Fabio Braga/Folhapress/ociólogo português Boaventura de Sousa Santos, em entrevista à Folha
Referência de militantes de esquerda em todo o mundo, o sociólogo
português Boaventura de Sousa Santos diz que há retrocessos em
segmentos dos direitos humanos no Brasil e critica a presidente Dilma
por demonstrar "insensibilidade social".
Segundo ele, isso fica "ainda mais evidente por conta [...] do
estilo Lula, que era de muito mais aproximação com os movimentos
sociais".
Para Boaventura, no entanto, Marina Silva (PSB) não representa uma
alternativa para a esquerda. Ele diz que sua eleição fortaleceria
correntes religiosas conservadoras. Além disso, entende que, na
economia, Marina seria um retorno ao que havia antes de de Lula. "Ela é
uma cara nova para a direita", afirma.
Boaventura veio ao Brasil para o lançamento de dois livros: "Se Deus
fosse um ativista dos direitos humanos" e "Direitos Humanos, democracia
e desenvolvimento", o segundo em coautoria com a filósofa Marilena
Chaui.
Folha - "Se Deus fosse um ativista dos Direitos Humanos" é um título
provocador. Sugere que o senhor acredita em Deus. E sugere que Deus
poderia dar mais importância para os direitos humanos. É isso?
Boaventura de Sousa Santos - De fato, não. O título é
provocador. Eu não me comprometo com a existência de Deus. Sou como
Pascal [filósofo francês, 1623-1662]: diria que não temos meios
racionais para poder afirmar com segurança se Deus existe ou não. O que
podemos é fazer uma aposta: apostar se existe ou se não existe. Como
sociólogo, o que penso é que há muita gente que aposta na existência de
Deus e que organiza sua vida ao redor disso.
Estamos num momento de fortes movimentos sociais em todo o mundo,
com protestos, muita indignação, muita revolta. Alguns desses
movimentos trazem no seu interior pessoas e grupos que seguem
diferentes religiões. Ou que transformam a religião e a existência de
Deus no motivo da ação ou num impulso para a ação. Portanto, eu tive
curiosidade de analisar. Esse fenômeno é extremamente ambíguo.
Quando surgiu a curiosidade?
Eu já tinha notado desde o Fórum Social Mundial de 2001, onde vi que
havia movimentos sociais e organizações de diferentes partes do mundo
com vivências religiosas, como a Teologia da Libertação e outros.
Tinham uma dinâmica de grupo onde o elemento religioso, espiritual, era
forte. Havia movimentos indígenas, para quem o elemento da
religiosidade é sempre forte. Essa dimensão do transcendente é que me
fascinou, pois eu venho de uma cultura eurocêntrica, que há muito tempo
tenho criticado, mas sou filho dela, por assim dizer. Essa cultura
tinha resolvido o problema através do que chamamos de secularismo, que
é expulsar a religião do espaço público.
A presença da religião na política está crescendo?
A religião nunca saiu verdadeiramente da política. Temos sociedades
que são laicas, mas cujos estados não são. É o caso da Inglaterra, por
exemplo. E temos sociedades onde a convivência é mais laica do que
outras. Tanto assim que hoje a gente faz distinção entre o secularismo
e a secularidade. Secularismo é uma atitude mais radical, de deixar que
a religião fique exclusivamente no espaço privado, na família, na vida.
Secularidade é aquela que permite que haja expressões [religiosas] no
espaço público como afirmação da própria liberdade de todos os
cidadãos.
Mas é evidente, a gente sabe, a maneira com que a Europa resolveu a
questão da separação da igreja e do Estado no século 17, depois de uma
guerra enorme, nunca foi uma separação total. A igreja continuou a ter
uma grande influência. Foi assim no esforço da colonização. Continuou
com grande influência, ainda tem, nas agendas que o papa Francisco
disse recentemente que são as agendas da cintura para baixo (risos),
acerca das orientações sexuais, aborto, divórcio. Obviamente são
questões de interesse público.
O que parece é que a crise do Estado secular trouxe uma maior
presença da religião no espaço público. No mundo árabe, no mundo
indiano e também no mundo ocidental. Começou a emergir nas televisões
religiosas, cada vez mais e sobretudo com as correntes evangélicas e
pentecostais. É uma presença pública muito mais forte, mas também um
interesse em influenciar a vida pública, a vida dos Congressos, dos
parlamentos. É o que acontece hoje no Brasil.
No Brasil isso parece mais evidente a partir da eleição de 2010,
quando o assunto chegou a dominar o debate eleitoral. Como tem sido no
resto do mundo?
Na Europa não é tão forte quanto aqui ou nos Estados Unidos. Mas
encontramos no próprio mundo islâmico, por outro lado, diferentes
formas de afirmação religiosa que não são todas fundamentalistas.
Algumas são bastante moderadas. Mas que também se recusam a pensar que
sua dimensão espiritual e religiosa não têm nada a ver com suas lutas.
Então o mundo hoje é mais diverso, e dessa diversidade, no meu
entender, faz parte uma maneira muito diversa de ver a religião na vida
pública. Isso está surgindo por todo lado, com formações bem distintas.
Algumas continuam na base da sociedade, como acontecia com a
Teologia da Libertação e as Comunidades Eclesiais de Base. Mas temos
nos últimos anos, no Brasil muito claramente, a influência [religiosa]
na própria cúpula do Estado, na estrutura política do Estado. Isso é
novo.
Era uma corrente que já vinha dos anos 80 dos Estados Unidos. Uma
corrente muito conservadora. Um dos grandes líderes dessa corrente nos
Estados Unidos fez uma previsão que praticamente se confirmou. Ele
disse assim: "quando um dia não houver uma grande diferença entre
democratas e republicanos, e se forem todos mais ou menos
conservadores, podemos começar a jogar golfe tranquilamente, pois
significa que cumprimos a nossa missão".
E a esquerda com isso? Seu livro é uma espécie de ajuste?
O pensamento crítico da esquerda, de uma sociologia crítica, sempre
foi muito renitente em analisar o fenômeno religioso. Pois qualquer
análise que não seja simplesmente dizer que religião é o ópio do povo
fica como suspeita.
Minha experiência no Fórum Social Mundial fez-me crer que, se eu
mantivesse essa atitude pouco complexa, eu deixaria fora da minha
análise muita gente que genuinamente luta contra a desigualdade, a
injustiça, a discriminação, a opressão. Não é gente alienada. É gente
que realmente luta por um mundo melhor e que, no entanto, tem uma
referência religiosa. Eu não posso considerar que isso é alienante.
Então escrevi esse livro também para fazer as contas comigo mesmo.
Qual é a sua conclusão?
Termino dizendo que não há um Deus. Há dois: o Deus dos oprimidos e
o Deus dos opressores. Enquanto a sociedade for dividida e houver tanta
desigualdade social, penso que o Deus que estiver do lado dos oprimidos
não se reconhece num Deus que esteja do lado dos opressores.
O outro livro é sobre direitos humanos, que parece refluir na medida
em que aumenta a influência religiosa. Alguns políticos têm como
principal plataforma o ataque aos direitos humanos. Quais são as
relações entre as duas coisas?
É obviamente uma estratégia religiosa. É uma dimensão de todas as
correntes conservadoras, de direita, que existiram ao longo do tempo.
Houve, de fato, uma igreja progressista, de esquerda, que achou que sua
missão era a missão evangélica do sermão da montanha, de estar com os
pobres. Os pobres não estão no parlamento, estão nos bairros, nas
favelas. E é para aí que os missionários devem ir. Mas há toda uma
outra corrente que nunca aceitou que igreja ficasse fora do governo.
Alguns deles entendem que a Bíblia, literalmente, dita o direito para
os Estados e que, portanto, os direitos humanos não pertencem a esse
direito bíblico. É como no mundo islâmico, onde há conceitos muito
hostis aos direitos humanos.
Então, de vários lados, estamos a assistir a um ataque aos direitos
humanos. Esse é o tema do meu outro livro, escrito por um sociólogo que
se considera um cidadão ativista dos direitos humanos.
Eu também faço uma crítica aos direitos humanos. Mas uma crítica
progressista: os direitos humanos são pouco. Então eles são criticados
por mim por serem poucos. E a direita critica por serem muito. Eu digo
pouco porque acho que a grande maioria dos cidadãos do mundo não são
sujeitos de direitos humanos, são objeto de discurso de direitos
humanos. São violados constantemente.
Agora, sobretudo após a queda do Muro de Berlim, em que as
narrativas socialistas caíram em desuso, pelo menos até agora, o que
ficou de luta por uma sociedade melhor foram os direitos humanos. Se o
socialismo estivesse na agenda política, eu tenho certeza que essa
direita religiosa incidiria completamente contra o socialismo.
Nessa questão dos direitos humanos, em que posição o senhor situa o Brasil hoje?
É uma leitura muito complexa. Há áreas e domínios dos direitos
humanos em que tivemos conquistas extraordinárias desde o governo Lula.
Eu considero [positiva] toda política de ações afirmativas, do
reconhecimento de que há racismo na sociedade brasileira e de que é
preciso tomar medidas para que afrodescendentes e indígenas possam ter
acesso à educação, numa tradição que vinha desde há muito tempo com
Abadias do Nascimento, mas que nunca teve êxito. Também o fato de criar
um Brasil mais inclusivo, mais diverso, mais colorido, com mais
consciência de sua diversidade étnico cultural. Penso que tudo isso foi
um grande avanço.
Onde eu vejo que há retrocesso é em toda a área dos direitos humanos
que trouxeram também no seu bojo aquilo que, para um
desenvolvimentista, pode ser considerado um obstáculo.
Os direitos humanos trouxeram consigo o reconhecimento dos direitos
coletivos. E os direitos coletivos do povos indígenas estão protegidos,
internacionalmente, por convenções, aliás, que o Brasil assinou,
sobretudo o convênio 169 [da Organização Internacional do Trabalho],
que obriga consulta prévia, livre, informada e de boa fé. E de boa fé!
E que, hoje em dia, depois da declaração das Nações Unidas de 2007
sobre os direitos dos povos indígenas, firma-se na jurisprudência da
Corte Internacional de Direitos Humanos que sempre que estejam em causa
a própria sobrevivência de um povo, seja uma barragem, seja um projeto
de mineração, a consulta deve ser vinculante. Bem, nesse caso, eu tenho
que dizer que tem havido retrocesso.
Não é só na demarcação de terras. Tem ainda a questão de saber se a
concessão de novas terras são atribuição do parlamento e não do
Executivo, o que seria a mesma coisa que dizer que nunca mais haverá
qualquer concessão.
Então eu acho que a presidente Dilma está a perder uma batalha, está
realmente com uma grande insensibilidade ao movimento indígena
camponês, que foi uma grande forma de transformação em toda América
Latina.
O senhor considera o governo Dilma de direita?
Eu venho da Bolívia, estive no Equador, conheço os outros países [da
região]. Alguns deles são muito mais à direita no governo, é o caso do
México. E lá estamos assistindo a uma grande vitória de um povo
indígena que lutou contra uma barragem, La Parota, e conseguiu
efetivamente parar essa barragem.
Eu colocaria a presidente Dilma no mesmo pé em que coloco o
presidente da Bolívia [Evo Morales] e o governo do Equador. São
governos que eu considero progressistas. Não os considero de direita.
Eles, de alguma maneira, fazem muito do que sempre fez a direita: têm o
mesmo modelo de acumulação, o mesmo modelo capitalista, o mesmo
neoliberalismo, aproveitaram a mesma onda de extrativismo, com a
reprimarização da economia.
Mas o que esses governos fazem e que a direita nunca fez na América
Latina foi redistribuir esses rendimentos de alguma maneira. Distribuem
muito mais que os outros governos. Para muitos grupos sociais, isso não
é suficiente. Até porque essa forma de redistribuição é relativamente
precária, não é com direitos universais, é algo que pode parar de um
momento para outro. Mas há problemas. Os ambientais são
extraordinários.
Qual o senhor citaria?
É certo que o Congresso é outra coisa. Mas eu fico espantado como é
que é possível, estando a frente do país alguém como Dilma Rousseff,
como é possível abrir uma discussão sobre a semente Terminator no
Congresso. É a semente que fica estéril, a suicida. Isso está suspenso.
É ilegal para o mundo inteiro. É um escândalo, se aprovar. Ela foi
suspensa no âmbito da convenção de biodiversidade exatamente porque
coloca os camponeses nas mãos da Monsanto e das outras três ou quatro
empresas que têm a patente. Isso é o fim da agricultura camponesa.
Em muitos países é a agricultura camponesa que alimenta as
populações, pois a grande indústria produz soja e outros produtos de
exportação. A diversidade da produção agrícola é feita por pequenas
propriedades, a agricultura familiar, a camponesa. Portanto isso
significa arrogância dessas empresas transnacionais que têm acesso ao
parlamento para ditar sua lei. E se você olhar bem, há uma aliança
entre os religiosos evangélicos e os ruralistas. Então aqui há uma
convergência de forças, uns que vêm da tradição ruralista, outros que
vêm de uma tradição religiosa de direita, que se armou contra o
comunismo e contra a revolução na América Latina.
Então não considero a presidente Dilma um governo de direita por sua
capacidade de distribuição, agora há uma grande insensibilidade, que
não vem de agora.
Onde mais há problemas?
Basta ver quantas vezes foram recebidas a CUT e outras entidades
antes desses protestos: zero. Portanto significa que a presidente Dilma
tem uma grande insensibilidade social, que se tornou ainda mais
evidente por conta da posição do Lula, ao estilo Lula, que era de muito
mais aproximação com os movimentos sociais. Isso perdeu-se. Eu
considero uma perda muito grave.
A ex-ministra Marina Silva tem um discurso mais próximo desses
segmentos que o senhor mencionou, meio ambiente, indígenas. Ela serve
para a esquerda?
Eu penso que não. Sou amigo da Marina Silva, estive em vários painéis
com ela e comungo com ela muitas causas ambientalistas. Mas acho que
não porque a influência religiosa no país iria nitidamente continuar a
desequilibrar. A dimensão religiosa que está por trás dela é uma
dimensão que, no meu entender, tem mais um potencial conservador do que
um potencial da Teologia da Libertação. Portanto é um potencializador
de uma interferência conservadora na sociedade.
Isso pode ter outras dimensões para os direitos das mulheres, dos homossexuais, para as diversidades sexuais.
Por outro lado, sua política econômica, por aquilo que tenho visto e
pelos apoios que ela recorre, é realmente uma tentativa de, com uma
cara nova, uma mulher, repor o sistema que estava antes. Seria
desacelerar ainda mais as políticas de redistribuição social que foram
aquelas que, no meu entender, mais caracterizaram o período Lula.
Não penso que a Marina Silva esteja muito sensível a isso tudo.
Então eu penso que ela é uma cara nova para a direita. Não é uma cara
para a esquerda, no meu entender.
Milhares de pessoas foram às ruas no Brasil para protestar por
diversas causas. Tudo muito rápido e inédito. O senhor tem alguma
reflexão sobre o que ocorreu no país?
Analiso os diversos movimentos que surgiram no mundo desde 2011: a
primavera árabe, o ocuppy [Wall Street, nos EUA], o dos indignados no
sul da Europa e na Grécia, o movimento "Yo soy 132", que é contra a
fraude eleitoral no México, o movimento estudantil do Chile em 2012 e
também os protestos no Brasil.
Considero que 2011-2013 é um daqueles momentos no mundo como nós
tivemos em 1968, 1917, 1848. São momentos de movimentos
revolucionários.
O que os caracterizam fundamentalmente hoje? São sinais de que, em
muitos países, estamos a entrar num processo de guerra civil de baixa
intensidade: uma grande agitação social porque as instituições não
funcionam propriamente. Na Europa, a rua é o único espaço público que
não está colonizado pelo capital financeiro. Nos EUA, a mesma coisa. Há
uma deterioração das instituições, uma ideia de que a democracia foi
derrotada pelo capitalismo. No sul da Europa isso parece muito claro, e
as ruas e as praças são os únicos espaços onde o cidadão pode se
manifestar.
Quem é esse cidadão?
É um cidadão diferente dos [cidadãos dos] processos anteriores. Um
erro do pensamento político foi pensar em cidadãos organizados que
fazem essas revoltas. De fato, não é assim. Essas revoltas são feitas,
normalmente, por jovens que nunca participaram de movimento social, de
partidos, que nunca votaram, nunca estiveram em nenhuma ONG. E de
repente estão na rua. Isso não foi só aqui. Foi no Egito, na Europa,
nos EUA. São movimentos que surgem a partir de momentos em que as
instituições parecem não dar respostas às aspirações populares.
Obviamente são diferentes. Não se pode pôr a primavera árabe ao lado do
Brasil ou do occupy. São coisas distintas.
O movimento do Brasil tem uma genealogia, uma história, semelhante
ao movimento dos indignados de Portugal, da Espanha e da Grécia. São
jovens democracias onde houve uma expectativa de uma social-democracia,
uma democracia com fortes direitos sociais, de educação, saúde,
transporte. Havia uma expectativa de uma sociedade mais inclusiva. Essa
era a promessa. A democracia não é simplesmente mero voto e a
representação política, mas se traduz em direitos sociais e econômicos.
Portanto nesses casos [Brasil e indignados], os movimentos surgem da
ruína dessas aspirações. Democracias suficientemente jovens para ainda
acreditar que eles têm esses direitos.
Os occupy já nem têm sequer essa ilusão, pois a democracia americana
é cada vez mais restringida e eu nem acho mais que é uma democracia a
sério nos EUA; eu vivo lá metade do ano, como você sabe, e conheço o
país.
Uma crise da democracia?
Aqui [no Brasil], a juventude se dá conta que aquela democracia que
ela acreditou não funciona, está sendo derrotada pelo capitalismo. Os
países dão mais atenção aos mercados internacionais, aos grandes grupos
transnacionais, do que dão aos seus cidadãos. Na Europa isso é muito
claro. O meu governo [Portugal] está mais atento à agência de
classificação Standard & Poor's, sobre o que ela dirá amanhã sobre
a taxa de rating do crédito português, do que as demandas dos
portugueses, as reivindicações. E quanto mais as pessoas vão para as
ruas, mais abaixa a nota do crédito internacional. Ou seja: a
democracia está sendo usada contra os cidadãos. A democracia é exercida
hoje contra o bem estar. Tinha-se a ideia que caminhávamos para um
estado de bem estar. De alguma maneira, hoje, o Estado é um Estado de
mal estar. O que aconteceu no Brasil, no meu entender, é essa
frustração.
Compartilha com os outros movimentos essa espontaneidade. E o fato
de não ser ideologicamente unitária, é o mais diverso possível. E com
demandas contraditórias. E com uma característica também comum em todos
eles: prevalece o negativo sobre o positivo. Esses grupos, que eu nem
chamo de movimentos sociais, chamo de presenças coletivas, sabem o que
não querer, mas não sabem bem o que querem. Podem ter uma demanda, como
foi o caso do Movimento Passe Livre, mas essa é uma demanda que
rapidamente pode ser superada por grandes demandas de superação do
Estado. Como aconteceu na Tunísia. O moço que se imolou na Tunísia
queria apenas que legalizassem o seu comércio de rua, e de repente
aquilo era uma luta contra a ditadura.
O que todos estão a dizer? Estão a dizer que o mundo está
escandalosamente desigual. Essa não é uma questão da pobreza. É que nos
países, internamente, a diferença entre ricos e pobres nunca foi tão
grande. Em meio aos maiores sacrifícios da sociedade portuguesa, com
cerca de 50% dos jovens até 25 anos sem emprego, o número de ricos
aumentou em Portugal nos últimos anos. E os ricos ficaram ainda mais
ricos.
Essa descrição não coincide exatamente com o que ocorreu no Brasil.
A distribuição de renda brasileira medida pelo índice Gini ainda é uma
das piores do mundo, mas melhorou.
Sim, está reduzindo [a desigualdade de renda], nunca tinha acontecido
antes, isso é preciso reconhecer. O que nós temos que ver, isso é minha
leitura, é que as políticas que foram criadas para essa redução ocorrer
--e por isso que eu digo que [Dilma] não é um governo de direita-- são
as que eu chamo de políticas de primeira geração. A segunda geração é
que essa gente que agora come bem, agora que tem algum apoio, quer
evoluir, quer ir para a universidade, quer outra qualidade dos serviços
públicos. E aí estancou.
O senhor disse que esses grupos sabem dizer o que não querem, mas
não sabem dizer bem o que querem. No Brasil, entre as coisas que eles
diziam não querer estavam os partidos políticos. Teve até hostilidade,
violência. O senhor vê isso com preocupação?
Sim, evidentemente. Mas ao mesmo tempo compreendo o que está ocorrendo.
É aquilo que eu disse, que a democracia representativa liberal foi
dominada e vencida pelo capitalismo, pela corrupção, pela presença do
dinheiro nas eleições, nas campanhas eleitorais. Isso faz com que os
representantes estejam cada vez mais distantes dos representados. É
aquilo que a gente chama de patologia da representação: os
representados não se sentem representados por seus representantes.
É um processo conhecido, pois há anos discute-se no Brasil a
necessidade de se fazer uma reforma política, uma reforma do sistema
eleitoral, do financiamento dos partidos. E todas essas reformas têm
sido bloqueadas. Então essa negação não é propriamente a negação da
democracia representativa. São duas ligações importantes: esta
democracia participativa não serve, o dinheiro não pode ter o poder que
tem hoje nas eleições; e a democracia representativa nas sociedades
complexas não chega, ela precisa ser complementada pela democracia
participativa.
Eu acho extraordinário que, no caso da primavera árabe --jovens de
vários países que não tiveram democracia propriamente-- a grande
bandeira é a democracia real. Portanto quando dizem que há luta contra
os partidos, não é que eles estejam dizendo que, em princípio, eles não
têm nenhuma validade. É esta forma de democracia, a do poder do
dinheiro, que está derrotada. E se ela não se alterar, temos altos
riscos para a sociedade. É por isso que eu digo, escrevi dois artigos
sobre isso, que há uma grande oportunidade: a oportunidade de uma
reforma política. Esse é grande tema com o qual o PT chegou ao poder,
não podemos esquecer.
Mas nos protestos ninguém levantou uma plaquinha sequer pedindo reforma política.
(risos) É por isso que eu digo: as pessoas não sabem o que querem,
sabem o que não querem. Como é que se faz formulação política? Para
sair daquilo que elas não querem, é preciso uma reforma política.
Obviamente. E é por isso que temos partidos.
Eu acho que cabe à classe política encontrar as soluções. Os jovens
não têm que saber [como fazer]. Nem dá para exigir que eles saibam.
Como é que vai fazer um serviço unificado de saúde suficientemente
robusto? Não têm que saber. Há técnicos e há políticos que vão fazer
isso. A reforma política é a mesma coisa. E a presidente Dilma deu uma
certa esperança quando falou nas cinco medidas que seriam tomadas e
incluiu a reforma política, mas, infelizmente, os poderes conservadores
do Congresso...
Foi nesse contexto que surgiram os grupos "black blocs", com a
tática de causar danos materiais para fazer suas denúncias. Eles
aparecem em tudo, da greve de professores à ação para libertar
cachorros de um laboratório de pesquisa médica. Qual é a opinião do
senhor sobre esses grupos?
Esses grupos nasceram nos anos 70 na Alemanha, na luta contra a energia
nuclear. Na década de 80, adquiriram uma ideologia autonomista. A ideia
de que "temos que criar na sociedade espaços de autonomia que não
dependem do capitalismo e que, portanto, podem oferecer outra maneira
de viver". Tiveram muita repercussão.
No momento em que começam os protestos contra a globalização, Seatle
(EUA) é o marco, eles começaram a assumir duas características de sua
tática: de um lado a ideia de violência contra propriedades símbolos do
capitalismo, que pode ser um McDonald's, um banco; de outro lado, a
defesa dos manifestantes. Eles assumiram isso. Em muitas mobilizações,
foram eles que, diante da violência policial, defenderam mais
eficazmente os manifestantes pacíficos. Então a violência policial, no
meu entender, é uma das grandes responsáveis pelo protagonismo "black
bloc". Eles enfrentavam. E a notícia muitas vezes passava a ser o
enfrentamento entre os "black blocs" e da polícia.
Um terceiro fator que complica, principalmente a partir do ano 2000,
isso está documentado, é que a polícia infiltra o "black bloc" para
depois justificar sua violência. Isso está demonstrado em vários
países. E este é o contexto em que nós estamos.
Mas como entender o "black bloc"?
Não são grupos de extrema-direita. Eu penso que, acima de tudo,
temos que entender por que surgem esses movimentos. E encontrarmos,
através do diálogo, formas de ver se estas são as melhores formas de
luta. No meu entendimento, como já disse, estamos num momento político
daquilo que chamo de guerra civil de baixa intensidade. Numa guerra
assim, queremos que cada vez mais gente venha para a rua. No meu
entender, para fazer pressão pacífica sobre os Estados.
Quando o capital financeiro será cada vez mais influentes, quando as
Monsantos conseguem pôr no Congresso a [semente] Terminator, quando os
evangélicos dominam a agenda política, quando os ruralistas dominam a
agenda política, os governos, mesmo que tenham uma orientação de
esquerda, precisam ser pressionados de baixo. A partir de baixo. E essa
pressão tem de ser pacífica. E tem de ser inclusiva. E para ser
inclusiva tem de trazer para a rua as pessoas que nunca foram para a
rua, os chamados despolitizados, as avós, os netos.
Ora bem, se é esse o objetivo, o "black bloc" é uma força
contraproducente. As pessoas querem ir para a manifestação, mas com
medo que haja violência, com medo da brutalidade e violência policial,
dizem ao final "não vamos". Penso, portanto, que o "black bloc" deve
analisar em que contexto nós estamos.
O ex-presidente Lula fez uma crítica direta ao uso das máscaras.
Disse que participou de muita manifestação de rua, mas que nunca usou
máscara porque não tinha vergonha do que fazia.
Eu acho que é uma posição legítima, mas não sei se é a única resposta
que se pode dar. As pessoas têm suas formas de representação. Exemplo
disso é o governo do Peña Nieto, o [partido] PRI, no México, que eu
considero de direita. Nas últimas manifestações, o protesto de
professores no México, teve a presença dos "black blocs" com as
máscaras negras. E chegou ao ponto também em que o governo está para
promulgar uma lei que proíbe as máscaras. Sabe qual foi a reação? Os
homossexuais começaram a usar máscaras pink. Foram para os protestos
com máscaras cor-de-rosa, máscara homossexual. Então a polícia vai
prender? Eles não praticam nenhuma violência, usam máscara agora para
afirmar a diversidade sexual.
Isso é para ver como a coisa é complicada. Criou-se uma
solidariedade entre os homossexuais e o "black bloc". Então, por vezes,
as autoridades se excedem na forma. Eu penso que essa não é a forma.
Penso que a forma é de dialogar, de trazer para uma mesa de conversa.
Obviamente é uma discussão muito difícil, mas é uma discussão que é
preciso ter.
Fonte:Entrevista concedeida a Ricardo Mendonça da folha de São Paulo /reprodução 26.10.13
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