sexta-feira, 30 de novembro de 2018

Bahia: Cupins constroem cidade milenar no subsolo da Chapada Diamantina


Campo de murundus na região da cidade de Palmeiras, na Chapada Diamantina (Foto: Jaime Sampaio/AFP)-reprodução
No luar do Sertão baiano, há cerca de 4 mil anos, começou a ser erguida aquela que é, provavelmente, a maior cidade construída por um ser vivo na superfície da Terra. Nome nem tem, mas em extensão territorial vai longe: caberia nela uma Grã-Bretanha! Aliás, vamos de comparações mais próximas: a área é equivalente a 330 cidades de Salvador; ou dois estados de Pernambuco; ou quase metade da Bahia. Sim, a bicha é grande, mas seus habitantes – reclusos e discretos, de hábitos noturnos –, bichos bem pequenininhos.
Construída por cupins da espécie Syntermes dirus, que mede aproximadamente 1 cm e se alimenta basicamente de folhas secas, a cidade subterrânea que fica quase totalmente em território baiano (cerca de 90%) virou notícia internacional, esta semana, após a publicação numa revista norte-americana de um artigo científico comandado por um pesquisador com doutorado na Universidade Estadual de Feira de Santana (Uefs).
Americano naturalizado brasileiro, o biólogo Roy Funch, 70 anos, já havia percebido há muito tempo que os montes de areia feitos por cupins, conhecidos como murundus, eram muito frequentes na região de Lençóis, cidade da Chapada Diamantina onde mora há mais de 40 anos. No entanto, tardou a encontrar parceiros para estudá-los a fundo.
“Quando cheguei aqui, comecei a reparar esses montes. Em 1986, escrevi um pequeno artigo sobre os murundus para a revista Ciência Hoje, esperando alguém mostrar interesse para assim pesquisar, mas nada aconteceu. Então, quase 30 anos depois, eu pensei: ‘ah, vou investigar’. E iniciei a pesquisa em 2011”, contou ele ao CORREIO.
Com a ajuda de pesquisadores estrangeiros, nos últimos três anos, as descobertas foram impressionantes. Uma delas, vista do solo, dava conta de certo padrão entre as formações: cerca de 9 metros de diâmetro e 2,5 metros de altura por montículo. 
Outros achados, agora vistos do alto, também chamaram a atenção. Primeiro por outro padrão sobre a distância dos murundus: cerca de 20 metros entre eles. Depois, a estimativa de que haja 200 milhões deles, formados a partir da construção da rede subterrânea que compõe o grande cupinzeiro. 
“A quantidade de material que os cupins mexeram para deixar esses montes cobriram uma área enorme e é algo inédito no mundo”, comenta Funch, que nasceu perto de Nova York, mas encontrou seu lugar no universo, por acaso, ao visitar a Cachoeira da Fumaça, em 1977. “Foi amor à primeira vista na Chapada Diamantina”, diz ele, que se mudou para a Bahia no ano seguinte – atualmente é casado, tem cinco filhos e sete netos baianos.
Estudo mostra extensão dos cupinzeiros: área é do mesmo tamanho da Grã-Bretanha (Foto: Reprodução)
Acaso
Foi bastante por acaso, também, que Roy Funch encontrou os parceiros ideais para estudar o maior exemplo conhecido de bioengenharia e construção na superfície da Terra por uma espécie não humana. 

“Eu tava fazendo pesquisas aqui no campo, em Lençóis, durante vários anos. Aqui é uma cidade turística e, num dia, estava indo tomar banho no rio e vi duas pessoas. Uma delas era obviamente um gringo e eu encostei para bater um papo. É sempre bom encontrar pessoas novas, e ele me falou que era entomólogo (cientista que estuda insetos)”, relembra Roy, citando o primeiro encontro com Stephen J. Martin, da Universidade de Salford, em Manchester, Inglaterra.
“Ele disse que viu os montes de terra e que achava que era casa de cupim. Disse que procurou na internet e não achou nada publicado sobre eles. E eu falei: 'ô, rapaz, você encontrou com a única pessoa na Bahia, provavelmente no Brasil, que tá estudando esses bichos'. E foi um choque incrível, porque ele é um crânio (referência) em insetos sociais como abelhas, cupins, formigas. Aí a gente passou uns três dias falando sobre isso e decidimos se juntar para a pesquisa”, relatou Roy.
O biólogo Roy Funch, "chapadense com orgulho", em frente a um dos murundus (Foto: Divulgação)
A sequência de acasos continua com a forma como ele conheceu a pesquisadora Eun-Hye Yoo, professora do Instituto de Geografia da Universidade de Buffalo, Nova York, especialista em estudos espaciais. Numa pizzaria de Lençóis, de novo numa conversa despretensiosa com turistas aleatórios, comentou sobre a pesquisa, e encontrou a nova aliada. “Eu falei com ela sobre o projeto, e ela aceitou”. E foi daí que saiu o georreferenciamento que permitiu estimar onde estão os murundus, fechando a conta dos 230 mil km² de área dessa Atlântida fora d’água.
“Dá para ver muito nitidamente os murundus no campo, inclusive pelo Google Earth. Tivemos um mapeamento dos locais e fizemos o cálculo através das áreas de abrangência”, explicou Roy.
Datação
Para não dizer que nem tudo foi acaso, o terceiro e último aliado gringo no estudo – publicado na semana passada na revista científica Current Biology – foi agregado após uma pesquisa na internet. Trata-se do americano Paul R. Hanson, professor assistente e diretor associado da Escola de Recursos Naturais da Universidade de Nebraska-Lincoln. Especialista em análises macrotécnicas do solo, ele indicou os caminhos para descobrir a idade do material analisado.

“Usamos uma técnica de datação de solo chamada luminescência opticamente estimulada (da sigla OSL, em inglês). Existem máquinas especiais que tiram a terra em canos, no escuro, e mandamos para o laboratório”, lista Roy.
As amostras de solo coletadas dos centros de 11 murundus, usando a técnica OSL – verificou-se a última vez que estiveram expostas ao sol –, indicaram datas de preenchimento de montículos entre 690 a 3.820 anos atrás.
 
“Essas idades são comparáveis aos cupinzeiros conhecidos mais antigos do mundo na África. Durante esse período, as térmitas de S. dirus construíram vastas redes de túneis que geraram enormes volumes de material extraído que foi descartado para formar montes cônicos uniformemente grandes”, destaca o artigo cientifico.

Cada monte, cita ainda Roy, é composto de cerca de 50 metros cúbicos de material retirado da escavação de mais de 10 km³ de terra, o equivalente a 4 mil grandes pirâmides de Gizé, no Egito.
Imagem de satélite mostra regularidade de distanciamento entre montículos
Imagem de satélite mostra regularidade de distanciamento entre montículos (Imagem: Google Earth)
Rede
Mas se a música baiana, e até essas referências do estudo, conseguiram misturar o Brasil com o Egito, a rede subterrânea de cupinzeiros não parece tão integrada assim.

“Cupins e formigas têm famílias, que ocupam certa área, mas eles não têm comunicação entre famílias diferentes. São como gangues. É como o PCC que não fala com os Amigos dos Amigos. Ou como vizinhos que brigam entre si”, exemplifica Roy, ao destacar que nas rodinhas de cupins é cada um no seu quadrado. 
A interdependência entre as ‘gangues’, no entanto, é um assunto para os próximos capítulos da pesquisa. “Se eles continuam se espalhando, a gente ainda não sabe. Ainda tá muito incipiente e tem muitas perguntas a serem respondidas”, comenta Roy, que ainda não tem ideia de como é a dinâmica social da cidade subterrânea.
O que se sabe, desde já, é como os cupins atuam para fora dela, a fim de manter cada casinha abastecida e resguardada. Sempre na calada da noite, de 10 a 50 guerreirinhos sobem pelos murundus passando por tubos temporários fininhos, de oito milímetros de diâmetro, em busca de mantimentos. 
“Em geral, todos os tipos de cupins não podem viver na superfície, como formigas, porque eles não têm uma casca dura. Eles iriam ressecar, no clima semiárido, e saem apenas à noite, para diminuir o perigo com predadores. Por um túnel, saem como soldados. Uns fazem a segurança e outros buscam o alimento”, explica Roy.
Apesar de poucos amistosos entre si, os bichinhos não são tão ruins. “Tem muitos cupins diferentes. Alguns são os malvados, que comem nossas portas e armários, mas esses são inócuos. Eles só vivem na caatinga e só comem folhas secas. São cupins neutros, do bem, que não incomodam a gente”, brinca o pesquisador, antes de destacar o papel dos bichinhos na natureza. 
“Cupins, em geral, comem madeira. Eles são responsáveis por reciclar as madeiras. Senão, a madeira de árvore podre, por exemplo, fica lá para sempre. Eles fazem a reciclagem da matéria orgânica, cuidam das folhas, são os varredores da rua”, compara.
Cupins do tipo Syntermes dirus, de 1 cm, saem à noite em busca de alimentos: folhas secas (Foto: Divulgação)
Repercussão
Sobre as conclusões que o mundo chegou sobre seu trabalho, Roy Funch diz que não esperava tamanha atenção. “Fiquei muito surpreso, porque, realmente, pegou a imaginação das pessoas. Muito em função do fato de isso ser o maior exemplo de bioengenharia da natureza, fora o ser humano. A revista científica que publicou o estudo ficou muito animada. Deu muito ibope”.

Diante da boa recepção, é hora de planejar os próximos passos. “Ainda há muita coisa para saber, especialmente sobre a arquitetura subterrânea criada por esses animais. Os murundus também podem guardar informações do passado, sobre as mudanças climáticas”, estima o pesquisador, dando spoiler do que as entranhas da Bahia ainda podem revelar ao mundo.
fonte:Correio da Bahia/reprodução 30/11/2018 06:45hs.

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