Uma troca de e-mails aponta fortes indícios de que o senador Flávio Bolsonaro participou de uma negociação paralela para a compra de uma vacina americana, a Vaxxinity, ainda em fase de testes e sem aprovação de nenhuma autoridade sanitária, durante uma viagem que o parlamentar fez aos Estados Unidos (EUA), em junho deste ano. A revista ISTOÉ teve acesso com exclusividade a troca de e-mails.
A reportagem aponta as primeiras interferências do filho mais velho do presidente Bolsonaro no processo de aquisição de imunizantes contra a Covid e chama a atenção para as inúmeras semelhanças de irregularidades que o caso guarda em relação a outros escândalos que estão sendo investigados pela Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) no Senado.
O envolvimento do senador nas negociações da vacina americana começa em junho de 2021, quando o advogado e dono de uma pousada de Itacaré (BA), Stelvio Bruni Rosi, envia um e-mail ao gabinete de Flávio Bolsonaro no qual solicita uma reunião entre o parlamentar e representantes do laboratório Vaxxinity, sediado em Dallas (EUA).
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No dia em que Rosi mandou o e-mail, Flávio cumpria agenda com o ministro das Comunicações, Fabio Faria, nos EUA. Os dois visitaram Washington e Nova York para conhecer redes privativas de 5G entre os dias 7 e 10 de junho de 2021.
O encaminhamento do caso por Flávio foi praticamente imediato. No dia seguinte, o gabinete de Flávio encaminhou a mensagem de Stelvio ao secretário-executivo do Ministério da Saúde, Rodrigo Cruz, que havia assumido o cargo em março, no lugar do coronel Élcio Franco, um dos alvos investigados na CPI. Na mensagem, enviada por Branca de Neves José Luiz, funcionária de Flávio, o senador pede que Cruz analise o pedido para “eventual interesse” na aquisição da vacina.
Em conversa com a ISTOÉ, Stelvio se disse arrependido por ter pedido a intervenção de Flávio na operação junto ao Ministério da Saúde, após ser flagrado pela reportagem. “Esses caras recebem muitos e-mails. E conversam com muitas pessoas toda hora. Acho que não me expressei muito bem no e-mail. Tentei criar um e-mail para chamar um pouco a atenção”, disse Rosi, tentando tirar a participação do senador da transação.
O empresário disse ter feito a solicitação ao senador a pedido de um conhecido que, segundo ele, trabalha no setor de vendas da vacina americana.
O site do laboratório informa que o imunizante produzido pela empresa é experimental e ainda não foi aprovado em nenhum país. No Brasil, a Vaxxinity chegou a pedir autorização à Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) para a realização de estudos clínicos da vacina, mas não concluiu essa etapa do processo.
Em nota, o senador negou ter se encontrado com representantes da Vaxxinity na viagem que fez aos EUA em junho, bem como ter feito qualquer intermediação entre a fabricante e o Ministério da Saúde.
A reportagem procurou o laboratório americano para saber se havia iniciado tratativas com o governo brasileiro e se tinha alguma representação no País. A Vaxxinity informou que nunca entrou em contato com o Ministério da Saúde e que ninguém da empresa mantém contatos com Stelvio Bruni Rosi.
A empresa informou ainda que seu único representante no País chama-se Elcemar Almeida, cujo perfil nas redes sociais afirma ser o “presidente da Covaxx” (nome antigo da Vaxxinity). “Nenhuma pessoa associada à Vaxxinity jamais esteve em contato com Stelvio Bruni Rosi, nem com o senador Flávio Bolsonaro. Portanto, não temos conhecimento das informações contidas no e-mail citado, nem dessas supostas reuniões”, diz a nota.
Além de advogado e empresário do ramo do turismo, Rosi também tem outros empreendimentos. Segundo a ISTOÉ apurou, ele atua ainda como diretor operacional da Malugue Comércio Ltda, empresa do Rio de Janeiro que diz ser especializada na distribuição de equipamentos hospitalares. Criada em 2014, a Malugue opera no bairro da Saúde, no centro da cidade.
Na fachada, não há qualquer placa ou sinalização que indique que a companhia realmente funciona naquele endereço. Também desperta suspeitas a quantidade de atividades secundárias informadas pela empresa à Receita Federal: vai desde o comércio de móveis, bolsas, malas, artigos de viagem, até peças para carros e caminhões novos e usados.
Na internet, a empresa de Rosi tinha o seguinte comunicado: “Fechamos contrato com um dos maiores distribuidores de vacinas do mundo. Hoje, seguimos rigorosamente os critérios de condutas pré-definidos por ministérios de saúde dos países fabricantes e dos países compradores e está totalmente amparada para orientar e promover o processo de aquisição de diversas vacinas para combater a Covid-19”.
“Quando essa coisa de vacina começou a abrir a possibilidade para a venda aos estados, prefeituras e iniciativa privada, a gente tentou fazer uma movimentação nesse sentido”, disse Stelvio. “Só havia a AstraZeneca, que fazia contrato com governo, a Pfizer e a Coronavac. Na realidade, não tinha outro produto para se trabalhar.”
Minutos após a entrevista, o site da Malugue foi retirado do ar. Stelvio não é o único diretor da Malugue. Além dele, estão no corpo diretivo da empresa o já citado advogado Ricardo Horácio e o coronel da reserva do Exército Gilberto Gueiros.
Gueiros é uma pessoa conhecida da política fluminense. Foi presidente da Loterj na gestão do governador Wilson Witzel no Rio de Janeiro, ex-aliado de Bolsonaro que foi afastado do cargo por desvios na Saúde. Sob a gestão do coronel, a Loterj doou 450 ambulâncias a hospitais do Rio.
A CPI da Covid abriu recentemente uma investigação para apurar denúncias de corrupção em contratos envolvendo hospitais fluminenses. Um dos nomes sob suspeita nessa apuração é exatamente o do senador Flávio, segundo confirmam fontes da CPI no Senado.
Pessoas ouvidas pela reportagem, entre as quais um advogado que já trabalhou para a família Bolsonaro no Rio, informaram que Gueiros é um velho conhecido do clã. O militar foi colega de Jair Bolsonaro na academia militar, quando ambos tornaram-se paraquedistas.
O coronel Gueiros é alvo de um processo no Superior Tribunal Militar (STM) em que é réu por crimes de fraude em licitação e improbidade administrativa. A ação penal, que contou com investigações da Polícia Federal, apura suspeita de fraudes em licitações do Exército no ano de 2008. O militar só chegou à presidência da Loterj graças à influência de Flávio. O senador pediu que um colega o indicasse para integrar a gestão Witzel.
Quem fez a solicitação foi o líder do Avante na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj), o deputado Marcos Abrahão. Segundo parlamentares, Flávio e Abrahão são aliados. O nome de Abrahão aparece no mesmo relatório do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) que expôs o nome do 01 no conhecido esquema de rachadinhas em seu gabinete na Alerj.
No caso do esquema montado por Flávio, as investigações indicam que o senador recebeu em torno de R$ 6 milhões dos salários dos servidores nomeados em seu gabinete. Abrahão chegou a ser preso no âmbito da Operação Furna da Onça, deflagrada pela Polícia Federal em 2018, que revelou o esquema das rachadinhas. Na casa do deputado estadual, a polícia encontrou R$ 53 mil em dinheiro vivo.
Uma das fontes confirma a relação entre a família Bolsonaro e o grupo Malugue é alguém que já foi próximo ao clã. Em uma conversa, esse antigo aliado do ex-capitão deu detalhes sobre esses vínculos e, em mais de um momento, fez alertas para o alto risco que envolve o que chamou de “organização criminosa”.
“Tome cuidado. É uma organização de alta periculosidade”, afirmou, sob a condição de anonimato, por medo de represálias. Esse advogado relacionou o senador ao grupo do coronel Gueiros.
Em nota, o Ministério da Saúde confirmou que iniciou tratativas com a Vaxxinity, mas informou ter decidido não comprar o imunizante por considerar que o Brasil já possuía vacinas suficientes.
Segundo a reportagem, a pasta se recusou a comentar a participação do senador Flávio na operação.
FONTE: ISTOÉ DINHEIRO - 26/08/2021 23h:42min.
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