Há quatro décadas, a população do Rio convive com os confrontos armados envolvendo facções criminosas. Na semana passada, mais três inocentes morreram vítimas desse conflito que se arrasta e não parece ter fim. Eles estavam em três vias de grande movimento — Avenida Brasil, Linha Vermelha e Rodovia Washington Luís — quando foram baleados na cabeça durante uma violenta reação do tráfico a uma operação da Polícia Militar no Complexo de Israel, na Zona Norte do Rio, território quase que inexpugnável comandado pelo Terceiro Comando Puro (TCP).
Mas como as facções cresceram a ponto de controlar imensas regiões do estado e de fazer frente ao poder das forças de segurança? Tudo começou nos presídios, de acordo com autoridades e especialistas. Isso vale para o TCP e o Comando Vermelho (CV), assim como para o grupo Povo de Israel (PVI), que, conforme mostrou o Extra na semana passada, atua atrás das grades aplicando golpes pelo celular.
Dados do Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos (Geni), da Universidade Federal Fluminense (UFF), indicam que a Região Metropolitana do Rio tem 18% de sua área sob domínio de algum grupo armado. As facções que travam guerras no Rio têm origens parecidas. Carolina Grillo, professora de Sociologia da UFF, lembra que o CV nasceu no Instituto Penal Cândido Mendes, na Ilha Grande, no fim da década de 1970, a partir de um “movimento social” que buscava melhorias nas unidades prisionais.
— Quando esses criminosos que estavam organizados no presídio saíram, se uniram ao tráfico, que já existia, e potencializaram a atuação e a estratégia de venda de entorpecentes. Antes da participação dos integrantes do CV, o tráfico gerava baixa lucratividade. Com a participação dos assaltantes de bancos que saíam dos presídios e a posterior entrada na rota do tráfico internacional de cocaína, a facção ganhou uma proporção enorme e recursos para dominar novos territórios — explica ela.
Uma série especial do Extra em julho apontou que o CV atua hoje em 21 estados e está numa guerra expansionista no Rio. Em dois anos, os criminosos já tomaram 19 comunidades da milícia — um movimento criado por agentes de segurança, que cobravam “taxa” sob a alegação de combater o tráfico e outros crimes. Além da briga com esses grupos, que exploram uma enormidade de serviços clandestinos em suas áreas, o CV está em disputa com o TCP no Quitungo, em Brás de Pina, no Morro dos Macacos, em Vila Isabel, e no Complexo da Pedreira, em Costa Barros.
‘Fase feudal’
Como lembra Bruno Paes Manso, jornalista e pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (USP), o TCP — inicialmente apenas TC — nasceu de uma dissidência do Comando Vermelho. Segundo Manso, a divergência começou quando um grupo passou a questionar os privilégios de alguns integrantes da facção e a relação deles com a administração de penitenciárias. Fora das unidades, ambas buscaram estabelecer controle no maior número possível de regiões para lucrar com a venda de drogas.
O controle armado do território foi estratégico desde o início das facções fluminenses. Para vender mais drogas, era necessário ter mais área. Com duas ou mais facções querendo o mesmo mercado, o conflito armado foi se intensificando. O Rio funciona ainda em fase feudal, cada território tem seu líder, suas regras e suas leis, estabelecidas com tirania — explica Manso.
No passar dos anos, o tráfico investiu na ampliação do seu poder bélico. Só este ano, até setembro, a polícia apreendeu 577 fuzis no estado.
— Historicamente, o CV tem um perfil de entrar em mais confrontos, enquanto o TCP visa estabelecer mais acordos com a parte corrupta das forças policiais para evitar conflitos. Em alguns lugares, os traficantes do TCP até pagam milicianos para fazer a segurança e evitar a participação direta nos embates — diz Carolina Grillo.
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Por isso, a reação do TCP à operação da PM na semana passada chamou a atenção. Para o secretário estadual de Segurança Pública, Victor César Santos, a atitude dos traficantes pode ser configurada como “terrorismo”.
— Talvez esteja surgindo uma criminalidade extremista no Rio. As vítimas estavam nas vias e não na linha de tiro entre os criminosos e a PM — disse. — Durante muito tempo, o Estado foi cobrado intensamente para combater as milícias. E isso abriu espaço para o crescimento de outras facções. Precisamos combater, igualmente, todas elas.
Fora dos embates, uma outra organização criminosa já conta com 18 mil integrantes — 42% do total de presos no estado. A Povo de Israel não controla territórios, mas conseguiu movimentar R$ 67 milhões em dois anos — sobretudo com a aplicação dos golpes de falso sequestros.
Essa facção também surgiu a partir de um movimento que buscava melhores condições na cadeia. Os primeiros integrantes eram estupradores e criminosos sem ligação com organizações que queriam ficar em celas separadas para que não fossem mortos.
Fonte: Por Roberta de Souza/Extraonline/reprodução 27/10/2024
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