Em Salvador para o lançamento do seu livro Pacto da Branquitude, a psicóloga, pesquisadora e ativista do movimento negro e de mulheres negras, Cida Bento, se diz otimista em relação aos processos de transformações sociais e raciais da sociedade brasileira, impulsionado, sobretudo, pelas lutas coletivas. Pacto da Branquitute, publicado pela Companhia das Letras, denuncia enquanto questiona a universalidade da branquitude e suas consequências sociais e subjetivas para os diferentes grupos em convivência no Brasil.
Se para a população branca o pacto dá à luz a manutenção de privilégios, para a população negra, o resultado é um processo histórico de invisibilização, silenciamento e opressão. “É um acordo não verbalizado, não combinado”, mas que produz efeitos nas mais diversas dimensões da vida.
O lançamento acontece nesta sexta-feira-feira (28), às 18h30, como parte da programação do projeto Casa Mulher com a Palavra, instalada no Goethe-Institut, no Corredor da Vitória. A entrada é gratuita.
O que é o pacto e por que ele é chamado narcísico?
É um pacto de dominação. O pacto da branquitude é um acordo não verbalizado, não combinado, entre brancos para o fortalecimento, priorização, defesa de privilégios entre brancos. É menos um pacto racional, mas um pacto que tem várias dimensões que estão no campo dos afetos, das emoções, dos sentimentos, do medo. Ele se traduz no ato de privilegiar, em diferentes situações, os iguais. Isso é perceptível em qualquer bloco de organizações que a gente tem na sociedade, sejam empresarias, sindicais, governamentais. Em todas as organizações da sociedade civil, em diferentes campos, sempre você tem uma presença branca num lugar de liderança e tem aí a experiência de quem pensa o Brasil.
A gente, então, não está falando apenas de indivíduos, mas também de estruturas e condições dessa estrutura?
É coletivo. O pacto da branquitude remete a uma proteção dos grupos. As instituições explicitam como é esse pacto pela estrutura delas, não só pela predominância dos brancos nos lugares de vanguarda e de poder, mas pela perspectiva branca que está nos produtos, nos serviços, nos atendimentos, na maneira em que trata os não-brancos. Nas universidades, por exemplo, raramente se o referencial teórico das disciplinas que se revele multiplicidade. Em geral, são estudiosos, formuladores brancos, europeus ou estadudinenses. Você também vai ver isso em todas as instituições. Reúne desembargadores, eles são brancos. Juízes, são brancos. E tem um jeito branco de exercer o seu trabalho.
Se por um lado temos privilégios, do outro temos opressões, a exemplo do encarceramento majoritariamente negro?
Exatamente. O interessante do pacto, e por isso ele tem essa dimensão compartilhada, foi por isso que ele tem essa dimensão compartilhada, coletiva, sem ter sido combinada, é que se reflete em diferentes instituições. É uma coisa de herança. Eu destaco muito o período colonial europeu e todas as suas consequências onde quer que ocorreu. Você tem uma transmissão de herança simbólica, o modo de pensar os negros, os modos de se sentir em relação a eles, a ética, a moral envolvida nas relações com os negros são diferentes. É nessa dimensão que é um acordo não verbalizado. Os negros são vistos como pessoas de segunda categoria.
Quando a gente olha o discurso sobre a meritocracia é possível afirmar que também estamos falando sobre o pacto da branquitude?
Eu penso que sim. Eu uso a expressão de uma herança branca o fato de estarem nos lugares. A maioria dos lugares de poder hegemonizado pelos brancos precisa ter uma explicação aceitável para as pessoas que ocupam esses lugares. E elas dizem ‘eu estou aqui porque eu mereço’. E é o sistema meritocrático. Elas acreditam nisso e fazem muito outros grupos acreditarem que não estão suficientemente preparados. Eles próprios acreditam que essa herança escravocrata de quase cinco séculos não marca o lugar deles hoje, que estão onde estão por mérito. Não que não tenham mérito, mas tem muitos outros seguimentos que têm mérito e não conseguem ocupar lugares similares. Então, o sistema meritocrático é um jeito de viver. ‘Os negros não são suficientemente preparados para ocupar esse ou aquele lugar, para estar nas nossas universidades, nos nossos espaços de poder’. Esse conceito é defensivo. Mas também precipita com medo da convivência. Manter distante os corpos negros, distante dos lugares brancos e dos melhores lugares é uma estratégia também não combinada.
Você defendeu a tese que é base do seu livro em 2002. Quando, hoje, olha para a realidade brasileira, quais mudanças percebe?
Muitas. Tem um livro do Florestan Fernandes que se chama ‘O Saber Militante’. Ele disse que quando um negro se movimenta, no sentido de emancipatório, ele movimenta o Brasil. Percebo que nós avançamos muito, mas parece pouco porque a gente tem que educar um país, civilizar um país, no sentido de que os recursos públicos são públicos, são de todos nós. Os mares são de todos nós, então, suas empresas não podem sujar. Não se pode devastar nossas florestas por questões financeiras. O nosso trabalho é de educação de todo um país para não hegemonizar sobre todos os recursos a concepção de que a terra é de um único segmento.
Uma conscientização coletiva?
Exato. Eu vejo muita mudança nossa que provoca mudanças deles. Quanto mais a gente avança, quanto mais as nossas vozes ficam mais fortes, mais violenta fica a polícia; mais defensiva ficam pessoas que lideram instituições. Defensivas no sentido de dificuldade de aceitar a presença negra. De outro lado, justamente pela competência e força do movimento negro e das mulheres negras, cresce muito a nossa presença em espaços cada vez mais estratégicos, como as mídias, na produção de livros, nossa presença na universidade e a pressão que fazemos para estar em todos os lugares. Vejo as pessoas falarem ‘mas não mudou’. Mudou, sim, e está mudando cada vez mais. Nós estamos mobilizando muitas forças brancas, muitos brancos antirracistas, que vão percebendo que é insustentável uma sociedade em que um grupo hegemoniza, os espaços de poderes, todos os recursos. Não tem nenhuma chance de ter democracia numa sociedade onde mais da metade da população é alijada dos espaços de poder, de recursos financeiros e de toda a ordem.
Sobre o rompimento do ciclo, quem são os atores e qual o papel de cada um no processo?
Acredito que aqueles que legislam, aqueles que têm terra, aqueles que decidem sobre mercado de trabalho. Todos que sustentam a democracia precisam mudar. As empresas, os bancos, os sindicatos, o judiciário, os ministérios. Tem que ter debate, tem que ter ação afirmativa em todos esses lugares para pensar no Brasil de maneira diferente, para pensar os bens materiais e imateriais para todas as pessoas, para todos os brasileiros, não é só para os negros. Os negros não estão atrás de um Brasil só para eles, estão atrás de um Brasil onde eles também possam ter tratamentos e oportunidades iguais a qualquer outro grupo. É preciso uma reparação em todas as áreas, na saúde, na educação. Nunca os governos Têm, ao mesmo tempo, o recurso para toda a população. Então, quando ele vai distribuir deve privilegiar os lugares onde se tem as populações mais empobrecidas, mais negras, mais quilombolas, mais indígenas. Qualquer programa institucional tem que privilegiar esses cursos para a gente poder caminhar para uma democracia.
Você citou que a ação da população negra tem impulsionado mudanças, mas num país em que o letramento racial é um grande desafio, como alcançar aquele indivíduo que não consegue nem mesmo perceber que é violentado em diversas instâncias?
Quando eu vejo as escolas de samba, eu percebo o quanto a nossa voz, que parecia que era só para nós negros, nossa voz do movimento negro, ela, hoje, está em todo canto. Quando você vê as letras de diferentes grupos negros no mundo artístico, você vê uma massa crítica crescente. Eu penso que a mídia é um lugar importante e estarmos nesses espaços e lá contribui para que o Brasil se pense como um lugar para todas as adversidades de seguimentos que está na nossa sociedade é importantíssimo para mim. A televisão, todas as pessoas assistem. As tecnologias, outro exemplo, têm que ser espaços que contribuam para as pessoas pensem em equidade. Então, onde você tem um grande acesso da população, é preciso que a gente traga essas informações que auxiliam as pessoas a olharem para sua própria situação, a pensarem o poder público um poder que deve atender a todos, a criticar, por exemplo, os partidos que se apropriaram de recursos das candidaturas femininas. Que possamos exigir uma educação para as crianças que contemplem livros e brinquedos, que saibam a diversidade, que seja uma escola hospitaleira. Esse processo vem crescendo com uma grande força do movimento negro e de mulheres negras, mas as pessoas brancas antirracistas que estão nessas instituições são fundamentais para ajudar. Uma democracia só existe se tiver equidade.
Fonte: Mari Leal/Correio da Bahia - 28/07/2023
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