A demanda nas farmácias privadas era baixa. Ao longo de todo o ano de 2019, apenas seis caixas de sulfato de hidroxicloroquina, um medicamento usado para tratar doenças como lúpus e malária e oferecido pelo SUS a esses pacientes, saíram das prateleiras de farmácias no país. Em março de 2020, o susto: 755 caixas vendidas só na Bahia, 21.517 em todo o Brasil. Já é muito, mas piora quando somados 12 meses desde que a hidroxicloroquina apareceu numa live do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) e passou a ser difundida como uma aposta para o tratamento da covid-19.
Era 19 de março de 2020 e, um ano depois, 1,39 milhão de caixas do medicamentos foram vendidas no Brasil – 33 milhões de comprimidos. A ciência já comprovou que o remédio é ineficaz contra a covid, mas ele segue sendo prescrito. E a conta chegou: o número de registros de suspeitas de reações adversas cresceu quase 8.550% no período.
Os dados de venda do medicamento são do Sistema Nacional de Gerenciamento de Produtos Controlados (SNGPC), da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Já os registros de suspeitas de reações adversas são do painel de Notificações de Farmacovigilância da mesma agência. Eles mostram que, de março de 2019 a março de 2020, foram feitas apenas duas notificações de reações adversas à hidroxicloroquina no país – uma por surdez e outra por urticária, ambas possibilidades indicadas na bula do medicamento. Um ano depois, o número saltou para 173 entre março de 2020 e março de 2021, sendo 81 classificadas como reações graves, que resultaram em prolongamento do tempo de hospitalização, ameaça à vida, morte ou incapacidade persistente ou significativa.
Dos 173 registros localizados, os distúrbios gastrointestinais e cardíacos lideram as reações. Foram 75 relatos de ocorrência de um intervalo QT prolongado no eletrocardiograma dos pacientes – um sinal de alerta, já que a síndrome do QT longo é um distúrbio cardíaco que pode levar a arritmias e até a uma parada cardíaca. Depois, na lista, aparecem diarreia, náusea, vômito, hipoglicemia, taquicardia, bradicardia, erupções cutâneas e até convulsão.
O biomédico e especialista em microbiologia Mateus Falco, da Rede Análise Covid-19, havia apontado há alguns meses o aumento do número de reações adversas ao medicamento nos Estados Unidos. Agora, a alta também fica clara no Brasil. Para ele, é um efeito da disseminação e das falsas esperanças depositadas no chamado ‘tratamento precoce’ e no ‘kit covid’ que, além da hidroxicloroquina, também tem remédios como azitromicina, ivermectina e zinco, todos ineficazes contra a covid.
“O ‘tratamento precoce’ leva as pessoas a acreditarem que estão seguras em relação à infecção pelo SARS-CoV-2, mas é uma sensação falsa porque os medicamentos prescritos não têmapacid a cade de bloquear a entrada do vírus no corpo humano, e nem mesmo curar quando a pessoa está infectada. Além do prejuízo individual quanto à própria saúde do paciente que aceita uma quantidade exagerada de medicamentos, tem também a questão das pessoas continuam circulando e promovendo a disseminação do vírus”, diz Falco.
O Brasil ultrapassou, essa semana, a marca de 17 milhões de casos e 482 mil mortes pela doença.
“No início da pandemia e até meados do ano passado, a gente viu muitos casos como esse, de situações de bradicardia grave, com a indicação de o paciente ir para a UTI por causa da droga. A azitromicina, a hidroxicloroquina também provocam isso, além do coronavírus. O entendimento que a gente tinha é que a exposição ao coronavírus, junto com a hidroxicloroquina, agravou”, aponta.
Ainda segundo Amorim, os pacientes chegavam à unidade relatando ter ingerido doses muito acima do normal. Segundo ele, a hidroxicloroquina costuma ser usada de 5 a 7 dias, com um comprimido a cada 24 horas. Mas os pacientes que tomavam o medicamento, inclusive para tentar ‘prevenir’ a doença, chegavam a tomar dois por dia. O aplicativo TrateCov, criado pelo governo federal e lançado em Manaus (AM), no dia 14 de janeiro deste ano, indicava receitas para “tratamento precoce” com quatro comprimidos de sulfato de hidroxicloroquina num primeiro dia e mais um a cada 12 horas nos quatro dias seguintes: 12 comprimidos, o dobro do recomendado.
Outros profissionais ouvidos pela reportagem, mas que não quiseram se identificar, asseguraram que, desde o início da pandemia, são constantes os casos de pacientes que tomam a hidroxicloroquina para prevenir ou tratar a covid e acabam dando entrada em hospitais com quadros graves, como problemas renais e distúrbios cardíacos. Alguns precisaram ser intubados.
“Na minha opinião, prescrição médica, qualquer que seja ela, deve ser feita por um médico. Toda vez que um médico prescreve, ele tem que ter a responsabilidade do que ele tá prescrevendo e isso passa por avaliar os possíveis efeitos ao paciente que essas drogas podem estar apresentando. É o médico que tem que tomar essa decisão porque é ele que vai ser responsabilizado eticamente se ele tiver uma conduta errada”, afirma o cardiologista.
Andrade diz ainda que, com a pandemia, a prática médica se tornou uma discussão política. “E isso não quer dizer que eu seja a favor de usar nenhuma medicação. Inclusive a ivermectina, a hidroxicloroquina não têm efeito. Agora, cabe ao médico decidir. Se ele prescrever e esse paciente tiver uma reação adversa, ele será eticamente responsabilizado, porque não tem evidência científica e ele teve uma reação”, afirma.
Para Fábio Amorim, é preciso fazer uma série de ressalvas antes de prescrever a hidroxicloroquina mesmo para doenças para as quais ela é indicada, como lúpus e malária, por conta dos efeitos. Dona Maria do Carmo*, 60 anos, por exemplo, diagnosticada com lúpus em 2000, precisou suspender o uso do medicamento após perder um percentual da visão. Além disso, mesmo antes da suspensão, usou a hidroxicloroquina associada a um remédio para o coração, por ter desenvolvido uma arritmia.
“Você tem uma série de cuidados antes de prescrever, tem um questionamento do tamanho, do peso do paciente. Você faz um eletrocardiograma, um ecocardiograma para garantir a segurança do uso. Agora, se você prescreve de forma indiscriminada, você não vai mais ter esse controle. Tem gente prescrevendo por telefone, pelo Instagram. Assim, ninguém vai pedir um eletro antes e só vai se descobrir que o paciente tem um QT prolongado depois de já ter tomado”, alerta Amorim.
Ele acrescenta que, no Brasil, não há uma cultura muito forte de notificar reações adversas, seja de medicamentos ou de vacinas.
“É uma tarefa que exige que a pessoa pare seu trabalho, entre no sistema, preencha uma ficha, mesmo que simplificada. E nós estamos no momento de pandemia, que você tem uma sobrecarga de trabalho dos profissionais de saúde. Geralmente, os profissionais de saúde deixam para notificar só aquelas reações graves. As moderadas e leves terminam não sendo, mas seriam importantes”, completa.
Para o biomédico Mateus Falco, o número de notificações pode ser considerado baixo, diante do cenário de prescrição do ‘tratamento precoce’, sem eficácia contra a covid-19. “As notificações têm um impacto considerável na conduta dos profissionais que monitoram as reações dos pacientes. Contudo, vê-se que as prescrições ocorrem sem o acompanhamento devido, pois o número de notificações está baixo. Não é porque não existe reações adversas, elas existem, mas como a responsabilidade fica a cargo do profissional ou paciente em cadastrar esses fatos, eles acabam não sendo atualizados no sistema de vigilância”, afirma.
A Anvisa, que reúne as notificações feitas tanto por profissionais de saúde quanto por pacientes, destaca a importância de fazer os registros. “As notificações de eventos adversos são importantes para compor a análise da relação benefício-risco dos medicamentos autorizados pela Anvisa”. Segundo a agência, ela deve ser feita o mais breve possível. “Não é necessário ter certeza da associação entre o evento adverso e o uso do medicamento. A simples suspeita da associação é suficiente para se realizar uma notificação”, diz nota.
Questionada sobre o aumento de quase 9.000% no número de notificações, a Anvisa disse que o dado pode ser atribuído “a diferentes fatores, como a maior sensibilização para a notificação de eventos adversos”.
**
CPI da Covid vai investigar defensores da hidroxicloroquina
A partir das próximas semanas, a CPI da Covid-19, no Congresso Nacional, vai focar as investigações nos defensores da hidroxicloroquina e nos outros medicamentos do chamado ‘kit covid’ para ‘tratamento precoce’. De acordo com o Senado, os parlamentares querem saber quem financiou e quem ganhou dinheiro com a prescrição indiscriminada da droga, considerada ineficaz no combate ao coronavírus. Pelo menos 18 requerimentos relacionados a medicamentos sem eficácia já foram aprovados.
A CPI descobriu, por exemplo, que o presidente Jair Bolsonaro atuou em favor de duas empresas privadas que produzem a hidroxicloroquina, pedindo a liberação de insumos para a fabricação de medicamentos no Brasil em dois telegramas enviados ao primeiro-ministro da Índia, Narendra Modi. O requerimento para investigar duas farmacêuticas – a EMS e a Apsen – já foram aprovados. Nos últimos dias, defensores dos medicamentos foram ouvidos na CPI, como a médica oncologista Nise Yamaguchi e a secretária de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde do Ministério da Saúde, Mayra Pinheiro.
Além disso, parlamentares da base do governo têm usado peças de desinformação para seguir divulgando o uso dos medicamentos pelo país. Para o médico infectologista Fábio Amorim, há uma certa vergonha e até um pouco de dor em dizer que não existe ainda tratamento para a covid-19. “Não existe tratamento. A gente trata os danos e a única coisa que a gente tem, por enquanto, e que pode mudar o desfecho, é a vacina”, afirma o profissional que, recentemente, atendeu uma paciente que havia tomado 16 comprimidos de ivermectina em apenas quatro dias. “Eu disse a ela que essa quantidade eu tomaria em oito anos”.
A Organização Mundial de Saúde (OMS) recomenda que a hidroxicloroquina não seja usada em pacientes para prevenir a covid e que a droga não reduz a mortalidade. Antibióticos, como a azitromicina, também não têm efeito contra a covid, assim como vitaminas e minerais. O uso da ivermectina também não é recomendado.
Apesar disso, as farmácias seguem sendo demandadas pelo público em geral, acrescido, agora, o antialérgico e das vitaminas C e D.
“A semana que vendo menos ivermectina e azitromicina, é em torno de 20 a 40 caixas por dia. No auge mesmo, já teve dia de vendermos 150 a 200 caixas de ivermectina”, contou a funcionária de uma farmácia em Salvador. "O aumento nas vendas chegou a 90% e havia até fila de espera". “No meu ponto de vista, acho que não teve ramo melhor do que a vendagem desses compostos”, disse.
FONTE: Clarissa Pacheco/CORREIO DA BAHIA/REPRODUÇÃO - 13/06/2021 08h45min.
0 comentários:
Postar um comentário