Danté Stewart fez o que pôde para ser palatável para a comunidade cristã ao seu redor, essencialmente branca, num estado dos EUA de passado escravocrata: Georgia. Até que começaram a pipocar no noticiário homens negros como ele, vítimas de racismo policial. Voltou-se à sua fé e se decepcionou.
"Muitas das pessoas brancas legais ao meu redor simplesmente pareciam não dar a mínima", conta o autor do recém-lançado "Shoutin' in the Fire: An American Epistle" (Gritando no Fogo: Uma Epístola Americana).
Aproximou-se das congregações evangélicas afroamericanas, num país onde essa demarcação racial costuma ser saliente. "Vi por que elas insistiam em dizer que Jesus é negro. Não estavam falando sobre a cor da sua pele durante seu ministério terreno, embora definitivamente ela não fosse branca. Estavam conversando sobre como Jesus sabe o que significa viver em um território ocupado, sabe o que significa ser de um povo oprimido."
A chamada teologia negra foi o que ajudou Stewart a devolver algum sentido à sua religiosidade. Também no Brasil é uma corrente que vem ganhando músculos ante uma narrativa que por muito tempo reinou absoluta.
Se é para falar de história, vamos lá: a figura de pele e cabeleira claras que aprendemos a associar a Jesus Cristo não faz muito sentido sob a perspectiva histórica, já que um homem desses não era exatamente o que se encontrava na Palestina daqueles tempos, berço do messias cristão.
"Por séculos, a 'teologia hegemônica', assim como a 'filosofia e as ciências sociais hegemônicas', só tinha um rosto (branco), um lugar de origem (a Europa) e um gênero (masculino)", diz o teólogo Ronilso Pacheco, que lançou em 2019 "Teologia Negra: O Sopro Antirracista do Espírito".
"Foram precisos muito apagamento e violência para universalizar uma única construção teológica. Não é por acaso que só no século 20 fomos capazes de conhecer perspectivas teológicas feministas, indígenas, gays, ecológicas e, obviamente, negras."
"O pressuposto básico é o seguinte: a Bíblia apresenta um Deus que se revela como Deus dos oprimidos", resume o pastor Henrique Vieira, do Esperançar, coletivo evangélico de tintas progressistas. "Então a melhor maneira de ler a Bíblia não é pela lente da casa-grande, é pela lente do quilombo. Não é pela lente da branquitude privilegiada, é pela lente do povo negro."
Para essa corrente, as Escrituras até podem ser instrumentalizadas para justificar a opressão aos povos de matriz africana, alvos de violências cotidianas derivadas do racismo. Isso vem sendo feito há séculos, e contra várias minorias. Mas só interpreta os livros sagrados do cristianismo dessa forma quem não entendeu nada de sua mensagem central.
Vieira extrai dois exemplos, do Antigo e do Novo Testamento: 1) o livro de Êxodo, no qual "Deus chama o povo escravizado para a liberdade e para terra de justiça e igualdade"; 2) o próprio Jesus, alguém "de um vilarejo periférico, Nazaré, que andou com o povão, se identificou com os pobres, foi alvo de perseguição, de estigma social, até ser torturado e executado".
Essa proposta de leitura bíblica tem pai: James Cone (1938-2018), um teólogo americano que percebia o ponto de vista negro como "uma missão para transformar os cristãos negros que odeiam a si mesmos em discípulos revolucionários do Cristo negro".
A teologia negra, portanto, questiona sobretudo o status quo que escreve a história com tintas racistas, diz Nilza Valéria Zacarias, coordenadora da Frente de Evangélicos pelo Estado de Direito. "Se a Bíblia diz que somos feitos à imagem e semelhança de Deus, por que esses brancos dizem que nós não somos?"
Os escravos americanos, explica Zacarias, assimilaram a religiosidade dos senhores e puderam criar suas igrejas com seus próprios elementos. Daí as chamadas igrejas negras no evangelismo dos EUA, "sempre motivadas pela leitura do Êxodo, que narra a libertação do povo hebreu da escravidão".
Galeria Imagens da graphic novel 'King' Trabalho do quadrinista Ho Che Anderson sobre Martin Luther King chega pela primeira vez ao Brasil https://fotografia.folha.uol.com.br/galerias/1708909670925599-imagens-da-graphic-novel-king *** Se injetou algum ânimo aos escravizados, essa compreensão depois sinalizaria caminhos para as lutas, "até chegarmos aos movimentos de direitos civis, o black power", afirma. O batista Martin Luther King (1929-1968), inspiração máxima para Cone, surge desse caldo.
Zacarias enxerga desafios para essa escola teológica avançar no século 21. "Apesar de julgar muito necessário e redentor que leiamos a Bíblia sob o nosso olhar, o olhar de quem sabe que o sangue dessa terra está repleto do sangue dos nossos ancestrais, conseguiremos dialogar com todos os negros pobres por meio de uma teologia negra? Os brancos, que se tomaram de donos das igrejas, vão deixar?"
O fato de a versão branqueada da fé cristã ter prevalecido até aqui não espanta Jackson Antunes, integrante do Movimento Negro Evangélico e criador do canal Afrocrente. "A teologia negra não predominou na narrativa histórica porque, enquanto os brancos estavam construindo seus seminários, formando seus teólogos e decidindo o que era teologia ou não, o povo negro estava orando para viver no outro dia."
Para Ronilso Pacheco, "a Bíblia sofreu um 'sequestro hermenêutico', que a tornou um livro apático, sem pessoas reais com dilemas reais, sem conflitos que não fossem apenas espirituais, mas também étnicos, geopolíticos, geracionais, econômicos".
Então, sim, a Bíblia diz muita coisa sobre raça. Os conflitos estão ali, embora "hoje pareça 'forçado', como se fosse alheio", ousar dizer uma sentença dessas, afirma. "Como disse [a escritora] Toni Morrison, não racializar a leitura da Bíblia, ou negar a questão racial na Bíblia, já é uma forma de racializar a Bíblia. Nesse caso, em benefício dos brancos."
Fonte:FOLHAPRESS - 25/12/2021 11h
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