Já faz algum tempo que circulam, nos bastidores do Congresso Nacional, rumores — até o momento não comprovados, é bom que se diga — de que, na poderosa guerra de interesses travada na CPI aberta para investigar as suspeitas de fraudes bilionárias nos balanços das Lojas Americanas, parlamentares teriam pedido quantias vultosas de dinheiro a empresários envolvidos na trama para impedir, por exemplo, que eles fossem indiciados ao final das investigações ou mesmo convocados para prestar depoimento à comissão.
Embora essas histórias fossem frequentes, com relatos semelhantes feitos à boca miúda por pessoas ligadas aos dois lados envolvidos (o dos controladores das Americanas e o dos bancos), até em razão da gravidade da suspeita ninguém havia topado falar abertamente sobre o assunto. Até agora.
A linha amarela acaba de ser ultrapassada, com uma acusação grave feita por um deputado federal integrante da CPI contra ninguém menos que o ex-presidente da comissão de inquérito.
Venda de “blindagem”
João Carlos Bacelar, do PL da Bahia, acusa o colega Gustinho Ribeiro, do Republicanos de Sergipe, que comandou a CPI, de enriquecer a partir da atuação na comissão. Em uma entrevista na terça-feira à rádio sergipana Jornal FM, Bacelar ligou a compra de um cavalo de R$ 1 milhão feita por Ribeiro a atos do colega dele à frente da CPI (ouça mais abaixo os principais trechos).
Ele afirmou que Gustinho Ribeiro atuou de maneira “escusa” para “blindar” os controladores das Americanas, os bilionários Jorge Paulo Lemann, Beto Sicupira e Marcel Telles. Na entrevista, Bacelar disse ainda que o suposto esquema envolveu escritórios de advocacia para oferecer a blindagem. Ele defende a instalação de uma “CPI da CPI” para investigar as suspeitas.
João Carlos Bacelar ainda desafiou o ex-presidente da comissão para uma espécie de duelo em praça pública em Aracaju ou na cidade de Lagarto, reduto eleitoral de Ribeiro, para tratar das acusações. “A forma escusa como o deputado Gustinho conduziu a CPI vai ser desnudada. E eu sei detalhes e os meandros que foram feitos (sic). Ela vai ser desnudada a todo o povo sergipano e principalmente de Lagarto, onde a esposa dele é prefeita”, afirmou Bacelar, que escolheu justamente uma rádio do estado do colega para fazer a acusação. “Em qualquer praça aí, eu desafio o deputado Gustinho Ribeiro a desmentir o que eu estou falando”, afirmou.
Cavalo de R$ 1 milhão
Logo após falar da suposta “atuação escusa” de Gustinho Ribeiro à frente da CPI, Bacelar ligou a tal compra do cavalo de R$ 1 milhão à atuação do parlamentar à frente da comissão.“Recebi um filme tem uns 15 dias atrás, e pensei que era fake news: um cidadão que teria coragem de comprar um cavalo de 1 milhão de reais. Mas eu procurei me informar por alguns colegas e o próprio Gustinho confirmou para mim que adquiriu o cavalo por 1 milhão de reais, num consórcio aí (com) 50 parcelas de 20 mil reais, 19 mil e tantos, quase 20 mil reais. É um absurdo comprar um cavalo por 1 milhão de reais”, disse.
“Por coincidência, foi logo depois que a CPI acabou. Ele deve ser um grande empresário em Sergipe, não é? Deve ter uma declaração de renda grande, suponho que ele deva ser um grande empresário aí de Sergipe para poder comprar um cavalo de 1 milhão de reais. (…) É muita coincidência ele comprar um cavalo de 1 milhão logo após acabar a CPI”, prosseguiu o deputado baiano.
Ex-pupilo do notório Eduardo Cunha e aliado de primeira hora do presidente da Câmara, Arthur Lira, do PP de Alagoas, Bacelar é, ele próprio, dono de um histórico extenso de suspeitas de corrupção. Ao longo da CPI, ele também foi apontado, nos bastidores, como um dos parlamentares que estariam procurando os empresários envolvidos no escândalo para oferecer facilidades. O deputado baiano foi um dos integrantes da comissão mais incisivos contra os controladores das Americanas, os bilionários Lemann, Sicupira e Telles, da 3G Capital. Ele propôs uma série de requerimentos para tentar levá-los para depor.
Ouça:
“Achaque e chantagem”: ex-presidente da CPI devolve acusação
Procurado pela coluna, o deputado Gustinho Ribeiro devolveu a acusação e deu a entender que foi Bacelar quem chantageou empresários envolvidos na investigação. “O deputado João Carlos Bacelar todo mundo conhece o histórico dele, e ele não é digno de resposta. Todo mundo sabe a intenção e o intuito dele durante os trabalhos da CPI e o que ele desejava fazer com os convocados”, afirmou Ribeiro.
O ex-presidente da CPI confirmou que comprou cotas de um cavalo há cerca de dois meses, mas disse que a aquisição é parte de suas atividades comerciais no ramo do agronegócio. “Em relação ao meu patrimônio, a tudo aquilo que eu adquiri, é tudo declarado à Receita Federal. Eu atuo no segmento do agronegócio na minha vida inteira, eu e a minha família, e a aquisição de cavalos, de animais, é algo rotineiro no meu dia a dia porque eu trabalho com isso. É a minha principal atividade comercial”, disse Gustinho Ribeiro.
Na sequência, indagado sobre a que se referiu ao falar que “todo mundo sabe a intenção” de Bacelar e “o que ele desejava fazer com os convocados”, Ribeiro respondeu o seguinte: “O histórico do deputado João Carlos Bacelar é conhecido. As práticas de achaque, de chantagem, esse tipo de situação. A maioria dos membros da CPI não concordaram (sic) em transformar a CPI nesse tipo de situação que ele queria praticar. Então, a CPI já foi encerrada, teve um relatório apresentado, transcorreu tudo tranquilamente, foi uma CPI bastante técnica e durante seus trabalhos não houve nenhum tipo de situação mais constrangedora para quem quer que seja, mas infelizmente após o término dos trabalhos o deputado João Bacelar aparece com essas insinuações” (ouça a seguir).
A assessoria de Lemann, Sicupira e Telles disse que eles não responderiam à acusação feita por João Bacelar.
Apuração terminou sem culpados
Criada para apurar indícios de fraudes de mais de R$ 20 bilhões nos balanços financeiros das Lojas Americanas, a CPI chegou ao fim em setembro, com a aprovação de um relatório de 353 páginas que não culpou ninguém.
O escândalo das Americanas é um dos maiores da história brasileira envolvendo o mundo corporativo. Contratos e dívidas com fornecedores teriam sido usados para inflar os balanços da empresa, numa sucessão de ardis contábeis. O caso, que segue sob investigação na Justiça, opõe os controladores aos bancos — entre eles, os maiores do país — que financiavam a rede varejista e também se tornaram alvos por suspeita de envolvimento na trama.
O documento final elaborado pelo relator da CPI, deputado Carlos Chiodini, do MDB de Santa Catarina, dizia que “o conjunto probatório, de fato, converge para o possível envolvimento de pessoas que integravam o corpo diretivo da companhia (ex-diretores e ex-executivos)”, mas fazia a ressalva de que “os elementos até então carreados não se mostraram suficientes para a formação de um juízo de valor seguro o bastante para atribuir a autoria e para fundamentar eventual indiciamento”. (Colaborou Caio Figueiredo)
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