As equipes precursoras de Bolsonaro aumentam o número de dias das viagens e aproveitam para fazer turismo às custas do dinheiro público
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Apesar da confraternização, aquela segunda-feira contou como um dia de trabalho para Marcelle Marques e seus colegas. Lotada no Gabinete de Segurança Institucional (GSI), comandado pelo general Augusto Heleno, Marques viajou para Aracaju como integrante da “equipe precursora”, nome que se dá ao grupo que prepara o esquema de segurança nos locais que serão visitados pelo presidente da República. No vocabulário do GSI, essas equipes precursoras são chamadas de Escav – ou Escalão Avançado. Cuidam da segurança, da infraestrutura e do cerimonial. Em geral, o Escav tem entre 40 e 60 pessoas de diversos órgãos, mas a maioria é do GSI.
Naquela semana de janeiro, o presidente Jair Bolsonaro iria a Sergipe inaugurar uma ponte em Propriá, uma pequena cidade de 30 mil habitantes a cerca de 100 km da capital. O presidente só chegou na quinta-feira, dia 28, mas a sargento Marques e seus colegas voaram para Aracaju no domingo, dia 24. Ficaram hospedados no Primme Hotel, localizado a uma quadra da praia, num bairro nobre da capital sergipana. Logo depois que chegaram, como de praxe, foram vistoriar o local da solenidade em Propriá. Cumpriram essa tarefa no próprio domingo.
Como não havia mais o que fazer nos dias seguintes, os integrantes do Escav, então, curtiram as praias e os restaurantes de Aracaju e fizeram um pouco de turismo na segunda e na terça-feira. Só voltaram a trabalhar na quarta, dia 27, na véspera da chegada de Bolsonaro, quando o protocolo determina que deve ser feito um ensaio geral do trajeto que será percorrido pelo presidente. Horas depois da inauguração da ponte, na quinta-feira, todos embarcaram de volta para Brasília.
O Escav não precisa chegar com tanta antecedência ao local que o presidente visitará, exceto em casos excepcionais. Normalmente, basta uma viagem de, no máximo, três dias. No primeiro dia, vistoriam o lugar e reúnem-se com os integrantes do Ministério, órgão ou empresa que tenha sugerido a viagem ao presidente. No segundo dia, fazem o ensaio geral. No terceiro, acontece a solenidade, e está tudo acabado. As equipes precursoras de Bolsonaro, no entanto, costumam viajar com mais antecedência do que o necessário. Nos governos de Lula e Michel Temer, as viagens do Escav duravam 3,6 dias, em média. No governo Dilma, a média era de 3,7. No governo Bolsonaro, a média subiu para 5 dias, o que dá margem para passar ao menos um dia na praia, nas compras ou no turismo. Os dados foram fornecidos pela Secretaria-Geral da Presidência por meio da Lei de Acesso à Informação. Os números referem-se apenas a viagens nacionais.
O coronel Eduardo Alexandre Bacelar, chefe do Departamento de Coordenação de Eventos, Viagens e Cerimonial Militar (DCEV), órgão subordinado ao GSI, é quem tem a responsabilidade de definir a duração das viagens precursoras. Procurado pela piauí para explicar por que a média de tempo das operações no governo Bolsonaro aumentou tanto, o GSI afirmou, por meio de nota, que “o prazo de cinco dias está dentro das normas vigentes” e levantou dois pontos.
O primeiro é que, nos governos anteriores, “muitas viagens foram realizadas a Porto Alegre-RS e São Paulo-SP, sedes das residências particulares dos ex-presidentes”. Como havia escritórios do GSI nessas cidades, segundo a nota, o tempo de viagem do Escav era menor, o que impactou a média geral. Mas não explicou por que a média geral sob Bolsonaro não sofreu o mesmo impacto, já que o GSI também tem escritório no Rio de Janeiro, cidade onde fica a residência particular de Bolsonaro e para ele onde viajou pelo menos 13 vezes no ano passado.
No segundo ponto da nota, o GSI informa que “grande parte das viagens” de Bolsonaro “tem sido direcionadas a outros estados, não raras vezes com mais de um evento”. Ou seja: enquanto os antecessores viajaram muito para as cidades onde têm residência privada, Bolsonaro viajou para “outros estados”, o que explicaria as visitas prolongadas do Escav. Só que as estatísticas mostram outra realidade. Do início do seu mandato até agora, 86% das viagens nacionais de Bolsonaro tiveram como destino “outros estados” (no caso, outras cidades além do Rio). Nos dois mandatos de Lula, considerando que a cidade de São Paulo fosse sua residência (era São Bernardo do Campo), foram 87% de viagens para “outros estados”. No caso de Dilma, cuja residência ficava em Porto Alegre, o número é ainda maior: 92%.
Por fim, ao ser informado sobre as fotos nas redes sociais que mostram funcionários do GSI divertindo-se em dias de trabalho, o GSI afirmou que “não compactua com qualquer desvio de conduta de seus integrantes”.
“A viagem a Aracaju foi mais uma viagem de férias”, diz uma integrante do Escav que esteve em Sergipe e falou com a piauí sob a condição de não ter seu nome revelado. Ela teme sofrer retaliações dentro do GSI. “O nosso trabalho pode ser feito em menos tempo. Estamos ficando ociosos, e algumas pessoas tiram proveito disso.” Outro militar que também pediu anonimato afirma que, entre a turma das comitivas presidenciais, a brincadeira é dizer assim: “O que acontece no Escav, fica no Escav.” Eles e outros colegas têm se incomodado com a duração e a frequência das viagens em meio à pandemia. Segundo eles, parte do GSI enxerga as viagens do presidente como – na expressão deles – “pacotes da CVC”.
A viagem a Aracaju está bem documentada nas redes sociais, pois a sargento Marques não foi a única a postar fotografias. Outros dois sargentos do Exército, Leonardo Prismann Feijó e Flavio Vieira Veloso, ambos colegas da sargento no GSI, também tiraram fotos na praia naquela segunda-feira e postaram as imagens no Instagram. Sabe-se que estavam todos juntos porque, nas fotografias, pode-se ver a presença de todos. Foi, como demonstram as imagens, uma segunda-feira de diversão.
Pelos cinco dias que passou em Aracaju, a sargento Marques recebeu um total de 910 reais em diárias – uma remuneração extrassalarial destinada, em geral, a compensar o funcionário pelo esforço da viagem e bancar despesas de alimentação. (Segundo dados do Portal da Transparência, o salário bruto da sargento era de 7,4 mil reais em setembro do ano passado.) As demais despesas de viagem – transporte, hospedagem – são bancadas pelo dinheiro público. Ao todo, sessenta funcionários do GSI e outros órgãos viajaram à capital sergipana em janeiro, consumindo 46,5 mil reais em diárias. Entre eles, 35 chegaram a Aracaju no domingo e só voltaram para Brasília na quinta.
Procurados, os sargentos Marques, Prismann e Veloso não atenderam aos telefonemas nem responderam às mensagens enviadas pela piauí, mas foram todos informados do que se tratava a reportagem. Minutos depois de ser procurado, Prismann tornou privadas as suas fotos no Instagram, o que impede que sejam acessadas pelo público em geral. Veloso, depois de acionado pela piauí, também fechou suas fotos na rede social. Marques não precisou fazê-lo porque, antes de ser procurada pela revista, suas imagens já eram fechadas.
Wilton Naimaier Pontes, major do Exército, que também esteve na viagem de Aracaju, passa boa parte do ano viajando com o presidente e registra tudo em suas redes sociais. No começo de abril, o major foi até Foz do Iguaçu, no Paraná. Junto com a equipe coordenada pelo GSI, desembarcou em Foz no sábado, dia 3. Ficaram hospedados no JL Hotel by Bourbon, um quatro estrelas próximo ao Centro da cidade. Bolsonaro só aterrissou ali na quarta-feira, dia 7, quando participou de dois eventos: a posse do novo diretor-geral brasileiro da Usina de Itaipu e a cerimônia de inauguração de uma nova pista no Aeroporto Internacional de Foz do Iguaçu, tudo na mesma quarta-feira.
A equipe precursora, tendo chegado a Foz com dias de antecedência, teve tempo para passear e fazer compras. No domingo, o major Pontes publicou no seu Instagram uma foto em frente à Catedral Nossa Senhora de Guadalupe, ponto turístico da cidade. Na postagem, o sargento Prismann, colega de Escav, comentou: “Showw”. Na segunda-feira, o major usou a área do WhatsApp que pode ser acessada pelos seus contatos e postou algumas fotos do seu dia de trabalho. Nas imagens, ele aparece segurando uma cerveja Duff – do seriado Os Simpsons – enquanto atravessa a Ponte da Amizade, que liga o Brasil a Ciudad Del Este, no Paraguai. Na legenda de uma das fotos, pode-se ler: “Tomar uma gelada no Paraguai em homenagem ao Homer Simpsons… tour de compras com os amigos.”
Foz do Iguaçu é um cenário recorrente nas redes sociais de integrantes do GSI. Um mês antes, a mesma sargento Marcelle Silverio Marques publicou no Instagram uma foto no Macuco Safari, famoso passeio de barco que passa ao lado das Cataratas. “Uma experiência incrível”, escreveu ela na legenda. Outros integrantes da comitiva aparecem na foto, aglomerados e sem máscara. Estavam todos a trabalho, mas a equipe, mais uma vez, teve tempo de sobra na viagem. Chegaram a Foz no dia 21 para cuidar da segurança de uma solenidade que só aconteceria no dia 25, quando Bolsonaro participou de um evento em Furnas.
O salário bruto do major Pontes, segundo dados do Portal da Transparência, é de 20,3 mil reais. No ano passado, ele ganhou pelo menos 17,1 mil reais com diárias de viagens da Presidência –– quanto mais tempo viajando, mais diária se recebe. Em dezembro, por exemplo, o major publicou fotos de seu trabalho em Porto Seguro, no litoral da Bahia. O pessoal do Escav chegou na segunda-feira, dia 14, para trabalhar num evento que só se realizou na quinta-feira, dia em que Bolsonaro e outros ministros – entre eles, o general Heleno, chefe do GSI – foram até a cidade para a assinatura de medidas provisórias de estímulo ao setor produtivo. Com tempo sobrando, major Pontes pegou uma praia com os colegas, tirou uma selfie na piscina do hotel e passeou – como mostram as fotos que ele próprio postou nas redes sociais.
Procurado pela piauí na segunda-feira, dia 19, o major Pontes atendeu o telefone, mas, ao saber do assunto, pediu para conversar só no fim do dia. Desde então, não respondeu mais aos contatos feitos por ligação ou por mensagem. Mas, pouco depois do primeiro contato com a reportagem, o major fechou o acesso público às suas fotos no Instagram, como fizeram seus colegas. Mais tarde, tomou uma medida mais radical: apagou sua conta da rede social.
A extensão exagerada de algumas viagens parece evidente quando se comparam dois episódios ocorridos em novembro do ano passado. Num deles, Bolsonaro fez uma viagem de emergência a Macapá, que então enfrentava um apagão. O Escav, composto por 59 membros, resolveu tudo com rapidez. Chegou à capital do Amapá num dia, fez o que tinha de fazer, recebeu o presidente no dia seguinte e voltou para Brasília. A operação durou menos de 48 horas. “Eu estava lá”, diz um dos militares ouvidos pela piauí. “Sou a prova de que dá para fazer tudo nesse prazo. Os mesmos protocolos foram adotados, a diferença é que não tivemos dias de lazer.”
Também em novembro, numa viagem que não tinha nada de emergência, Bolsonaro foi a São Paulo participar de um encontro com investidores e visitar a sede da CNN Brasil. Nesse caso, o pessoal coordenado pelo GSI chegou à capital paulista no sábado, dia 21. No dia seguinte, um grupo postou fotos celebrando a festa de 17 anos do Bar Samba, na Vila Madalena. “Zero trabalho e farra, q hoje pode”, diz a legenda de uma das fotos que circularam em grupos do WhatsApp do GSI. Bolsonaro só chegou à capital paulista na quarta-feira, dia 25. Os precursores, com diárias que custaram 44.369 reais aos cofres públicos, estavam na cidade havia quatro dias.
FONTE: LUIGI MAZZA/20abr2021_17h03/REVISTA PIAUÍ -REPRODUÇÃO 18h:50min.
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