“A mulher chegou! ”. Era assim que o mestre de obras e sua equipe se referiam a Lina Bo Bardi (1914-1992) durante o processo de construção do Museu de Arte de São Paulo (Masp), projetado por ela em 1947. O corre-corre preocupado dá uma pista de quem foi a arquiteta italiana que o Secretário Especial de Cultura Mario Frias afirmou desconhecer: um dos principais nomes do modernismo brasileiro.
O episódio é relatado na biografia Lina Bo Bardi: o que Eu Queria Era Ter História (456 páginas | R$ 89,90), recém-lançada pela Companhia das Letras. Premiada com um Leão de Ouro póstumo durante a 17ª Bienal de Arquitetura de Veneza, no dia último dia 20, Lina se consolidou como uma importante expoente da arquitetura do século XX e é isso o que o livro do arquiteto e designer paulista Zeuler R. Lima apresenta.
Fruto de 20 anos de pesquisa em arquivos, documentos deixados por Lina e entrevistas com a família, a obra de quase 500 páginas faz um passeio pela vida da arquiteta. Sua marca está no Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM-SP), no Sesc Pompeia, no Museu de Arte Moderna da Bahia (MAM-BA), na Fundação Gregório de Mattos, na Casa do Benin e no Espaço Coaty - os quatro últimos em Salvador, onde ela teve uma importante passagem.
“Procurei trazer a voz dela para o texto e dar uma legitimidade com fatos, procurando deixar o mito Lina Bo Bardi de lado e verificar historicamente como aconteceu tudo isso”, explica Zeuler, em entrevista ao CORREIO. Lina, resume o autor, foi “uma pessoa de uma vida muito rica, de uma obra muito rica”, resume.
Lina nasceu em Roma, na Itália, e veio morar no Brasil em 1946 (Foto: Instituto Bardi/Divulgação) |
Geniosa, a arquiteta fez escola no Brasil e se destacou em um mundo dominado por homens. Decidida a não ter filhos desde os seis anos, nunca mudou de ideia. “É uma responsabilidade terrível”, afirmou em entrevista resgatada pelo autor.
Nascida em uma cultura patriarcal onde as mulheres eram submissas, Lina tinha motivos, segundo ele, para se sentir “socialmente alienada”.
Principalmente quando percebeu que suas ambições divergiam do papel feminino tradicional. O fascismo italiano reduziu a imagem da mulher a seus interesses políticos, explica o autor, reforçando e politizando “o modelo dominante e ambiguamente moderno da mulher-mãe, vangloriada como caseira, forte e produtiva, em contraposição à mulher autônoma, repudiada como urbana, decadente e estéril”.
Formada na Itália fascista de Mussolini (1883-1945), no início da Segunda Guerra Mundial, Lina deixou o país “quando nada era construído, só destruído”, como bem define um dos capítulos do livro. A biografia destaca, ainda, que sua educação em Roma forneceu uma base sólida em história da arquitetura e representação arquitetônica que marcaram o desenvolvimento de sua carreira no Brasil.
(Foto: Instituto Bardi/Divulgação) |
A biografia detalha que os pais de Lina foram contra a filha viajar para fora do país com um homem casado. Para solucionar a questão, Pietro anulou seu casamento – deixando sua mulher e duas filhas – para casar-se com Achillina que, aos 31 anos, tornou-se a Signora Lina Bo Bardi. De navio, deixou a Itália no outono de 1946 e com notas, fotografias e aquarelas, algumas expostas no livro, documentou sua jornada.
Após duas semanas de travessia oceânica, no dia 12 de outubro de 1946 Lina e o marido atracaram no porto de Recife, então centro cultural e político do Nordeste. Após seguir para o Rio de Janeiro, o casal conheceu o poderoso jornalista Assis Chateaubriand (1892-1968) que revelou aos dois sua intenção de construir um museu de arte que “contribuísse para o avanço da arte moderna no Brasil”.
Pietro aceitou a proposta de criar e dirigir o museu – o Masp – e, contrariada, Lina se mudou para a capital paulista com ele. Já acostumada com o Rio, encontrou uma cidade cheia de imigrantes italianos com “todo o ranço que havia em Roma”, narra o autor.
O Masp foi projetado por Lina em 1947, a pedido do jornalista Assis Chateaubriand (1892-1968) (Foto: Divulgação Masp) |
“A Lina Bo Bardi tinha uma profissão formal de arquitetura e, ao mesmo tempo, foi uma pessoa que navegou por universos culturais muito amplos, tanto na Itália quanto no Brasil. A formação na Itália era de uma ‘arquiteta total’, em todas as práticas que teve, mas como uma espécie de intelectual pública”, destaca Zeuler, sobre a artista que encontrou no Brasil um lugar fértil para escoar suas ideias.
Por aqui, atuou não só projetando residências, capelas, museus e outros espaços culturais, destaca o arquiteto e professor da Ufba Nivaldo Andrade, 44, mas também desenhando móveis, concebendo cenários e figurinos para teatro e cinema. Além disso, escreveu sobre arte em jornais e revista especializada e dirigiu um dos principais museus de arte moderna do Brasil: o MAM-BA.
“Lina é um dos arquitetos ou arquitetas mais importantes do Brasil do século XX”, opina Nivaldo.
“Sua obra arquitetônica e seu papel de agitadora cultural vêm sendo muito valorizados no Brasil e no exterior depois da sua morte, em 1992, transformando-a em uma referência para jovens arquitetos e arquitetas e estudantes de arquitetura”, enaltece o professor.
Sua prática ampla e humanizada da arquitetura ficou de herança. O legado é de uma arquiteta que pensou muito o dia a dia e entendeu a arquitetura como a criação “desse lugar para as pessoas viverem”, enaltece Zeuler. “Lina sempre dizia que as pessoas eram as protagonistas da arquitetura, uma visão humanizada que nos faz muito bem. Ela foi uma pessoa de grande coragem e curiosidade, são valores importantes”, conclui.
Salvador deu voz e autonomia a Lina Bo Bardi
Depois de uma experiência pedagógica em São Paulo, Lina chegou em Salvador em 1958, pela primeira vez, para apresentar três palestras na Universidade Federal da Bahia (Ufba). Aqui, onde mais tarde ajudaria a criar o Museu de Arte Moderna da Bahia (MAM-BA), foi recebia pelo então diretor dos Diários Associados de Chateaubriand em Salvador, Odorico Tavares, e pelo arquiteto Diógenes Rebouças.
“Pela primeira vez, ela começava a articular publicamente sua própria voz. E ficou inebriada com a recepção, como nunca tivera em São Paulo e tampouco, a bem da verdade, na vida”, destaca Zeuler, na biografia. Este foi o primeiro passo para uma “profunda mudança” que a arquiteta viveria na capital baiana. Suas perspectivas profissionais em São Paulo estavam complicadas, assim como a vida a dois.
(Foto: Instituto Bardi/Divulgação) |
O autor explica que, mais uma vez, Lina se viu diante da encruzilhada que “a convidava a sair da sombra de sua experiência na Itália – da sombra do marido, inclusive – e entrar em seus próprios domínios”. Professora de teoria da arquitetura que substituiu Diógenes na Ufba, a convite dele, Lina floresceu em Salvador e ganhou autonomia. Ao longo de mais de 60 páginas, o autor detalha sua passagem transformadora pela cidade.
Lina encontrou aqui um caráter fortemente histórico e uma cultura carregada de “joias arquitetônicas barrocas e de traços africanos profundos”, destaca Zeuler. Após quatro visitas e finalmente uma longa permanência até 1964, a arquiteta experimentou a vitalidade, a liberdade e uma espécie de exílio doméstico que proporcionaram uma transformação pessoal e profissional.
A cidade “lhe deu a oportunidade de renegociar suas identidades, tanto a cultural quanto a pessoal, além de afiar sua visão crítica do desenho industrial e seus compromissos intelectuais e políticos como arquiteta, sobretudo como arquiteta brasileira”, resume o escritor. Em diálogo com a vanguarda e a cultura popular, Lina deixou marcas e ampliou sua rede de conexões fora do meio arquitetônico.
Martim, Lina Bo Bardi e o professor Brutus Pedreira (de costas) nos jardins da Escola de Teatro da Ufba (Foto: Acervo do Instituto Martim Gonçalves) |
Na capital baiana, além de dar aulas e palestras, publicou artigos, projetou uma casa e até um mausoléu na ilha privada da família Odebrecht. Aqui deixou de ser a “Signora Bardi” e ficou conhecida como “d. Lina”, compara Zeuler. O autor destaca que, enquanto Salvador e a Bahia se reorganizavam no começo dos anos 1960, e a indústria petrolífera revitalizava a cidade, Lina redefinia sua identidade.
“Ela foi uma catalisadora de forças locais e culturais. Lina funcionou dentro de uma rede muito entusiasta da época, de modernização da Bahia a partir do dinheiro vindo do petróleo”, explica. “A Bahia permitiu a ela consolidar muito da imagem que vinha formando como pensadora independente, arquiteta, pessoa ligada à cultura”, completa.
O maior exemplo dessa nova fase, cita, é a restauração do Solar do Unhão e sua transformação em Museu de Arte Moderna da Bahia (MAM), inaugurado em 1963. Também merece destaque o projeto piloto da Ladeira da Misericórdia, no Centro, em que Lina “recuperou o padrão tradicional de habitação nos andares superiores e comércio no térreo, em contraponto à ideia de recuperar o casario para fins turísticos”, explica.
Os casarões da Ladeira da Misericórdia, a Casa do Benin e a Casa do Olodum também assaram, no fim da década de 1980, pelas mãos de Lina. “Foram projetos isolados, como um grande colar de pérolas, que ela criou para conectar a vida cotidiana com a renovação urbana e garantir que as pessoas pudessem continuar vivendo”, resume Zeuler.
Veja a lista de obras de Lina para visitar no Brasil
MAM-BA foi transferido para o Solar do Unhão na década de 1960 (Foto: Divulgação) |
(Foto: Manuel Sá/ Divulgação) |
Sesc Pompeia (Foto: Divulgação) FONTE: CORREIO DA BAHIA - 02/06/2021 09H:20MIN |
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