Onde está Julia Emilia Mello Lotufo, viúva do miliciano Adriano Magalhães da Nóbrega? Nem a revogação da prisão de preventiva para domiciliar - cedida pelo Superior Tribunal de Justiça na última semana devido ao fato dela ter uma filha menor de idade - fez com que a mulher do poderoso chefão do Escritório do Crime se entregasse. O grupo que seu marido (bandido de alto escalão das máfias do Rio de Janeiro) comandava é uma espécie de consórcio que reúne paramilitares que dominavam a comunidade de Rio das Pedras, na Zona Oeste, e assassinos que matam sob encomenda.
Foragida da Justiça desde 22 de março, Julia diz, por intermédio de seus advogados, que teme pela sua vida. Seu ex, com quem ficou por mais de dez anos, foi assassinado na Bahia em fevereiro de 2020 durante uma operação policial, em circunstâncias ainda não totalmente esclarecidas pelas autoridades.
Embora alegue inocência, a documentação reunida pela Polícia Civil e pelo Ministério Público do Rio de Janeiro,
obtida por VEJA, mostra o contrário: Julia gerenciava a fortuna criminosa, baseada em complexos esquemas de
lavagem de dinheiro, agiotagem, cobrança de aluguéis irregulares e outras atividades obscuras, escamoteadas
em codinomes. Por meio de uma foto armazenada no celular da parceira no amor e nos negócios escusos de
Adriano, os investigadores conseguiram visualizar uma planilha que dimensiona um pedaço da fortuna
milionária e ilegal do ex-capitão da Polícia Militar, expulso dos quadros da corporação em 2014 por
envolvimento com bicheiros. Apenas no mês de maio de 2019, quando Adriano estava foragido, Julia registrava
as entradas de dinheiro nos bolsos cheios do miliciano: 1 845 111,43 de reais, provenientes das mais variadas
fontes possíveis, tais como aluguéis irregulares de Rio das Pedras,
juros cobrados por atrasos em pagamentos na mesma comunidade, agiotagem, extorsões, arrecadações de
dívidas variadas, consórcio de carros, e por aí vai.
Algumas anotações cifradas, no entanto, chamam a atenção. Não se descreve o que seria o “Apoio”, no valor
de 80 000 reais, tampouco “Compromisso”, de 14 000 reais, e muito menos “Particular”, que corresponde
a uma generosa cifra de 132 500 reais no cofre criminoso do paramilitar. Mas a trinca de somas suspeitas traz
indícios de que as contas do miliciano eram fartamente irrigadas por diferentes patrocinadores ocultos de
suas atividades ilegítimas no Rio.
Caçador silencioso de vítimas encomendadas por políticos e contraventores, o ex-sniper do Batalhão de Operações Especiais (BOPE) da PM do Rio era conhecido pela sua extrema discrição. Todos os seus negócios do crime eram gerenciados por
laranjas de Rio das Pedras e comparsas da corporação, muitos deles policiais da ativa. Há poucos registros em
celulares sobre Adriano porque, conforme as investigações que tornaram Julia foragida mostram, ele usava uma
tecnologia chamada de celular ponta a ponta, ou seja, quando dois aparelhos são previamente programados
para receber e fazer chamadas somente entre ambos. Era uma das exigências do chefe do Escritório do Crime, em
cuja posse foram achados 13 telefones diferentes quando foi morto no ano passado. O inteiro teor da perícia
desses equipamentos ainda não foi demonstrado pelo MP do Rio.
Parte do esquema milionário criminoso de Adriano era feito por meio de duas empresas: a Cred Tech Negócios
Financeiros, uma factoring criada para fazer empréstimos a juros extorsivos (que chegavam a incidir 22% a mais
sobre o valor cedido), e a Lucho Comércio de Bebidas, cuja intenção era lavar dinheiro de seu império da
bandidagem. Em conversas interceptadas pelas investigações, pessoas próximas a Julia admitem que a segunda
empresa pertencia a ela e ao companheiro.
Ambas as empresas tiveram o soldado da PM Rodrigo Bittencourt em seu quadro societário. Ex-marido de Julia
e pai da filha dos dois, ele é apontado como um dos laranjas e um dos principais gerentes das movimentações
criminosas de Adriano. Preso em março, seus rendimentos mensais da PM giravam em torno de 4 000 reais, e
eram incompatíveis com as somas de milhares de reais que movimentava por mês. Relatório do Conselho de
Atividades Financeiras (COAF) aponta que, entre agosto de 2018 e maio de 2019, ele operou por volta de 1,4 milhão de reais em sua conta pessoal.
A Cred Tech, também uma empresa de fachada de Adriano, chegou a ter suas contas irrigadas com 1,9 milhão
de reais no mesmo período analisado. A movimentação da firma foi considerada incompatível com o valor
de 50 000 reais, que foi oficialmente declarado. O negócio chegava a confiscar bens para saldar os empréstimos
extorsivos, como carros. Em uma busca e apreensão realizada pelos investigadores em fevereiro de 2020, foram
encontrados 124 600 reais em dinheiro vivo com Daniel Haddad, primo de Rodrigo Bittencourt, também preso
por envolvimento no laranjal de Adriano. Já a Lucho Comércio de Bebidas seria usada para limpar o dinheiro
obtido por intermédio das atividades ilegais da outra empresa.
Depois da morte do líder do Escritório do Crime, a disputa pela sua herança espúria foi ávida e intensa. Julia
não se dava muito bem com a família de Adriano, que administrava parte dos bens, como as cabeças de gado que
eram mantidas no Haras Modelo, apreendido pelo MP do Rio no final de março. Alguns dos seus comparsas,
inclusive, chegaram a se demonstrar exaustos em participar das brigas de família. Uma negociação envolvendo
uma considerável quantia de gado depois do chefe do Escritório do Crime morrer chegou a render 550 000 reais
ao grupo criminoso. Outros bens, como carros, foram vendidos. Um dia depois que escutas vieram à tona, no último dia 20 de março, um dos aliados do bandido foi assassinado a tiros de fuzil na porta de casa, conforme VEJA revelou. Mais de um
ano após sua morte, o espólio criminoso de Adriano parece seguir sob disputa.
fonte: Veja.com 06/05/2021 /reprodução
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