COM A ONDA de negacionismo que assola o Brasil, nunca é demais falar em ciência, nem que seja para lembrar que a terra não é plana. Para escrever essa coluna, me inspirei no Isaac, que, mais de 300 anos atrás, descreveu alguns fenômenos importantes. De forma exageradamente simplificada, a primeira lei do Isaac dizia que todo corpo continua em seu estado atual, a menos que seja forçado a mudar por forças aplicadas sobre ele. Já a terceira lei do Isaac diz que para cada ação, existe uma reação de igual intensidade na direção oposta.
Vamos aos fatos. Em março de 2020, com a chegada da pandemia de coronavírus no Brasil, nosso grupo de pesquisas em Epidemiologia da Universidade Federal de Pelotas, a UFPel, propôs a realização de um estudo para avaliar a progressão do coronavírus no Brasil, o Epicovid-19. Ciente da gravidade dos fatos (que não se tratava de uma gripezinha), o Ministério da Saúde decidiu por financiar o projeto. Saímos do estado de repouso para o movimento, com aceleração constante. O Epicovid-19 foi iniciado e testou, entre maio e junho de 2020, quase 100 mil brasileiros e brasileiras, produzindo informações científicas até então desconhecidas no país:
1) A quantidade de pessoas expostas ao vírus, até o meio de 2020, era seis vezes maior do que o número de casos confirmados, que apareciam nas estatísticas oficiais.
2) Crianças possuíam o mesmo risco de contraírem o vírus SARS-CoV-2 do que adultos, mesmo que, felizmente, os casos tendessem a não ser tão graves.
3) Seis de cada 10 pessoas infectadas pelo SARS-CoV-2 perdiam o olfato e o paladar, um sintoma bastante específico desse vírus.
4) Entre os 20% mais pobres da população, o risco de infecção por SARS-CoV-2 era o dobro em comparação aos 20% mais ricos da população.
5) As pessoas indígenas apresentavam risco de infecção por SARS-CoV-2 muito superior aos demais grupos étnicos.
Com o nosso “corpo” se deslocando em linha reta, produzindo conhecimento sobre a covid-19 no Brasil, não havia a tendência de mudança, conforme Isaac nos ensinou em sua primeira lei. Eis que surge então a aplicação de forças nesse corpo. Num intervalo de poucas semanas, o Ministério da Saúde, incomodado com os resultados da pesquisa, atacou o Epicovid-19 duas vezes: primeiro, procurando minimizar o resultado do maior risco de contaminação entre os indígenas, e depois optando por descontinuar o financiamento da pesquisa.
Talvez pelo negacionismo, não notaram que a terceira lei do tal Isaac então atuaria. A reação, no sentido oposto à força original aplicada, foi devastadora. Em relação aos dados que mostravam o maior risco de infecção entre os indígenas, o resultado foi divulgado no dia seguinte nos principais veículos de comunicação do Brasil e do mundo. Semanas depois, os achados foram publicados no prestigiado Lancet Global Health. Se o objetivo era esconder a realidade dos fatos, eles acabaram ainda mais visíveis. Em relação ao corte de financiamento da pesquisa, a reação foi rápida e, também, devastadora. Em poucas semanas, o projeto obteve financiamento de outras instituições e o Epicovid-19, já conhecido naquela época, tornou-se ainda mais conhecido.
Fosse um jogo, o placar já era 2×0 para o time do Isaac contra o time do Jair, em dois contra-ataques rápidos e devastadores.
Aproxima-se então o final de 2020 e a Universidade Federal de Pelotas conduz seu processo eleitoral para escolha dos próximos dirigentes. Um processo democrático, conduzido respeitando integralmente a legislação vigente. Ao final do processo, o professor Paulo Ferreira Jr é eleito para o cargo de reitor da universidade pelos quatro anos seguintes.
A universidade também seguia seu movimento em linha reta e aceleração constante. Não havia qualquer justificativa para aplicação de forças capazes de modificar essa trajetória: desde Fernando Henrique Cardoso até Michel Temer, passando por Lula e Dilma Rousseff, havia uma tradição de respeitar a vontade das comunidades universitárias e nomear o primeiro colocado das listas tríplices enviadas ao governo federal nos termos da lei.
Mas, novamente, negacionistas que desconhecem as leis do Isaac, aplicaram forças autoritárias sobre o corpo que se deslocava. O governo desrespeitou o desejo da comunidade universitária e deixou de nomear o vencedor da eleição. E, novamente, conforme o Isaac nos ensinou mais de 300 anos atrás, veio a reação.
Ao sofrer o terceiro gol e notar que virou goleada, o time negacionista acusou o golpe e passou a utilizar uma metralhadora giratória (agora liberada para os “cidadãos de bem”). Desesperado, o time anti-ciência escalou então um jogador desconhecido, do sul do país, para atacar o time adversário.
Ao anunciar a decisão inédita em uma live com milhares de participantes, a UFPel escancarou ao Brasil a arbitrariedade da decisão do governo federal, de não respeitar a escolha democrática da sua comunidade. O assunto ganhou espaço na mídia e nas casas de milhões de pessoas.
Eis então que o jogador desconhecido, escalado pelo time negacionista, colocou os pés pelas mãos e partiu para mais um ataque, protocolando uma denúncia descabida, que faz referência a um período que a população brasileira gostaria de jamais reviver e, exatamente por isso, não pode jamais esquecer.
O problema é que isso foi feito, mais uma vez, sem considerar a terceira lei do Isaac, de que toda ação gera uma reação. A denúncia foi analisada pela Controladoria-Geral da União e o tiro saiu pela culatra. Ao assinar um Termo de Ajustamento de Conduta, sem reconhecimento de culpa, o time democrático garantiu o arquivamento do processo. E a reação da população brasileira foi maciça. Independentemente das posições ideológicas de cada um, todos os cidadãos brasileiros querem ter sua liberdade de expressão garantida.
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