A primeira tradução, reza a lenda, um escritor nunca esquece. Se for "escandalosamente má", então, pior ainda. Foi o que aconteceu em 1954 quando Clarice Lispector (1920-1977) teve seu romance de estreia, 'Perto do Coração Selvagem' (1943), traduzido para o francês.
Desapontada com o trabalho de Denise-Teresa Moutonnier, Clarice chegou a escrever uma carta para as irmãs, em 10 de maio, relatando os motivos de seu descontentamento: em um trecho do livro, a tradutora trocou "porcaria" por "excremento" e, em outro, "olheiras negras" por "óculos escuros".
Mais adiante, confundiu o substantivo "chamas", sinônimo de labaredas, pelo verbo "chamar". Foram, ao todo, quase 30 erros.
Clarice já estava decidida a dar o caso por encerrado quando foi convencida por Érico Veríssimo (1905-1975) a escrever uma carta ao editor, Pierre de Lescure, manifestando sua insatisfação.
Em resposta, o dono da editora Plon explicou, no dia 13 de junho, que, antes de ser publicado, o livro fora enviado à autora, para ela dar seu aval. Perplexa, Clarice respondeu, em 20 de junho, que não recebera carta nenhuma, tampouco o texto traduzido.
"Chateada com a tradução malfeita, chegou à conclusão de que teria de conformar-se. O melhor era esquecer que o livro havia sido traduzido", explica a biógrafa Teresa Cristina Montero Ferreira, autora dos livros Eu Sou Uma Pergunta - Uma Biografia de Clarice Lispector (Rocco, 1999), que vai ganhar uma edição revista e ampliada em 2021, e O Rio de Clarice: Passeio Afetivo pela Cidade (Autêntica, 2018).
Doutora em Letras pela Pontifícia Universidade Católica do Rio (PUC-Rio), Teresa Montero explica que Clarice só foi traduzida na França, em 1954, por iniciativa da diplomata brasileira Beata Vettori (1909-1994). Entre outros cargos, ela foi cônsul-geral em Paris e embaixadora em Quito.
"Ela também escrevia e, certamente, viu o talento da 'esposa do diplomata' Maury Gurgel Valente", observa. Quanto ao imbróglio envolvendo Clarice e Pierre de Lescure, tudo terminou bem. Ou quase.
"Sim, Clarice detestou a tradução e chegou a escrever uma carta para a editora com reclamações. Mas, depois, mudou de opinião e procurou desfazer a situação desconfortável", esclarece Nádia Battella Gotlib, doutora em Literatura Brasileira pela Universidade de São Paulo (USP) e autora de Clarice - Uma Vida que se Conta (Ática, 1995).
'Melhor do que Jorge Luís Borges!'
Na semana em que se comemora o centenário de Clarice Lispector, a autora de Laços de Família (1960), A Paixão Segundo G.H. (1964) e A Hora da Estrela (1977) é, segundo levantamento da UNESCO de 2012, a escritora brasileira mais traduzida do mundo: 113 traduções.
Entre os autores de língua portuguesa com mais títulos traduzidos, é a única mulher num ranking só de homens, como José Saramago (534), Jorge Amado (421) e Fernando Pessoa (374). Clarice ocupa a nona posição, à frente de Machado de Assis (97). Com 1.098 traduções, Paulo Coelho é o primeiríssimo colocado.
Traduzida para 32 idiomas, do mandarim ao croata, do norueguês ao russo, do turco ao hebraico, Clarice já foi publicada em 40 países: os mais recentes são Macedônia, Hungria, Sérvia e Eslováquia.
"Clarice atinge o âmago das questões humanas e extra-humanas. Sua obra é continuamente moderna e atual. Hoje, ela é parte do cânone da literatura mundial. Não há mais como ignorá-la", assegura Marília Librandi, doutora em Teoria Literária e Literatura Comparada pela Universidade de São Paulo (USP) e professora de Literatura Brasileira da Universidade de Stanford, na Califórnia.
Passado o susto inicial com Près Du Coeur Sauvage, a malsucedida tradução em francês de Perto do Coração Selvagem, A Maçã no Escuro (1961) ganhou versões em alemão, Der Apfel im Dunkeln, de 1964, e em inglês, The Apple in the Dark, de 1967.
Nos EUA, Clarice chegou a ter, em junho de 1964, três contos traduzidos pela poetisa Elizabeth Bishop (1911-1979) para a revista The Kenyon Review: Uma Galinha (The Hen), A Menor Mulher do Mundo (The Smallest Woman in the World) e Macacos (Marmosets). "Melhor que Jorge Luís Borges!", elogiou Elizabeth Bishop, em carta escrita em 1962 e incluída na antologia Uma Arte: As Cartas de Elizabeth Bishop (Cia das Letras, 1995).
Amor à primeira leitura
Professor do Departamento de Português e Espanhol da Universidade de Vanderbilt, em Nashville, no Tennessee, Earl E. Fitz foi um dos primeiros a estudar Clarice Lispector nos EUA.
Em março de 1971, ele cursava Literatura Comparada na Universidade de Nova Iorque quando, durante um seminário sobre o moderno romance brasileiro, Gregory Rabassa (1922-2016), um de seus professores, indicou a leitura de The Apple in the Dark. Foi amor à primeira leitura.
"Logo nas primeiras páginas, tive certeza de duas coisas: que adorei aquele romance, e que eu, um jovem estudante de doutorado, dedicaria minha vida a estudar Clarice e sua obra", derrama-se. "Décadas depois, Clarice e seu mundo poético, filosófico e profundamente humano continua a me ensinar coisas novas. Todo dia, é uma epifania diferente".
Fitz não é o único. Da nova geração, Katrina Dodson é outra admiradora confessa. Ela é a responsável pela tradução de The Complete Stories (New Directions, 2015), antologia que reuniu, pela primeira vez num único volume, todos os contos.
Doutora em Literatura Comparada pela Universidade da Califórnia em Berkeley, Katrina conheceu Clarice em 2003, quando lecionava inglês num colégio particular do Rio. Por indicação de amigos, comprou A Paixão Segundo G.H. que leu durante uma viagem de barco, de três dias, entre Manaus e Belém pelo Amazonas. "Um delírio total" foi sua primeira impressão.
Nove anos depois, veio o convite do biógrafo Benjamin Moser. O trabalho, conta, durou dois anos e a deixou "esgotada". "Foi difícil inventar uma voz para cada um de seus 85 contos. Me senti como uma atriz interpretando várias vozes em um mesmo palco", compara. Sua tradução ganhou o prêmio PEN 2016, um dos mais prestigiados. "Uma tradução extraordinária de uma autora excepcional", disseram os juízes.
Clarice não é apenas a escritora brasileira mais traduzida do mundo. É também a mais estudada. Aqui e lá fora. É o que revelam dois estudos: um da Universidade de Brasília (UnB), realizado pela doutora em Literatura e Práticas Sociais, Laetícia Jensen Eble, com 2,1 mil doutores em literatura brasileira no país; e outro da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), coordenado pelo professor de Literatura Comparada, João Cezar de Castro Rocha, com 224 pesquisadores residentes no exterior.
No primeiro trabalho, Clarice ocupa o terceiro lugar no ranking geral, com 63 citações - atrás de Machado de Assis (122) e Guimarães Rosa (100). No segundo, são 117 menções. À sua frente, apenas o "Bruxo do Cosme Velho" (135).
"Ao longo dos últimos anos, o número de trabalhos acadêmicos baseados na obra de Clarice aumentou consideravelmente. Até os anos 1980, era possível ler a totalidade do que se publicava sobre ela. Depois disso, o número de artigos, resenhas e livros aumentou tanto, aqui e lá fora, que se tornou impossível conhecer todos eles", admite Nádia Gotlib.
'Craque', 'gênio', 'superstar'...
A escritora brasileira mais traduzida do mundo trabalhou também como tradutora. Poliglota, traduziu, entre outros autores, o irlandês Jonathan Swift (1667-1745), o estadunidense Edgar Allan Poe (1809-1849), o francês Julio Verne (1828-1905), a inglesa Agatha Christie (1890-1976) e o argentino Jorge Luís Borges (1899-1986).
"Traduzo, sim, mas fico cheia de medo de ler traduções que fazem de livros meus. Além de ter bastante enjoo de reler coisas minhas, fico também com medo do que o tradutor possa ter feito com um texto meu", escreveu Clarice na crônica Traduzir Procurando Não Trair, publicada na revista Joia, de maio de 1968, e reunida na antologia Outros Escritos (Rocco, 2005).
Dos seus 18 livros, entre romances, contos e crônicas, A Hora da Estrela (1977) é, desde 1983, o mais traduzido. A história da retirante nordestina que viaja de Alagoas para o Rio em busca de uma vida melhor já foi publicada em 27 idiomas, como italiano (L'ora Della Stella), polonês (Godzina Gwiazdy) e tcheco (Okamzik Pro Hvezdu).
"Desigualdade social e sobrevida na adversidade não deixam de ser, salvo poucas exceções, problemas universais", destaca Nádia Gotlib. "O premiado filme de Suzana Amaral teve importante papel na difusão da obra de Clarice, dentro de fora do Brasil", arrisca Teresa Montero. Em seu primeiro papel no cinema, Marcélia Cartaxo ganhou o Urso de Prata no Festival de Berlim, em 1986, graças à sua atuação como Macabéa.
Mas, será que, 43 anos depois de sua morte, Clarice Lispector já alcançou o reconhecimento literário que merece no exterior? Bem, a julgar pelos adjetivos usados por Earl E. Fitz e Katrina Dodson para descrevê-la, como "craque", "gênio" e "superstar", parece que sim. O entusiasmo deles é compartilhado por Nádia Gotlib.
"Clarice é indiscutivelmente reconhecida tanto no Brasil quanto no exterior. E esse reconhecimento se deve, sobretudo, ao nível de excelência de sua obra literária. Seus textos 'falam' de qualquer pessoa e de todos nós. Apesar de localizada num determinado espaço, exibe características comuns a qualquer um de nós", explica a pesquisadora.
No Brasil, a obra de Clarice é publicada, desde 1997, pela Rocco. Antes disso, passou por algumas das mais respeitadas editoras do Brasil, como Francisco Alves, José Olympio e Nova Fronteira. Para festejar seu centenário, a editora está relançando, desde novembro do ano passado, seus 18 livros, com novo projeto gráfico, assinado por Victor Burton, e conteúdo inédito.
"A literatura de Clarice é, em sua essência, universal. Universal e atemporal. Não por acaso, ela é muito mais lida hoje, quatro décadas depois de sua morte, do que foi em vida. Isso se dá por uma razão muito simples: a obra de Clarice tem uma verdade insofismável. Todo aquele que se aproxima do coração selvagem de Clarice com o espírito aberto encontra algo de precioso", afirma o editor da Rocco, Pedro Vasquez.
fonte:BBC NEWS - 10/12/2020 09H:38MIN.
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