Troca de e-mails entre a diplomacia brasileira e a chancelaria indiana e representantes de farmacêuticas do país asiático mostra que o governo de Jair Bolsonaro (sem partido) foi bastante ágil na busca por adquirir hidroxicloroquina para o tratamento da Covid-19. O medicamento não tem eficácia comprovada contra a doença, mas é propagado pelo governo federal desde o início da pandemia.
Segundo uma série de 54 e-mails obtidos pelo jornal O Estado de S. Paulo, algumas mensagens foram respondidas pelo governo brasileiro em 15 minutos, à noite e até em fins de semana. O esforço pelo medicamento se contrapõe à postura do Executivo em relação às vacinas. No caso da farmacêutica Pfizer, o governo demorou pouco mais de dois meses para responder aos contatos da empresa e ignorou várias ofertas de venda do imunizante.
Os e-mails, trocados entre março e junho de 2020, deixam claro que o governo brasileiro agiu de maneira proativa para liberar cargas de matéria-prima da hidroxicloroquina a empresas que fabricam o medicamento no país. As mensagens foram enviadas pelo ministro-conselheiro da Embaixada do Brasil na Índia, Elias Antônio de Luna e Almeida Santos, segundo na hierarquia do posto diplomático.
“Estamos acompanhando esta questão com muita atenção”, disse em um e-mail de 31 de março ao diretor de uma empresa fornecedora de hidroxicloroquina. Em outro, o diplomata brasileiro pediu “a maior urgência possível” a um representante de uma farmacêutica sobre o preenchimento de documentos.
No dia 11 de abril de 2020, um sábado, Gaurav Kumar Thakur, secretário para América Latina e Caribe do Ministério das Relações Exteriores da Índia, escreveu a Santos para oferecer uma carga de “50 lakhs” — unidade de medida indiana, equivalente a 100 mil — de comprimidos de hidroxicloroquina já prontos, uma vez que havia uma demanda brasileira pela matéria-prima do medicamento pendente de liberação. Em menos de oito horas, o funcionário do Itamaraty respondeu que “o governo brasileiro demonstrou interesse na oferta”.
No dia seguinte, na noite de domingo, o funcionário do Itamaraty enviou um segundo e-mail cobrando agilidade do colega indiano por informações sobre a empresa que forneceria os comprimidos de hidroxicloroquina. “Se você pudesse fornecer os detalhes até amanhã de manhã, ficaria muito grato, para que possamos iniciar contatos diretos com eles.”
Duas semanas depois, no dia 25 de abril, em outra troca de e-mails também em um sábado à tarde, Santos levou apenas 15 minutos para responder à dúvida de um funcionário de um laboratório indiano que providenciava a remessa dos produtos ao Brasil.
Em 30 de maio, outro sábado, Santos cobrou de funcionários indianos a mesma disposição para trabalhar aos fins de semana. Ele escreveu a Nitish Suri, autoridade do comércio exterior do governo da Índia, pedindo redução de prazo para uma remessa ao Brasil. “Desculpe por escrever em um sábado. Com relação às mensagens anteriores, seria possível que essa autorização fosse emitida ainda hoje?”, assinalou.
Em outro e-mail, T.C. Reddy, diretor de uma farmacêutica indiana, sugeriu a empresários brasileiros que, gentilmente, “pressionassem Bolsonaro” a falar com o primeiro-ministro indiano, Narendra Modi, para liberar a carga de hidroxicloroquina.
Bolsonaro já havia feito um apelo ao presidente Modi, conforme divulgado por ele próprio no Twitter. “Nossos agradecimentos ao primeiro-ministro da Índia, Narendra Modi, que, após nossa conversa por telefone, liberou o envio ao Brasil de um carregamento de insumos para produção de hidroxicloroquina”, postou o mandatário da República na ocasião.
Em 20 de maio do ano passado, a Sociedade Brasileira de Infectologia publicou um informe no qual afirmava que os “estudos clínicos com cloroquina ou hidroxicloroquina não mostraram eficácia no tratamento farmacológico de Covid-19 e não devem ser recomendados de rotina”.
Ainda assim, quinze dias depois, em 5 de junho, Santos enviou e-mails a duas empresas indianas para saber preço, quantidade e prazo para entrega de difosfato de cloroquina, um dos componentes do medicamento.
CPI da Covid
Um dos principais pontos de investigação da CPI da Covid é o investimento de Bolsonaro para obter cloroquina, em vez de priorizar a busca por vacinas. Senadores apontam que o esforço brasileiro pelo medicamento continuou mesmo após pesquisas apontarem a ineficácia do fármaco no combate à Covid-19.
Os senadores contam com provas documentais e os depoimentos fornecidos nas sessões para comprovar a responsabilidade do governo federal no descontrole da pandemia. O gerente-geral da Pfizer para a América Latina, Carlos Murillo, informou aos parlamentares que nove ofertas de vacinas, feitas em cinco datas diferentes, ficaram sem resposta. O primeiro e-mail foi enviado no dia 26 de agosto ao Ministério da Saúde, que só respondeu às mensagens da empresa em 9 de novembro.
O vice-presidente da CPI, senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP), contou 81 correspondências da Pfizer, de 17 de março do ano passado até 23 de abril deste ano, 90% delas sem resposta.
Além da Pfizer, também houve atraso no processo de compra de doses da Coronavac, fabricada no Brasil por uma parceria do Instituto Butantan com a farmacêutica chinesa Sinovac. O diretor do Butantan, Dimas Covas, relatou que propostas para compra de vacinas foram ignoradas por dois meses. Mesmo após iniciar as tratativas, houve reveses em razão da postura do presidente.
Em outubro do ano passado, Bolsonaro desautorizou o então ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, e mandou cancelar a compra de doses do imunizante. Em uma live ao lado de Bolsonaro, Pazuello afirmou: “É simples assim: um manda e o outro obedece”.
A ordem de Bolsonaro levou a uma redução de 52 milhões de doses de vacina na quantidade que o país poderia ter obtido. As doses seriam entregues até o fim de maio deste ano. O contrato acabou assinado só em janeiro e possibilitou a entrega de 47,2 milhões.
Fonte: Metrópoles - 15/06/2021 09h:46min
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