única a favor da cooperativa. “O próprio nome do projeto, Agroxavante, é ofensivo! Nós não somos agronegócio, não trabalhamos com isso. Temos um histórico de luta justamente contra o agronegócio para demarcar nossas terras. Esse tipo de coisa só serve ao interesse dos fazendeiros da região”, afirma ele.
De acordo com Rafael Weree, xavante e assessor parlamentar no Congresso para políticas indigenistas, a “tensão interna” entre os próprios indígenas de Sangradouro se deve à falta de diálogo sobre a cooperativa que, segundo ele, “foi uma decisão isolada, sem debate interno” de um grupo de lideranças. “Nosso povo já vive cercado pela soja de um lado e pelo gado do outro. A longo prazo, essa cooperativa vai desgastar ainda mais o solo do território, que já é bem desmatado. A água dos rios fica cada vez mais escassa, porque os fazendeiros contaminam com agrotóxicos ou usam para irrigação”, explica.
No dia 20 de maio, a Associação Xavante Warã publicou uma nota de repúdio ao “uso político que o Governo Federal está fazendo do povo Auwé Xavante, como laboratório de sua anti-política indigenista” com a implantação de “cooperativas agrícolas que funcionam em parceria com o agronegócio”. A nota diz ainda que “o projeto nada tem de independência ou autonomia” para esse povo e que é, na verdade, “mais um estimulo à dependência e ao arrendamento, com ares de legalidade”. “Sabemos que a finalidade última desse projeto —que é político— é de se apropriar do nosso território, sob falsa e hipócrita justificativa de desenvolvimento econômico das nossas comunidades”, acrescenta a associação.
O Ministério Público Federal no Mato Grosso emitiu parecer favorável à criação da cooperativa graças aos argumentos de que os Xavante adotarão os devidos cuidados ambientais e que só serão cultivadas áreas já antropizadas (ou seja, com presença humana). De acordo com uma antropóloga que atua há anos na região, isso não corresponde à realidade. “Eles derrubaram mata nativa para fazer roça. A proposta era plantar soja, mas como eles têm uma história de luta contra a monocultura da soja, só aceitaram plantar arroz”, denuncia ela, que preserva a identidade por medo de retaliações. A especialista explica que os Xavante são um povo de caçadores e coletores que, ainda hoje, realiza grandes expedições de caça. “Apesar do intenso desmatamento na região, principalmente pela indústria da soja, eles ainda têm condições de subsistência”, acrescenta. Ela fala, inclusive, em etnocídio: “Estamos falando do fim do cerrado, por onde passam todas as bacias hidrográficas do país, o que põe em xeque as condições de reprodução da vida dos Xavante. Trata-se de produção do fim do mundo em escala ampliada.”
Para Ricardo Verdum, antropólogo e vice coordenador da Associação Brasileira de Antropologia (ABA), a criação de tal cooperativa é um “arrendamento encoberto”, uma vez que a Constituição proíbe o uso de territórios indígenas para atividades como agricultura e mineração. “É quase um contrato por debaixo do pano para distribuir sementes, maquinário e ensinamentos técnicos numa terra que, a princípio, não pode ser destinada a esse uso”, afirma. Verdum vê a iniciativa com especial preocupação no contexto político atual, quando tramita no Congresso, por exemplo, o Projeto de Lei 191, que pretende abrir as terras indígenas à mineração e às hidrelétricas, entre outros empreendimentos.
Apoio do presidente
Em seu discurso na abertura da 74ª Assembleia Geral das Organizações das Nações Unidas (ONU), em 2019, o presidente Bolsonaro leu uma carta do Grupo de Agricultores Indígenas do Brasil, do qual fazem parte as cooperativas do povo Paresi, que serviram de modelo para o empreendimento Xavante e que, segundo a Funai, já cultivaram 10.000 hectares de soja. Esse grupo também conta com o apoio do Ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, que compareceu entre os dias 11 e 13 de fevereiro de 2019 às celebrações da safra 2018/2019 nas aldeias Bacaval e Matsene Kalore, do povo Paresi.
Rafael Weree e Luciano Xavante acreditam que os parentes (como os indígenas se chamam entre si) que acreditam nas boas intenções do Executivo caíram em uma “armadilha de um Governo racista e genocida”. Rafael lembra que o povo Xavante, um dos grupos originários com mais comorbidades no país —devido ao contato com a sociedade não indígena, principalmente na década de 1960— foi um dos mais afetados pela pandemia de covid-19 e não recebeu apoio suficiente do Governo. “É uma ironia sem tamanho e uma falta de respeito esse mesmo Governo querer fazer autopropaganda com nosso povo. Somos 22.000 xavante, se [a cooperativa] beneficiar 100 de nós, isso não é nada.”
Além das disputas internas que já ocorrem no território por conta dessa iniciativa, o antropólogo Ricardo Verdum teme que as incertezas sobre o projeto possam acarretar o endividamento da comunidade para compra de máquinas e insumos. “Devido à falta de políticas consistentes, alguns indígenas querem ter melhor qualidade de vida através do consumo e são incentivados pelo agronegócio que quer se expandir por seus territórios”, explica. Ele acrescenta que a monocultura e o uso de maquinário e agrotóxicos representam uma perda de autonomia cultural e controle sobre o território. Luciano Xavante concorda: “Os caciques que lutaram pela nossa demarcação suaram sangue contra o agronegócio para ter a garantia de nossas terras. Deveríamos conversar entre nós meses qual é o melhor futuro para o nosso povo.”
fonte: EL PAÍS - 28/05/2021 -09h:50min.
0 comentários:
Postar um comentário