Paulo Freire -foto:reprodução
Dentre os poucos detalhes conhecidos sobre os planos para a educação do novo governo, chama a atenção no programa de Jair Bolsonaro (PSL) a citação ao nome de um educador. O presidente quer expurgar Paulo Freire das escolas brasileiras.
Não há detalhes sobre o significado prático disso, mas a ideia é criticada por educadores. Seu método e filosofia exercem forte influência em algumas das melhores escolas do país. Além disso, Freire é o intelectual brasileiro mais reconhecido em todo o mundo.
Para especialistas, o pernambucano, morto em 1997, transformou-se em bode expiatório para quem acusa professores de uma suposta doutrinação. Estaria na obra de Freire, e na sua influência entre professores, ferramentas para um ensino sectário, além de uma das explicações para os fracassos da educação pública nacional —o que não é compartilhado por líderes de escolas de elite.
Nascido em 1921, no Recife, Freire desponta como referência para a educação popular no início dos anos 60, quando desenvolve um bem sucedido método de alfabetização de adultos em Angicos, interior do Rio Grande do Norte. O método, que parte dos saberes e experiências acumuladas, ganhou o mundo.
O autor desenvolve uma pedagogia crítica (que vai além do método de alfabetização) com princípios fincados no diálogo entre professores e estudantes e no valor da educação como ferramenta para emancipação individual e social.
“É a visão de que educar é um ato político, não partidário, nem de esquerda, mas da escola envolvida nos problemas contemporâneos”, diz Franciele Busico, professora do Instituto Singularidades e coordenadora pedagógica na rede municipal de São Paulo.
O principal livro de Freire, “Pedagogia do Oprimido”, está entre as cem obras mais citadas em língua inglesa, segundo o Google Scholar, ferramenta de literatura acadêmica. É o único brasileiro nessa lista. Na área de educação, aparece como o segundo mais referenciado —o volume de citações é um dos mais importantes indicadores de relevância científica.
Educadores estrangeiros como Peter McLaren e Michael Apple dialogam com sua obra. Há centros de estudos inspirados em Freire em países como Finlândia e Canadá.
O economista Martin Carnoy lembra que o conceito de educação “como libertação da ignorância e subjugação política” é tema comum na filosofia do Iluminismo, de Rousseau, Thomas Jefferson, até mesmo de John Stuart Mill. Carnoy é professor em Stanford (EUA) desde 1969. “O ataque de Bolsonaro a Freire”, escreveu ele à Folha, “é um ataque aos próprios fundamentos da democracia ocidental e ao conceito de liberdade”.
Para Carnoy, Freire conseguiu alcançar dezenas de milhões de pessoas com uma mensagem clara sobre o papel da educação em uma sociedade livre. “Todos, não importa quão pobres, não importa quão marginalizados, merecem ter uma educação.”
Para educadores brasileiros, a obra do pernambucano é mais reconhecida lá fora.
O professor Júlio Emílio Diniz-Pereira, da Universidade Federal de Minas Gerais, explica que o grande impacto da obra de Freire foi entender que a educação era essencialmente política em um momento, nos anos 60, em que a escola era concebida apenas como instrução.
Pesquisador em formação de professores, Diniz-Pereira afirma que, apesar da sua importância, a ideia de que Paulo Freire seja o livro de cabeceira de todos os professores não é verdadeira. “A minha experiência empírica é de uma grande ausência de Paulo Freire nas licenciaturas e nos cursos de formação de professores”, diz.
A presidente da Anped (associação de pós-graduação em educação), Andrea Gouvea, diz que Freire não chega a ser o autor mais estudado por aqui. “Há um desconhecimento e preconceitos [por parte de quem o ataca], o que impede um debate. Nem há predominância de Paulo Freire em nenhuma diretriz educacional”, diz.
Diretor do tradicional colégio Rio Branco de Higienópolis, no centro de São Paulo, Renato Júdice concorda: “Quem dera as ideias dele estivessem mais presentes, quando propõe mais autonomia, mais crítica do conhecimento”, diz ele, que ressalta a repercussão internacional de seus estudos.
“Todo educador no mundo inteiro tem como referência Paulo Freire”, afirma Mauro Aguiar, diretor do colégio Bandeirantes, na zona sul de SP.
Método
Como método Paulo Freire ficaram conhecidas as estratégias de alfabetização em que se parte do conhecimento e da realidade social do estudante.
Essas concepções filosóficas influenciaram pesquisas e práticas pedagógicas no Brasil. Mas não é possível dizer que há em Freire uma proposta fechada para alfabetização de crianças.
Há um debate no país sobre a eficácia de diretrizes de alfabetização, sobretudo entre o chamado método fônico (que concentra atenção na relação entre letras e sons para depois chegar à leitura) e o construtivista (que, em resumo, alfabetiza já focado na leitura de textos que, de preferência, façam sentido para o aluno). Críticas indicam que esse último seria a tendência nacional, com a influência de Freire, e os resultados ruins da educação seriam derivados disso.
Estudiosos como a professora emérita da UFMG, Magda Soares, criticam a ausência de referenciais metodológicos na maioria dos professores alfabetizadores do país. Os maus resultados estariam mais ligados às deficiências no sistema de formações de docentes do que na adoção de um método específico.
A definição do que se deve ensinar nos anos de alfabetização, presente na Base Nacional Comum Curricular, é apontada ainda como um caminho para melhorias.
Segundo pesquisadores, a obra de Paulo Freire transita entre a filosofia da Educação e a didática, com uma ênfase grande nos temas de educação popular. As críticas a Paulo Freire, no entanto, são praticamente centradas na inspiração marxista de seus textos.
Freire trabalhava com os conceitos de classe social e defendia a educação como ferramenta de emancipação e superação das injustiças. Sua visão filosófica de que não existe educação neutra tem sido interpretada como convite a doutrinação.
Chão da escola
No também tradicional colégio Santa Cruz, na zona oeste da capital paulista, Freire tem grande importância, explica a diretora Debora Vaz. “Paulo Freire nos convida a compreendermos o chão da escola como o lugar no qual o professor valoriza os saberes dos alunos como ponto de partida para qualquer situação significativa de aprendizagem.”
Entre os egressos do Santa Cruz estão o cineasta Fernando Meirelles, o apresentador Luciano Huck e o banqueiro Roberto Setubal, copresidente do Conselho de Administração do Itaú Unibanco Holding.
Ana Fernandes, umas das coordenadoras pedagógicas do colégio confessional Santa Maria, na zona sul de SP, relaciona o autor a práticas descritas como modernas na educação. “Hoje é inaceitável que se comece uma sequência didática sem considerar o conhecimento prévio do alunos”, diz.
Segundo Ana Fernandes, já não é mais possível imaginar alunos passivos. “Eu coordeno turmas de 4º ano e as meninas começaram a reivindicar o espaço delas no futebol, sempre dominado pelos meninos. Elas conversaram comigo e organizamos o horário”, diz. Agora, elas têm a quadra para futebol às terças e quintas.
Os ataques ao pernambucano ganharam força em meio à onda conservadora que cresce no Brasil pelo menos desde 2013. Nos atos que antecederam o impeachment de Dilma Rousseff (PT), manifestantes pediam “menos Paulo Freire”.
O fato de ele ser um teórico do campo da esquerda, influenciado pela crítica marxista ao capitalismo, seria determinante para que os críticos exigissem um novo exílio de sua obra. Paulo Freire foi preso depois do golpe de 1964 e se exilou naquele ano, só retornando ao Brasil em 1980.
Grupos conservadores tentaram anular no Congresso o título de patrono da educação brasileira concedido em 2012. Após atuação de parlamentares e organizações de educação, a iniciativa foi derrubada na Câmara em 2017.
A educadora Ausonia Donato, diretora do colégio Equipe, na região central de SP, enfatiza a centralidade de Freire no projeto educacional da escola, mas ressalta que a própria filosofia do autor é incoerente com qualquer doutrinação.
“É um desconhecimento sobre o que Paulo Freire escreveu. ‘Ninguém educa ninguém’, as pessoas se educam mediatizadas, e ‘ninguém se educa sozinho’”, explica, citando o autor. “Isso já derruba qualquer frase sobre doutrinação.”
A onda de ataques a Paulo Freire e a efervescência em torno de projetos de lei inspirados no programa Escola sem Partido, que busca limitar o que o professor pode falar e vetar abordagens de gênero, ocorrem no mesmo momento em que o Brasil vê metas de inclusão escolar serem pouco observadas.
Também estão em discussão no país o formato da escola, o papel dos professores, o melhor aproveitamento da tecnologia e a importância de trabalhar melhor competências socioemocionais nas aulas, como resiliência, autonomia e trabalho em equipe.
Em Cotia, na Grande SP, o projeto Âncora tem sido reconhecido como uma das escolas mais inovadoras do país. Inspirada na portuguesa Escola da Ponte, a unidade não tem divisão de séries nem idade, e os próprios alunos constroem sua agenda de estudos.
A educadora Suzana Ribeiro diz que autonomia é a palavra-chave da escola. “A contribuição de Paulo Freire é fundamental na nossa filosofia. Ele revela a necessidade e a vibração que a autonomia traz.”
O país está ainda em meio ao seu mais profundo debate sobre currículo. A Base Nacional Comum Curricular da educação infantil e do ensino fundamental está em fase de implementação, e a do ensino médio, aprovada no fim do ano passado, deve começar a ser aplicada. O documento define o que os alunos devem aprender na educação básica.
Freire não é citado no texto, mas foi precursor de discussões sobre currículo no país quando esteve na Secretaria Municipal de Educação de São Paulo (1989 a 1991). Foi pioneiro nos debates sobre programas de tecnologia na educação, no mesmo período.
A Folha solicitou à equipe de Bolsonaro, ainda antes da posse, detalhes sobre o que o governo entende por “expurgar” o autor, mas não obteve resposta. Também questionou o ministério após a transmissão de cargo ao ministro da Educação, Ricardo Vélez Rodríguez, mas a pasta informou que não se posicionaria.
Vélez Rodríguez já escreveu que houve um processo de domínio da ideologia marxista nas escolas com base nas ideias de Paulo Freire, que teria sido um “grande pedagogo dentro da ideologia marxista-gramsciana”. No discurso de posse, o ministro afirmou o compromisso de libertação das escolas da suposta dominação do marxismo cultural.
72.359 é o número de citações de “Pedagogia do Oprimido” registradas pelo Google Scholar, ferramenta de pesquisa para literatura acadêmica em inglês
99ª obra mais citada do mundo, segundo a ferramenta. É o único autor brasileiro entre os 100 mais citados
2ª obra mais citada no mundo na área de educação em artigos em inglês.
fonte:folhapress/reprodução
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