sábado, 8 de agosto de 2020

Sem liderança e planejamento: as falhas do Brasil contra a COVID-19

Defensor da cloroquina, o presidente Jair Bolsonaro brinca com a situação ao mostrar uma caixa do medicamento a uma ema, no Palácio da Alvorada

© Dida Sampaio/Estadão Conteúdo Defensor da cloroquina, o presidente Jair Bolsonaro brinca com a situação ao mostrar uma caixa do medicamento a uma ema, no Palácio da Alvorada

Cento e oitenta e seis dias se passaram entre 17 de março – data da primeira morte por COVID-19 registrada no Brasil – e a funesta marca de mais de 100 mil óbitos atingida neste sábado (8/8). Os números, por si só, mostram o fracasso das políticas públicas, sobretudo do governo federal, no combate à pandemia de coronavírus.

As falhas governamentais não se concentram apenas na postura negacionista e beligerante do presidente da República, Jair Bolsonaro. A condução das ações estatais por seus comandados e a tentativa de gestão da crise colocaram o país no segundo lugar mundial em número de casos (3.012.412) e de mortes causadas pela COVID-19, atrás apenas dos Estados Unidos.

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Estudo realizado pelo Centro de Desenvolvimento e Planejamento (Cedeplar) da UFMG mostra que, até junho, o governo federal havia implementado 200 medidas de combate à pandemia em todo o território nacional. À primeira vista, pode parecer um número alto de ações governamentais.

Entretanto, a falta de continuidade de políticas e o baixo grau de importância da maioria dessas ações, levam a outra conclusão. É o que explica, em entrevista ao Estado de Minas, a coordenadora da pesquisa, Fernanda Cimini Salles, doutora em Sociologia e em Ciência Política e professora do Departamento de Economia da UFMG.

“Nosso sistema federativo de saúde demanda muitas ações do governo federal. Por exemplo, a habilitação de leitos de UTI para estados e municípios. Se a gente pensar que cada estado e município que demanda isso vai precisar de um tipo de medida, da edição de uma portaria, isso vai gerando esse número elevado. Não significa que são políticas. São atos administrativos necessários para a sua condução”, explica a professora.

O fracasso da política bolsonarista no combate à pandemia já vinha sendo denunciado por outros especialistas nos últimos meses. Rodrigo Zeidan, professor de economia e finanças da New York University Shanghai e da Fundação Dom Cabral, em entrevista realizada em junho, classificou o governo como “irresponsável” e sua postura como “quase um genocídio”. Zeidan afirmou que o governo federal foi responsável pelos altos índices de disseminação do coronavírus no país.

A análise converge com a da professora Fernada Cimini, que destaca a falta de tato do presidente e da maioria de seus comandados para lidar com as diversas e complexas peculiaridades existentes no país. “O estudo já mostra uma estratégia estranha, sem coordenação, que não estava lidando com as várias dimensões possíveis políticas e de complexidade de um país como o Brasil. Observamos que nada mudou. Continuamos sem coordenação e estratégia. Um fracasso”, declara Cimini.

Contra a ciência

No governo de Jair Bolsonaro não são raras as atitudes contrárias ao pensamento científico. Exemplos claros da guerra de Bolsonaro contra a ciência não faltam. Durante a pandemia, o presidente fez passeios em Brasília, causou aglomerações em várias cidadesfrequentou manifestações, raramente usou máscara, fez questão de ter contato físico com aliados políticos e apoiadores e se tornou propagandista da cloroquina, medicamento sem eficácia comprovada e com sérios efeitos colaterais.

O presidente ainda demitiu o ortopedista Luiz Henrique Mandetta do Ministério da Saúde por discordar do entendimento do médico sobre gestão da crise. Seu sucessor, o oncologista Nelson Teich, não foi demitido, mas se desligou voluntariamente após ser pressionado e desautorizado publicamente por Bolsonaro.

Para o médico Unaí Tupinambás, doutor em Infectologia e Medicina Tropical e membro do Comitê de Enfrentamento à Epidemia da COVID-19 de Belo Horizonte, a atual situação é reflexo da desobediência presidencial ao pensamento científico. “A ciência, os trabalhadores da área de saúde, os sanitaristas, as universidades falam uma coisa e ele vai na contramão, desautorizando essas falas. E claro, não poderia dar em outra coisa senão no que estamos vendo agora. Somos o segundo país em número de mortes e de casos”, afirma o médico, que também é professor da Faculdade de Medicina da UFMG.

Troca de ministros

Desde a saída de Teich do Ministério da Saúde, em 15 de maio, a pasta está ‘interinamente’ sob o comando do general do Exército Eduardo Pazuello. Para a cientista política Fernanda Cimini, o comando do Ministério da Saúde não precisa ser atribuição exclusiva de profissionais da área médica.

Entretanto, é extremamente necessário ter experiência em gestão de saúde pública, perfil no qual o ministro interino Eduardo Pazuello não se encaixa. “Não necessariamente tem que ser um médico. A profissão não importa. Tem que ser alguém com conhecimento da administração pública, que dialogue com a estrutura do sistema de saúde. Que tenha experiência no sistema de saúde pública. Alguém que vem de fora, até entender o funcionamento do sistema no meio de uma pandemia, não tem como isso ser positivo”, destaca a professora.

Estados e municípios

No início de abril, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que não compete à Presidência da República interferir nas decisões dos governos locais sobre restrição de serviços e circulação de pessoas durante a pandemia. O presidente, em várias oportunidades, usa como defesa o fato de, teoricamente, não poder agir devido à decisão judicial.

Contudo, os especialistas entrevistados afirmam que a alegação de Bolsonaro não tem fundamento, uma vez que a União dispõe de vários mecanismos de gestão, além de ter maior poderio econômico se comparado aos governos regionais. “Tem não só a chave do cofre, como vários tipos de decisão que poderia tomar, inclusive coordenando respostas”, diz Rodrigo Zeidan.

Além da falta de iniciativa nas ações efetivas, faltou, também, orientação e coordenação dos chefes dos executivos estaduais e municipais por parte do Planalto. Essa falta de sintonia entre governantes reflete na conduta da população.

“Se não vem um exemplo lá de cima, as pessoas ficam confusas. O presidente, representante máximo da nação, não usa máscara, promove aglomerações, usa medicamento sem comprovação científica. Por mais que tenha informações corretas nos sites das universidades e de cientistas, a população fica na dúvida. Um grupo vai acreditar na ciência e outro grupo vai acreditar no representante máximo. Não se vence uma pandemia só com técnica e ciência. Vencemos com técnica, ciência e construção de consenso. A população tem que estar envolvida, abraçar a ideia e acreditar que aquele é o melhor caminho. E o melhor caminho é este que, exaustivamente, tem se colocado em várias cidades, e Belo Horizonte é uma delas: distanciamento social, evitar aglomerações, usar máscara”, propõe o médico Unaí Tupinambás.

Algo positivo?

Mas foi tudo mesmo um desastre? Ou há algo de positivo que deva ser ressaltado entre as ações do governo federal? Logo no começo da pandemia, o então ministro Luiz Henrique Mandetta seguia atuando em alinhamento com a Organização Mundial de Saúde e baseado em critérios técnicos.

“No início da crise, ainda na gestão Mandetta, houve várias iniciativas para aumentar o número de médicos, de profissionais da saúde, houve abertura de editais. Houve políticas de contratação, de treinamento, regulamentação da telemedicina para tentar ampliar um pouco o atendimento. Tivemos políticas de expansão do sistema de saúde que já tínhamos”, diz a cientista política Fernanda Cimini. Porém, por divergir do pensamento do presidente da República, Mandetta, como dito, foi destituído do cargo de ministro da Saúde.

Enquanto esteve no comando, o médico foi ferrenho defensor do Sistema Único de Saúde. Apesar das notórias e antigas mazelas da Saúde brasileira – frise-se, bem anteriores ao governo Bolsonaro – como falta de médicos e de remédios e a má distribuição do quadro de profissionais em diferentes cidades, o consenso entre especialistas é de que sem o SUS, o quadro atual da pandemia no país seria bem pior.

Unaí Tupinambás também exalta o sistema de saúde nacional.

“Temos um sistema capilarizado e robusto, que é o SUS. Em toda a cidade que você vai no Brasil tem uma unidade básica de saúde, um trabalhador da área de saúde apto a receber treinamentos e orientações do Ministério da Saúde para enfrentar qualquer epidemia. Assim foi com a H1N1, Zika, assim é com a dengue. Sem o SUS iria ser bem pior. Teríamos o dobro de mortes”.

Contudo, o infectologista entende que o potencial do sistema poderia ter sido melhor aproveitado, para reduzir o impacto da chegada do vírus ao Brasil. “Tivemos tempo para nos preparar. A epidemia começou no final de dezembro na China e veio como uma onda, varrendo vários países da Europa, América do Norte e chegou ao Brasil. Tivemos dois meses para nos preparar e não o fizemos.

Tínhamos que ter construído um consenso entre todos os brasileiros, como sempre foi. Até 2018, se estabelecia um consenso entre todos os governantes. Seja no governo Sarney, do PSDB ou do PT. Havia consenso para enfrentar problemas graves como essa crise sanitária, que está se tornando uma crise humanitária. E a gente vê o Governo Federal jogando pelo dissenso, pregando a discórdia”.

Elogios a BH

Todos os especialistas entrevistados elogiam a política implementada pela Prefeitura de Belo Horizonte, que baseou as medidas de fechamento e reabertura do comércio nas orientações de médicos do Comitê Municipal de Enfrentamento à Epidemia da COVID-19 e em indicadores objetivos, como a ocupação de leitos de UTI, de enfermaria e o número médio de transmissão do coronavírus por infectado. Segundo o prefeito de BH, Alexandre Kalil, nenhuma das 621 mortes registradas na capital mineira ocorreu por falta de assistência médica.

O Governo de Minas Gerais também se preparou para o pior cenário de contágio no estado, criando um programa de retomada das atividades comerciais (Minas Consciente) com fundamento em estudos do Comitê Estadual contra a doença e construindo um hospital de campanha projetado para 768 vagas.

Infelizmente, não foi esse o cenário verificado em outros locais do país. Em Pernambuco, o sistema de saúde não suportou a quantidade de casos e houve relatos de que pacientes morreram por falta de equipamentos. No Rio, uma pesquisa da ONG Viva Rio e da MN Estatística, no mês de maio, mostrou que, nas favelas e periferias do estado da cidade, os efeitos da COVID-19 foram agravados pela falta de assistência de saúde. Do total de vítimas fatais do coronavírus nessas áreas, 20% morreram em suas próprias casas e, destas, 75% nem sequer procuraram ajuda médica.

No Pará, em abril, profissionais tiveram que retirar corpos do superlotado Instituto Médico Legal de Belém e transportá-los para caminhões frigoríficos. Situações semelhantes aconteceram em Santa Catarina e no Amazonas. Em Manaus, a quantidade de óbitos fez com que sepultamentos tivessem que ser realizados à noite, e os corpos chegaram a ser empilhados em uma vala comum, no Cemitério Nossa Senhora de Aparecida.

FONTE: HUMBERTO MARTINS/ EM.COM.BR - 08/08/2020 

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