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“Um animal que escreve”. É assim que a escritora Micheliny Verunschk, 44, costuma definir-se. Indicada em 2004 ao extinto Portugal Telecom de Literatura por seu primeiro livro de poemas, Geografia Íntima do Deserto, ganhou o Prêmio São Paulo de Literatura 2015 na categoria melhor romance de autor estreante acima de 40 anos, com Nossa Teresa: vida e morte de uma santa suicida (Patuá). Nesta entrevista, ela fala sobre arte, morte, literatura e mercado.
Como escapar à polêmica criada pelo Prêmio Nobel dado a Bob Dylan, num ano em que os youtubers dominaram a Bienal de SP?
O prêmio a Dylan é um prêmio dado tanto a uma longa tradição poética como à contracultura. É, penso, um aceno da Academia a uma compreensão mais ampla, e menos focada na letra impressa, do que vem a ser a literatura. O livro, esse artefato, é algo muito recente na história da humanidade. A literatura, não. Para os antigos gregos, na tradição de Orfeu, a poesia era principalmente uma arte do corpo. Para os astecas todo o conhecimento e poética rigorosamente perpassava o corpo (e as instâncias da memória) antes de passar aos códices. No caso de Dylan, fico com a percepção de Raimundo Carrero: o poeta Dylan é que foi premiado, não o cantor e astro pop.
Em que medida os escritores tornaram-se escravos dos prêmios literários?
Quem escreve para prêmios ou vive em função de eventos está preso ao imediato. Creio que nenhum autor mais sério e comprometido com o seu ofício possa trabalhar em função disso. Entretanto, prêmios e eventos existem hoje como uma espécie de mundo em redor dessa atividade, afinal estamos em um sistema em que o capital é que dá as cartas. O universo dos prêmios deve representar para o escritor o mesmo que a feira para o feirante, uma oportunidade de as obras circularem. O mercado é apenas o mercado, a literatura é maior que ele.
Numa entrevista, antes do lançamento de Nossa Teresa, você falava sobre certa visão peculiar da morte. Nos seus dois romances, a morte é bastante presente. O que te atrai nesse tema?
É o meu tema por excelência, tanto na poesia, quanto na prosa, como na vida acadêmica. É o mistério da humanidade, o mistério não solucionado. O crime perfeito é a inexorabilidade da morte e não sabermos, parafraseando Caetano, a que tudo isso se destina.
Você classifica Nossa Teresa como prosa escrita por poeta, não prosa poética. Como a poeta escreve romances?
Não consigo separar ou definir quando termina uma e a outra começa. Sou uma pessoa que escreve. E que escreve prosa, poesia, artigo, ensaio. Claro, há aspectos formais que separam uma coisa da outra. Entretanto, uma coisa se mantém no mergulho em qualquer um dos gêneros que é a minha curiosidade para com o mundo.
É muita viagem imaginar que O Observador e o Nada tenha sido, de algum modo, uma espécie de ponte entre a sua poesia e a sua prosa?
Por muito tempo achei que a poeta havia surgido antes, porém pouco antes de morrer, meu pai encontrou um caderno no qual eu já arriscava um romance, por volta dos nove, dez anos. Por algum motivo, o trabalho com poesia foi o primeiro a ser lapidado. Embora venha me exercitando na prosa há anos, sobretudo em narrativas curtas, só recentemente me achei suficientemente madura para me dedicar com mais disponibilidade a isso.
O que te fez abandonar a ideia da trilogia iniciada com Geografia Íntima do Deserto?
Não abandonei, na verdade. A Cartografia da Noite (Lumme, 2010) é o segundo volume dessa trilogia e Outra Arte, que vai ser publicado pela Martelo Editorial, o terceiro volume.
Falamos em trilogia, Aqui, no Coração do Inferno é o primeiro de uma trilogia, certo? Em que momento isso se desenhou como um projeto?
A trilogia se configurou depois que o livro estava pronto. Explico. Inicialmente, eu iria publicar um único volume, com três perspectivas e tempos diferentes. Só depois de terminar é que percebi que eram (ou poderiam ser) três livros. Me agrada o tom folhetinesco que isso tem. Então, a priori, tenho três livros prontos. O primeiro foi publicado e nos outros dois estou fazendo ajustes, afinando enredo e forma.
Como as ideias surgem, tipo a relação entre o menino canibal e a garota, e como lida com elas até que se consolidem em projetos?
Desde o início desse projeto pensei que a permeabilidade entre os tempos haveria que ser contemplada. No geral, quando escrevo tenho um arcabouço completo daquilo que quero, com flexibilidade para algumas coisas novas. O menino canibal, que aparece no segundo livro, mas foi o primeiro a ser escrito, precisava de um contraponto que o situasse no tempo, porque, de algum modo, ele paira em outro lugar. Não sei se consigo me explicar, porque é uma coisa muito íntima, mas em resumo, ele precisava da menina para ter chão.
Em Aqui, no Coração do Inferno há um irresistível humor, uma fina ironia, que vai se diluindo em melancolia enquanto a trama avança. Como é seu processo criativo?
Como disse antes tenho sempre um núcleo duro da história quase completo quando me proponho a escrever. Foi assim com Nossa Teresa e é assim com os contos. O meu trabalho é encontrar a melhor forma de contar essa história, porque acredito que não é só ter uma narrativa na manga, mas aprender o modo como contá-la. Esse é o verdadeiro trabalho, acompanhar os personagens em suas dores, crescimentos, suprir o que lhes falta, perceber o que funciona e o que não funciona.
“A ideia de que somos geniais é desastrosa”, você disse certa vez. Como sobreviver no universo das redes sociais, em que todos parecem ser absurdamente geniais?
Gosto de repetir uma frase que, me advertiram uma vez, é pouco generosa com os que fazem a literatura hoje. Mas não me importo, porque acho que somos suficientemente generosos e mesmo condescendentes uns com os outros. Partindo da ideia de que toda literatura, de Homero a Elena Ferrante, é feita agora (por isso, não acredito muito em contemporaneidade), a frase é: sucesso mesmo são Cervantes e Shakespeare, que continuam sendo lidos. Se tivermos isso em mente não caímos nas armadilhas que nós mesmos armamos para nós.
Para brincar de roleta russa com a arma quente da felicidade
O tema da morte perpassa toda a obra desta poeta e ficcionista pernambucana, que estreou em 2003 com o livro de poemas Geografia Íntima do Deserto (Landy), finalista ao Portugal Telecom. A prosa, no entanto, como ela admite, esteve presente em sua vida literária desde a infância.
Rigorosa com a linguagem e com a tessitura de cada trama, Micheliny Verunschk lançou seu primeiro romance em 2014, Nossa Teresa: vida e morte de uma santa suicida (Patuá). De cara, premiado como melhor no gênero estreante acima de 40 anos no Prêmio São Paulo de Literatura.
Comentamos aqui, ainda em 2015, sobre a habilidade desta autora em urdir a história, atrelada à pesquisa em Nossa Teresa. Ao contrário de outros ficcionistas-poetas, Verunschk descarta o lirismo e centra a sua escrita em outro vértice. A poesia está no cerne do cotidiano e basta.
Prosa vigorosa
Equilibrando-se entre os abismos, como diz, ela tem conseguido produzir tanto em um gênero como no outro. Se na gaveta admite ter material para publicar pelos próximos três ou cinco anos – dois livros de poesia para esse ano ainda e um de contos para o ano que vem –, o que nos apresenta agora surpreende pelo extremo vigor.
Nos referimos desta vez ao romance Aqui, no Coração do Inferno (Patuá), que integra uma trilogia. A ideia surgiu, ela diz, após ter o livro pronto e descobrir que, por sua força, cada protagonista poderia narrar a própria história.
No momento, Verunschk trabalha justamente na afinação do enredo e da forma dos livros que darão sequência à história do garoto canibal que assusta e fascina uma pequena cidade.
Preso na cozinha da casa do delegado – que teme que a população mate o pequeno assassino –, o garoto acaba se envolvendo com uma menina de 12 anos, filha do policial. Nada é previsível aqui, no coração do inferno, e a trama quase convida o leitor a prosseguir. Sorte dele. Tem mais.
fonte:atardeonline de 05/11/16/reprodução
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