O ataque do grupo palestino Hamas a Israel constituiu um crime de guerra, porque foi dirigido contra a população civil, e não alvos militares. Isso autoriza Israel a retaliar o Hamas, de acordo com o Direito Internacional. Porém, a reação israelense tem sido desproporcional, e as investidas contra a população da Palestina, além do corte do fornecimento de água, eletricidade, alimentos e medicamentos, também configuram delitos.
Essa análise é da advogada Sylvia Steiner, ex-juíza do Tribunal Penal Internacional — a única brasileira a integrar a corte, de 2003 a 2016. Ela é consultora de Direito Internacional do escritório Madruga BTW Advogados, desembargadora aposentada do Tribunal Regional Federal da 3ª Região (TRF-3) e ex-procuradora federal.
Os crimes de guerra cometidos no conflito podem gerar punições aos Estados de Israel e da Palestina e aos seus líderes, como o primeiro-ministro israelense, Benjamin Netanyahu, explica Sylvia. Em 2019, o TPI abriu uma investigação sobre os delitos cometidos na Guerra de Gaza, de 2014. E a procuradoria da corte pode agregar os fatos ocorridos recentemente ao procedimento. Outra possibilidade é o Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas (ONU) instituir um tribunal para julgar as violações ocorridas no conflito, aponta a advogada.
De acordo com a ex-juíza do TPI, a progressiva ocupação de territórios palestinos por Israel, desde 1948, deveria ter sido punida pelo Direito Internacional — inclusive há decisões da Corte Internacional de Justiça declarando a ilegalidade da medida. Mas, como não há sanções, "é uma questão de relações internacionais, e não do Direito".
Sylvia defende mudanças nesse sistema, de forma a tornar as punições por órgãos internacionais mais efetivas, especialmente as do Conselho de Segurança da ONU. O veto dos Estados Unidos à proposta do Brasil de estabelecimento de uma pausa humanitária em Gaza, para a retirada de civis, reforça o clamor por mudanças urgentes na entidade, opina ela.
Em entrevista à revista eletrônica Consultor Jurídico, Sylvia Steiner defendeu que o Brasil não pode se retirar do TPI, disse que a Ucrânia age em legítima defesa contra a Rússia, mas igualmente pode ter praticado delitos de guerra, e declarou que o ex-presidente Jair Bolsonaro cometeu crimes contra a humanidade por sua omissão durante a epidemia de Covid-19.
Leia a seguir a entrevista:
ConJur — Como a senhora avalia o mais recente capítulo do conflito Israel x Palestina sob a ótica do Direito Internacional?
Sylvia Steiner — Penso que está bem configurada a existência de um conflito armado na região e que as hostilidades foram iniciadas por um ataque partindo da zona de Gaza contra Israel. O que em princípio autoriza Israel a retaliar, pelo Direito Internacional. Esse ataque do Hamas constitui um crime de guerra (previsto no artigo 8º, 2, "b" e "i", do Estatuto de Roma) porque é um ataque dirigido contra a população civil, e não contra objetivos militares. Falando do ponto de vista legal, um ataque pode ser dirigido contra combatentes ou contra objetivos militares. Esses foguetes todos foram indiscriminados, portanto, ferindo o princípio do Direito Internacional Humanitário. Além disso, o Hamas comete crimes de guerra com a tomada de reféns e o uso de escudos humanos (previstos no artigo 8º, 2, "a", "viii", e "b", "xxiii", do Estatuto de Roma).
E, por sua vez, a retaliação de Israel, pelas notícias que temos acompanhado, também tem sido desproporcional, igualmente infringindo regras do Direito Internacional Humanitário, que regulam o Direito de Guerra, os meios e métodos de guerra. Porque a retaliação também é dirigida contra alvos não delimitados. Portanto, eles estão atacando a população civil — embora eu não enxergue os elementos do crime de genocídio contra palestinos. E o anúncio de que teriam fechado todas as rotas de acesso à região de Gaza, cortando o provimento de água, alimentos e remédios, é também uma figura autônoma de crime de guerra, bem como o deslocamento forçado de pessoas (previstos no artigo 8º, 2, "b", "xxv" e "viii", do Estatuto de Roma). Os dois lados estão infringindo o Direito Internacional e, mais especificamente, o Direito Internacional Humanitário. Estão praticando crimes de guerra.
ConJur — Se ficar provado que Hamas e Israel cometeram crimes de guerra, como eles podem ser punidos? As punições seriam aos Estados ou também podem ser a indivíduos, como Benjamin Netanyahu, primeiro-ministro de Israel?
Sylvia Steiner — Há duas formas de punição a Estados que infringem o Direito Internacional Humanitário. A primeira é a punição contra o Estado. O Estado, por exemplo, pode ser obrigado a pagar reparações. A outra forma de punição é a punição individual, que é a base da punição penal pela prática de crimes internacionais. Essa só pode ser individual. E ela é dirigida, em geral, aos líderes dos países ou organizações que violam o Direito Internacional Humanitário.
No caso, já existe uma investigação perante o Tribunal Penal Internacional desde 2019, aberta a pedido da Palestina. A corte investiga atos que teriam sido cometidos desde 2014 por autoridades israelenses, mas também pelos dirigentes do Hamas. O TPI não investiga só um lado, a procuradoria é obrigada a investigar todos os lados envolvidos em uma situação de conflito. Uma possibilidade é que o procurador do TPI decida agregar esses novos fatos à investigação que já está em andamento. Outra possibilidade, que ocorreu principalmente no início da década de 1990, é o Conselho de Segurança da ONU estabelecer um tribunal ad hoc para julgar especificamente os fatos que estão ocorrendo neste momento naqueles territórios. O Conselho de Segurança fez isso com a Guerra dos Balcãs e com o genocídio de Ruanda.
ConJur — Que penas podem ser impostas por um tribunal ad hoc?
Sylvia Steiner — Isso já está mais ou menos bem estabelecido no Direito Penal Internacional. Não só as regras de procedimento, mas também as penas a serem impostas. Em geral, como é no Tribunal Penal Internacional, são penas de até 30 anos de reclusão ou, se houver uma soma de circunstâncias agravantes, pode se chegar à pena de prisão perpétua.
Quando o Conselho de Segurança expede uma resolução criando um tribunal ad hoc, o estatuto desse tribunal geralmente é redigido pelo corpo de juízes que são escolhidos para atuar na corte, dentro das diretrizes que forem indicadas na própria resolução. Os juízes — geralmente pessoas indicadas pelos Estados que são eleitos pela Assembleia-Geral da ONU — estabelecem as regras de procedimento, os tipos penais e as penas a serem aplicadas. Isso tudo é tirado da jurisprudência dos tribunais internacionais.
ConJur — Uma condenação de um tribunal internacional pode alcançar o Hamas, que não é o Estado da Palestina? E a senhora pensa que a ONU deveria mudar de posição e classificar o Hamas como uma organização terrorista?
Sylvia Steiner — A organização não precisa ser considerada terrorista para que seus líderes sejam julgados em tribunais internacionais. Os tribunais internacionais julgam líderes de organizações que cometem ataques contra a população civil. O Estatuto de Roma fala de Estados ou organizações. Então, tendo o formato de organização, quer dizer, uma certa estrutura, uma certa hierarquia, uma certa condição material de iniciar e de desenvolver ataques, já é suficiente para ser caracterizada como uma organização para fins de punição. Em quase todos os casos do Tribunal Penal Internacional, foram líderes de organizações envolvidas em conflitos armados que foram levados a julgamento, além dos agentes do governo e do exército formal. Foi assim nos conflitos da Iugoslávia e no genocídio de Ruanda.
ConJur — Voltando à investigação do TPI, por que o tribunal nunca chegou a julgar os conflitos entre Palestina e Israel, tendo em vista que eles se alongam há várias décadas?
Sylvia Steiner — Em primeiro lugar, porque a Palestina só foi considerada um Estado pela ONU em 2012. Na primeira vez em que a Palestina procurou o Tribunal Penal Internacional, aceitando voluntariamente a jurisdição, o pedido foi negado porque o tribunal só pode aceitar ratificação de Estados. Depois de a Palestina ter sido reconhecida como Estado-observador pela ONU, o TPI aceitou esse segundo pedido de investigação.
Agora, as investigações de crimes internacionais são muito demoradas. Não é como uma investigação de um crime individual praticado na esquina de casa. Então, a investigação ainda está em andamento. Por enquanto, não haveria possibilidade nem de existir ação penal, muito menos condenação. O que há, por enquanto, são algumas decisões da própria Assembleia-Geral das Nações Unidas e da Corte Internacional de Justiça. Em alguns casos, por exemplo, afirmando que a construção do Muro da Cisjordânia configura violação do Direito Internacional por parte de Israel.
A procuradoria do TPI pode aproveitar a investigação que já está em andamento e ir acrescentando fatos novos. Isso foi feito no caso da Ucrânia, em que a investigação se iniciou com base em duas declarações depositadas pela Ucrânia após as ocupações russas de 2014 e foi recebendo acréscimos desde o início da guerra, em 2022. Ou a procuradoria pode iniciar uma segunda investigação para esse episódio específico.
ConJur — O que seria uma "guerra legal", de acordo com o Direito Internacional?
Sylvia Steiner — A guerra que não seria ilegal é aquela autorizada pelo Conselho de Segurança da ONU, que, de acordo com o capítulo 7º da Carta das Nações Unidas, é o órgão encarregado de manter ou restabelecer a paz. Às vezes, para restabelecer a paz é preciso atacar um país que está no meio de uma guerra civil e causando uma catástrofe humanitária. Mas tem de ter autorização da ONU, da comunidade internacional. Fora essa hipótese, a guerra é sempre ilegal. A ONU proíbe que os Estados usem a força para resolver suas controvérsias. Os Estados são obrigados a buscar outras alternativas para resolver as divergências.
Agora, há a hipótese da legítima defesa. Quando o Estado está em paz, é invadido por outro Estado e se inicia uma guerra, o Estado que foi invadido está em legítima defesa do seu território e da sua soberania. Essa é uma guerra considerada legal, se não forem praticados crimes de guerra nesse contexto.
ConJur — A progressiva ocupação de territórios palestinos por Israel, desde 1948, não deveria ter sido punida pelo Direito Internacional?
Sylvia Steiner — Deveria. É uma daquelas situações em que a gente fala que o Direito cede lugar à geopolítica, às relações internacionais. Há decisões da Corte Internacional de Justiça declarando a ilegalidade dessa expansão territorial de Israel, mas não há sanções. E, enquanto não há sanções, a ilegalidade continua. Uma vez que não há sanções, é uma questão de relações internacionais, e não do Direito. Rui Barbosa dizia que "a força do Direito deve superar o Direito da força". Esse é o jogo do Direito Internacional. Nós lutamos de um lado para impor a força do Direito, mas o Direito da força está aí, é uma realidade difícil de combater.
O veto dos Estados Unidos à proposta do Brasil para se estabelecer uma pausa humanitária em Gaza, para a retirada de civis, reforça o clamor por mudanças urgentes no Conselho de Segurança da ONU. Essa conformação do Conselho de Segurança provavelmente se justificava no pós-guerra. No terceiro milênio, talvez não se justifique mais e precise ser revista, para que o órgão seja mais efetivo, principalmente na questão das sanções. É muito difícil, mesmo no plano interno, ter obediência a normas proibitivas se não houver sanção pela desobediência. Se uma obrigação internacional não vier acompanhada de uma sanção pelo descumprimento, fica quase como uma declaração de intenções, e não realmente uma obrigação legal, que poderia e deveria ser imposta a todos os Estados igualmente.
ConJur — Como a senhora avalia a guerra entre Rússia e Ucrânia sob a ótica do Direito Internacional?
Sylvia Steiner — Há dois aspectos. O primeiro é que, pela definição clássica do crime de agressão, que é a invasão de um território soberano por outro, a Rússia cometeu esse delito. Mas, lamentavelmente, o caso não poderia ser julgado pelo Tribunal Penal Internacional, porque nem a Rússia, nem a Ucrânia, são Estados-partes, e, especificamente em caso de crime de agressão, o tribunal só pode exercer jurisdição sobre os Estados-partes.
Mas estão sendo cometidos crimes de guerra (pela Rússia). E os crimes de guerra podem, sim, ser julgados pelo TPI, por conta das cartas de aceitação voluntária da jurisdição do tribunal que foram depositadas em 2014/2015 pela Ucrânia. A procuradoria do TPI iniciou a investigação pela ocupação da Crimeia pela Rússia, em 2014, e está acrescendo fatos relativos à guerra. O TPI, inclusive, expediu mandado de prisão do presidente russo, Vladimir Putin, pela deportação forçada de crianças ucranianas. E acredita-se que outros mandados de prisão devem vir na sequência, à medida em que a procuradoria conseguir reunir provas suficientes de outros crimes.
Pelo noticiário, há vários crimes de guerra, de ataque contra a população civil, contra bens civis, bens protegidos, destruição, execuções sumárias. E há notícias desencontradas, não se sabe se também estariam ocorrendo crimes de violência sexual. Às vezes algo é mencionado, mas é para tentar dar mais pavor ainda a uma situação que já é pavorosa. Então não se tem confirmação se tais crimes realmente estariam sendo cometidos.
ConJur — De acordo com o noticiário, também há crimes de guerra praticados pela Ucrânia?
Sylvia Steiner — Parece que houve também ataques por parte da Ucrânia, os chamados ataques indiscriminados, sem alvo certo, que acabam atingindo civis ou bens civis. Mas aí vai depender das provas que a procuradoria do TPI tiver. É preciso ver se esses ataques foram propositadamente dirigidos contra civis e bens civis ou se eles se dirigiam a um objetivo militar, mas, por alguma razão, acabaram caindo em lugares ocupados por civis ou só com bens civis. Depende de prova da intenção do agente. Se o agente tem a intenção de atacar indiscriminadamente a população civil, é um crime de guerra. Se a intenção era atacar um objetivo militar e, por um erro na execução, uma escola foi atingida, não há o dolo para configurar a figura criminal.
ConJur — Essa é uma guerra de legítima defesa da Ucrânia?
Sylvia Steiner — Sim. A guerra, em si, não é ilegal ou ilegítima, mas isso não impede que se cometam crimes na condução das hostilidades. O que o Direito Internacional Humanitário regula não é a existência ou não da guerra. É a maneira como as partes têm de se portar em uma situação de conflito armado.
ConJur — Recentemente, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva disse que não cumpriria a ordem de prisão do presidente da Rússia, Vladimir Putin, emitida pelo TPI, caso o líder russo visitasse o Brasil. Depois disso, o ministro da Justiça, Flávio Dino, afirmou que o governo brasileiro poderia rever a adesão ao TPI. O Brasil pode deixar o TPI? Se sim, o que isso significaria para o país?
Sylvia Steiner — Há pessoas que discordam, mas eu insisto que o Brasil não pode denunciar o Estatuto de Roma. Como parágrafo 4º, ele foi agregado ao artigo 5º da Constituição Federal, que trata dos direitos e garantias fundamentais. Portanto, o Estatuto de Roma é cláusula pétrea, assim como todos os demais direitos e garantias individuais previstos no artigo 5º. Eu já ouvi gente dizendo que o Estatuto de Roma não protege direitos individuais, é uma mera cláusula de jurisdição. Eu discordo dessa afirmativa. Em primeiro lugar, o legislador não teria colocado a submissão do país ao Tribunal Penal Internacional por acaso ou por um engano no artigo 5º. Em segundo lugar, o TPI é um tribunal não só de caráter retributivo, mas restaurativo. Cabe à corte proteger as vítimas e assegurar-lhes o cumprimento de direitos humanos internacionalmente reconhecidos, como os de ter voz, acesso à Justiça e reparação. Quem vê no parágrafo 4º do artigo 5º uma mera cláusula de jurisdição é porque não conhece o caráter de Justiça restaurativa do Tribunal Penal Internacional. Então, eu insisto: o Brasil não pode se retirar do TPI.
Além do mais, o Brasil trabalhou muito na Conferência de Roma. Depois, durante a comissão preparatória dos anexos do Estatuto, o Brasil teve uma participação fundamental. Eu participei dessa fase. Quem comandou todo esse trabalho foi Maria Luiza Ribeiro Viotti, atualmente embaixadora do Brasil nos Estados Unidos. Era uma equipe muito séria, que trabalhou muito, inclusive pela minha eleição para o TPI. O Brasil sempre se colocou como um grande apoiador do TPI. Eu penso que a fala de Lula foi mais algo de momento, algo impensado. Não acredito que o Brasil tentará deixar o TPI.
ConJur — Como a senhora já mencionou, a Rússia não é signatária do Estatuto de Roma, portanto, não se submete ao TPI. É legítimo o TPI ordenar a prisão do chefe de um Estado que não aderiu à sua jurisdição?
Sylvia Steiner — Sim, porque Putin determinou, autorizou ou está tolerando a prática de crimes no território de um Estado que aceitou a jurisdição do TPI. O TPI pode exercer jurisdição se um crime é praticado por um nacional de um Estado-parte ou em um território de um Estado-parte. Apesar de a Ucrânia não ser Estado-parte, a Ucrânia, como vítima, tem o direito de comparecer perante o TPI e dizer que está sendo vítima de crimes e que quer a intervenção do tribunal. O Estado vítima também pode exigir a atuação do TPI.
ConJur — O que significa o fato de grandes potências, como Rússia, Estados Unidos e China, não serem Estados-partes do TPI?
Sylvia Steiner — A intenção do Tribunal Penal Internacional é ter um caráter universalista. Agora, são muitos os Estados que não o ratificam, pelos mais diversos motivos. Esses a que se refere (Rússia, EUA e China) são grandes potências, mas que têm, interna e externamente, problemas que poderiam acarretar a chamada da jurisdição do TPI. Então penso que esse é o motivo pelo qual não aderem ao TPI. Israel também não é Estado-parte.
Os Estados Unidos não ratificam nenhuma convenção. Não ratificaram nem a Convenção sobre os Direitos da Criança, que é absolutamente inócua, só com cláusulas de intenção. A China tem sérios problemas com algumas minorias e em relação a Taiwan. A Rússia tem também sérios problemas com Estados que antigamente estavam na federação, e não estão mais. E Israel tem seus problemas com a Palestina e outros Estados do Oriente Médio.
Mas isso não tira a legitimidade do TPI. Há 124 Estados-partes. Todos os Estados europeus, sem exceção; todos os Estados latino-americanos, com exceção de Cuba; quase todos os Estados africanos, e outros grandes Estados, como Japão, Canadá e Austrália. Agora há até alguns Estados islâmicos. A tendência é que o TPI se expanda. Agora, sempre haverá Estados resistentes à ideia de se sujeitar ao Direito Internacional. Isso é normal.
ConJur — O TPI não tem uma polícia própria, então depende da cooperação dos países para aplicar as medidas e penalidades. O que fazer quando um país não quer colaborar?
Sylvia Steiner — Isso aconteceu no caso dos mandados de prisão contra o então presidente Omar al-Bashir, do Sudão. Ele foi visitar alguns Estados-partes que não o prenderam e não o entregaram ao TPI. Como o tribunal não tem competência para aplicar sanções, ele expede uma decisão declaratória de descumprimento de obrigação internacional e manda para a assembleia dos Estados-partes. Esta, sim, tem o poder de aplicar sanções. Não aplicou até agora, ainda não regulamentou o sistema de sanções, mas tem usado as negociações diplomáticas e os chamados bons ofícios, que é um termo bem da diplomacia, no sentido de constranger os Estados a cumprir as suas decisões.
ConJur — A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) apresentou denúncia contra o ex-presidente Jair Bolsonaro por genocídio e ecocídio perante o TPI. Em artigo publicado na ConJur, a senhora afirmou que não existe crime de ecocído no TPI. Seria positivo tipificar tal conduta?
Sylvia Steiner — Na minha opinião, não, porque os crimes previstos no Estatuto de Roma são aqueles que, de acordo com o Direito Internacional, são chamados de crimes contra a paz. É o crime de agressão, genocídio, crimes de guerra, crimes contra a humanidade. Não deveríamos deixar de lado a justificativa histórica de previsão desses crimes como crimes contra a paz. Não faria sentido. O Estatuto de Roma prevê esses crimes porque tem uma razão, é resultado de um processo histórico. Desde a Primeira Guerra Mundial, o Direito Internacional vai formando essa ideia de crimes contra a paz. Esse é o primeiro argumento.
O segundo argumento é que eu, pessoalmente, penso que as instâncias locais analisam melhor crimes como esse, contra o meio ambiente. Afinal, os tribunais locais estão próximos às provas, às testemunhas, onde podem ser feitas perícias. O Judiciário interno dos Estados é muito mais bem equipado para apurar a existência de crimes ou de ilícitos do que qualquer tribunal internacional. Apesar do fato de que ser condenado por um tribunal internacional pode dar uma ideia de uma censura maior, não seria uma medida eficaz tipificar o crime de ecocídio perante o TPI.
ConJur — As condutas de Bolsonaro durante a epidemia de Covid-19, especialmente com relação a indígenas, configuram o crime de genocídio?
Sylvia Steiner — De genocídio, não. Crimes contra a humanidade, sim.
ConJur — Como afirmou um grupo de juristas, do qual a senhora fez parte, em parecer apresentado à CPI da Covid-19, certo?
Sylvia Steiner — Eu mantenho a minha opinião no sentido de que há indícios da prática de crimes contra a humanidade. É lógico que as provas têm de ser colhidas e que é preciso conferir ampla defesa. Mas há indícios da prática de crimes contra a humanidade, e não é só de Bolsonaro, mas também de outros altos funcionários do governo. Por exemplo, pessoas ligadas ao ex-ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles e à Funai, além de algumas autoridades do estado do Amazonas e de Manaus. Isso porque houve uma omissão dolosa em tomar as medidas, inclusive aquelas determinadas pelo Supremo Tribunal Federal em quatro liminares expedidas pelo ministro Luís Roberto Barroso, no sentido de criar barreiras sanitárias e de dar proteção especial a esses povos, que são mais vulneráveis a problemas de saúde. Essa omissão dolosa pode, sim, configurar crimes contra a humanidade.
ConJur — Quais crimes contra a humanidade, especificamente?
Sylvia Steiner — São vários os crimes contra a humanidade, estabelecidos no artigo 7º do Estatuto de Roma. O dispositivo inclui assassinato, tortura, deportação. Com relação a Bolsonaro, ele pode responder pelos crimes de perseguição e outros atos desumanos, previstos, respectivamente, no artigo 7º, alíneas "h" ("Perseguição de um grupo ou coletividade que possa ser identificado, por motivos políticos, raciais, nacionais, étnicos, culturais, religiosos ou de gênero, tal como definido no parágrafo 3º, ou em função de outros critérios universalmente reconhecidos como inaceitáveis no direito internacional, relacionados com qualquer ato referido neste parágrafo ou com qualquer crime da competência do Tribunal") e "k" ("Outros atos desumanos de caráter semelhante, que causem intencionalmente grande sofrimento, ou afetem gravemente a integridade física ou a saúde física ou mental").
ConJur — Esses crimes podem ser punidos com prisão?
Sylvia Steiner — Sim, claro.
ConJur — Uma pena de prisão de Bolsonaro seria cumprida em Haia, onde fica o TPI, ou no Brasil?
Sylvia Steiner — Em Haia só ficam os presos provisórios. Aqueles que forem condenados vão cumprir pena em Estados que celebrem um convênio com o TPI e aceitem recebê-los para cumprimento de pena. Então é caso a caso. Quando alguém é condenado, ele manifesta o desejo de onde gostaria de cumprir pena. O tribunal consulta se tal Estado está disposto a receber esse condenado. Se sim, firma um convênio para o sujeito cumprir pena naquele Estado — que pode ser o de naturalidade ou nacionalidade do condenado.
ConJur — Em 2018, o Comitê de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas determinou ao Estado brasileiro que tomasse "todas as medidas necessárias" para permitir que Lula concorresse a presidente, mesmo preso, enquanto sua condenação não fosse definitiva. Em 2022, o comitê concluiu que Lula teve violados os direitos políticos, a garantia a um julgamento imparcial e a privacidade na "lava jato". Para o órgão da ONU, a anulação das condenações de Lula pelo Supremo Tribunal Federal não foi suficiente para reparar os danos causados a ele. Assim sendo, o Estado brasileiro deveria ter respeitado a determinação da ONU em 2018 e permitido que Lula se candidatasse? Que medida poderia reparar os danos causados ao presidente pela "lava jato"?
Sylvia Steiner — O Comitê de Direitos Humanos da ONU não tem o poder de expedir decisões condenatórias, como a Corte Internacional de Justiça ou a Corte Interamericana de Direitos Humanos, que poderiam determinar o pagamento de reparações ou impor sanções. Assim, a obrigatoriedade do cumprimento das decisões do comitê é muito mais moral, digamos assim, no sentido de que um órgão da ONU diz para fazer ou deixar de fazer algo.
Nesse caso de Lula, como não se pode voltar ao status quo ante, a reparação poderia ser por meio de qualquer forma de satisfação do dano, até pecuniária. Existe toda uma regulação da ONU sobre a obrigação de reparar todos aqueles que sofrem um dano em razão de uma ilegalidade, de uma violação do seu direito em razão de um crime ou de abuso de poder.
ConJur — Nesse caso, a obrigação de reparar é do Estado brasileiro ou de agentes da "lava jato", como, por exemplo, o ex-juiz Sergio Moro?
Sylvia Steiner — A obrigação é do Estado brasileiro. Sergio Moro pode ser obrigado a reparar se ele for condenado criminalmente em uma instância interna por abuso de poder, por exemplo, mas não em decorrência de uma decisão do Comitê de Direitos Humanos da ONU.
ConJur — Como essa decisão do comitê da ONU não tem força executória, como a senhora disse, o Estado brasileiro não é obrigado a cumpri-la, certo?
Sylvia Steiner — Deveria, porque todo o sistema do Direito Internacional se baseia no princípio de que as obrigações internacionais devem ser cumpridas. Mas o Direito Internacional é falho, na medida em que não prevê sanções para todos os descumprimentos. Volto a citar o caso de Israel. Há várias decisões sobre a ilegalidade da expansão territorial de Israel, da ocupação de áreas. Apesar da ilegalidade, Israel não é punido, pois não se estabeleceu um sistema de sanções eficiente. Esse é o problema do Direito Internacional.
FONTE: CONJUR/REPRODUÇÃO - 22/10/2023 16h:45
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