Há seis décadas, Gilberto Gil escrevia que em terra que não há mar, seu coração também não bate. Pois mar - de gente - foi o que o público da capital baiana formou, na Bienal do Livro Bahia, para ouvi-lo falar sobre a obra literária "Todas as Letras", que compila cerca de 500 canções que deram ritmo aos seus 60 anos de carreira.
Fazer parte do pedacinho de oceano cantado por Gil na música Beira Mar,
no entanto, não foi tarefa fácil. As irmãs e professoras de inglês, Flávia
Menezes, 51, e Aline Menezes, 55 anos, chegaram na Arena Jovem - espaço que
sediou o bate-papo - três horas antes do início da apresentação, que estava
marcada para as 17h.
"Gil é rei, por isso, sabíamos que iria lotar. Eu não moro mais em
Salvador e venho apenas passar férias, então, se até a folga coincidiu com
este dia, eu jamais poderia faltar", afirmou a irmã mais velha que, além
de fã do artista, é a fundadora de um grupo que há cinco anos se reúne uma vez
por mês para ouvir e analisar as canções escritas por ele.
Não teve quem não medisse sacrifício. O vendedor Jorge Cruz, 58 anos,
chegou na Bienal às 13h30, e sentou na primeira fileira, de onde não saiu
nem para beber água.
"Hoje é dia de esquecer a fome, sede ou o que mais surgir, por
algumas horinhas. Gil é a trilha sonora da minha vida e a cada minuto que passa
vejo que é a de muitas pessoas também, porque esse lugar não para de encher.
Essa é mais uma prova do quanto o esforço de estar aqui vale a pena",
declarou o admirador.
Letrista, melodista, instrumentista, ex-ministro da Cultura, além de
membro da Academia Brasileira de Letras, Gil é um dos mais sensíveis e
inventivos artistas em atividade, reconhecido e admirado no mundo, por
contribuir para a transformação do conceito de letra de música ao lhe dar status
de poesia.
Com palmas, cada um desses títulos foi reverenciado pelo público quando
Gil subiu ao palco. Ele, por sua vez, usou sua primeira fala para agradecer a
presença da multidão e o carinho que dali emanava, tão intensamente, que podia
ser sentido de longe.
Ao lado do letrista Carlos Rennó, responsável por reunir as músicas de
sua carreira no livro Gilberto Gil: Todas as Letras, e do jornalista Claudio
Leal - mediador da conversa -, Gil relembrou o início do seu movimento político
de negritude e religião. Patuscda de Gandhi é a primeira canção e poesia
com tais características que seguem em outras 74 músicas, segundo contabiliza
Rennó.
"Foi logo quando eu voltei do exílio [...]. Aí eu disse 'bom, está
na hora de saber propriamente o que é o candomblé, agora que eu já tenho mais
noção das minhas origens, sabendo o negro que sou e o que isso significa na
Bahia, no Brasil e a importância que tem para todo o campo das vivências
sociais'", conta Gil.
Rennó, como um admirador do artista, descreve a construção do livro como
a maneira encontrada por ele de homenagear Gilberto Gil e sua história.
"Honrando um compositor que é muito importante na minha vida e fazendo
aquilo que eu mais amo, que é letra de música e poesia", afirma o
escritor.
Na conversa que seguiu por quase uma hora e meia, Gil ainda falou sobre
a situação política do país, de quando se tornou letrista e da sua
"estrela que ascendeu ao céu", Gal Costa, que, além de amiga do
artista, interpretou 24 canções escritas por ele.
"A ancestralidade dela é uma coisa que transpassou nossos ouvidos e
olhares. Ela fez um papel majestoso como cantora. Chegou lá e todos nós sabemos
desse lugar que ela chegou e desse alcance", declarou.
Aos 80 anos, mesmo vindo de uma geração mais velha, ao lado de Gal,
Caetano e Bethânia, a continuidade de Gil reflete ainda nos mais jovens. A
estudante de direito Beatriz Paula, 20 anos, assistiu admirada, ao lado de
outros três amigos, às palavras ditas pelo ídolo que herdou de sua mãe.
"Imortal, é o que ele é. Só agradeço a minha mãe por ter me mostrado ele,
para que eu possa fazer o mesmo para os meus futuros filhos", disse.
Fonte: Emilly Oliveira *Com orientação da subchefe de reportagem Monique Lôbo/Correio da Bahia 15/11/2022 c/adaptações
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