segunda-feira, 14 de janeiro de 2019

Salvador: "A vilã nunca é esquecida", diz viúva de Mãe Stella de Oxóssi


Companheira de Mãe Stella por 13 anos, Graziela Domini fala sobre os últimos dias com a ialorixá - Foto: Gilberto Júnior / Ag. A TARDE
foto:reprodução atardonline

A psicóloga Graziela Domini, 56, viveu os últimos 13 anos ao lado de Maria Stella de Azevedo Santos, a Mãe Stella de Oxóssi, que deixou o mundo menos sábio e luminoso no dia 27 de dezembro, quando faleceu. A relação foi cercada de amor e tumulto até o último momento. Sentindo-se injustiçada, Graziela pede que a deixem em paz.
Como estão sendo esses dias para a senhora?
A morte pra mim, e deveria ser para todo mundo, é uma coisa normal. Eu não ia querer que Mãe Stella ficasse 100, 110 anos sofrendo em cima de uma cama. O Candomblé canta pedindo longevidade. Precisa de tempo para cumprir a missão. Ela percebia que sua missão já estava cumprida, mas, por amor a mim, queria viver. Então dizia que estava bordando o cabo da missão dela, como aquele dito que ela gostava de repetir: quem tem tempo, faz a colher e borda o cabo. A morte de Mãe Stella foi o momento mais lindo que já vivi. Nós traduzimos o axexê [ritual fúnebre] inteiro. Desafio a quem está cantando o axexê se sabe traduzir.
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Não sou uma pessoa cruel para recorrer com o corpo de uma pessoa em um caixão
Graziela Domini
Como a senhora recebeu a decisão da juíza Caroline Rosa de Almeida Velame Vieira que determinou a transferência do corpo de Mãe Stella para Salvador?
Não tem que ser eu a refletir sobre isso. Sou uma pessoa de obediência. Do mesmo jeito que obedecia à minha ialorixá, obedeço à autoridade civil. Fizeram muito bem arrumado. Não vou dizer armado. Mas fizeram muito bem arrumado para que a decisão saísse de último momento. Não sou uma pessoa cruel para recorrer com o corpo de uma pessoa dentro de um caixão. O que eu queria e o que ela me pediu eu consegui, que foram as 24 horas. Por 24 horas, ninguém pegou na cabeça dela.
Mas o que a comunidade do Ilê Axé Opô Afonjá defendeu foi que ela pudesse passar pelos ritos da religião no local que comandou por mais de 40 anos. Por que a senhora insistiu em mantê-la em Nazaré?
Eu tenho um vídeo dela gravado [no vídeo, Mãe Stella diz que gostaria de permanecer em Nazaré, por ser “mais tranquilo”]. Não falo nada que eu não tenha prova. E nós vivemos num país laico. Como alguém, num país laico, pode definir o que fazer com o corpo quando eu sou a esposa dela?Mas a senhora não acha que ela fez essa opção pela vida religiosa?Ela fez a opção quando saiu e disse ao jornal A TARDE: "para lá não volto mais". O papa também fez uma opção pela vida religiosa, um cargo vitalício, e ele abdicou. E aí? E se Mãe Stella quisesse se transformar em evangélica, não teria o direito?
Mas o que a comunidade defende é que tem alguns ritos que ela precisaria passar no terreiro.
Ela própria fez [os ritos]. Ela pediu ao hospital que mudasse toda a roupa de cama. Pediu para botar algumas coisas que não quero falar, tudo que ela precisava. Não deixou eu ver. Ela foi colocada na cadeira, o material foi dado para ela, alguém de santo ficava de costas e ela dizia: ‘já terminei, quero tal coisa’, e a pessoa entregava. Agora, deixa eu te dizer... Fiquei com tudo dela. Tudo que precisava ser entregue para o axexê. E ninguém me pediu nada. Mas eu vim aqui trazer. Por que fizeram tanta questão do corpo e os materiais do rito eles não entraram com a liminar para me pedir? E nem precisava, bastava dizer. Tava tudo lá separado.. Não pediram, mas eu trouxe. E já entreguei absolutamente tudo que competia ao rito. Não sei como eles fariam sem isso. Agora eu te pergunto: um rito fúnebre, seja de qual religião for, não necessita reclusão? Então por que se estava dando entrevista em pleno terreiro ontem [quinta-feira]? Tudo bem querer lutar contra a intolerância religiosa, mas não podia esperar três dias? Que necessidade é essa? Eles dizem que quero usar o nome de Mãe Stella... Venho de uma família muito tradicional. Se eu quisesse um nome, já teria um.
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A maior preocupação de Mãe Stella nos últimos momentos foi com a obra dela
Graziela Domini
Alguns filhos de santo disseram que Mãe Stella estava nua no caixão, e que o caixão era de madeira barata, o que consideraram um desrespeito. Como a senhora responde a isso?
Pedido de Mãe Stella. Ela me pediu há muito tempo que queria ser enterrada de mortalha. E tem sentido, é só gastar um pouco a massa cinzenta. Imagine você ser um morto e ter que tirar o sapato? Ter que tirar a anágua e tudo mais? Nós fizemos três mortalhas. Durante esse processo, onde eu ajudava ela a morrer, porque sei fazer isso, ela vestia a mortalha e pedia para rasgar. Eu tive até que pedir a tesoura da enfermeira. Chegou uma hora que não tinha mais mortalha, e aí ela falou pra eu pegar o lençol que tinha mandado eu comprar e lavar. Mãe Stella estava nua sim. Porque nasceu nua. Sobre o caixão, ela que não queria um caixão de luxo. Eu poderia comprar o mais luxuoso que ela quisesse. Então, sim, com muito orgulho e com muita honra, enrolei Mãe Stella nua num lençol, porque isso não denigre a imagem de ninguém, num caixão simples, como simples Mãe Stella era.
Mãe Stella foi atacada nas redes socias com comentários racistas e homofóbicos. Como a senhora se sentiu diante disso?
O sentimento é o mesmo de Mãe Stella. Da outra vez que ela esteve internada, quiseram fazer a mesma coisa, botar no Ministério Público. E eu levei um documento assinado por ela, com a digital dela, e está lá escrito que ela não se incomodava com nada disso. A moça diz que ela é macumbeira. E ela não é?
Mas o tom é ofensivo. Há intolerância religiosa no comentário.
As pessoas têm o direito de dar sua opinião. Nós não vivemos numa democracia? Mãe Stella jamais se sentiria ofendida. Cada um que se incomode, que lute, mas ela não se incomodava. Mãe Stella nunca percebeu o preconceito, porque não o tinha dentro dela.
Graziela segura o novo livro de Mãe Stella,
Graziela segura o novo livro de Mãe Stella, "A iemanjá e o pajé", que será lançado pela editora Solisluna
Os direitos autorais das obras de Mãe Stella pertencem à senhora agora. Como pretende dispor desses recursos?
Já perdi a conta de quantos livros escritos nós temos. Tem um que acabou de sair da gráfica [A Ialorixá e o pajé]. Foi escrito há quase 10 anos. Vai sair pela Solisluna. É todo ilustrado, é uma coisa linda... Tem uma página muito bonita. A gente fez questão de botar essa foto [Mãe Stella aparece criança numa foto escolar, rodeada por estudantes brancas]. Porque para Mãe Stella nada disso – ser negra no meio das brancas –, a incomodava. Ela não se incomodava quando as coleguinhas diziam: ‘Teté, você não é preta, você é marrom’. Ela entendia aquilo como um grande carinho. O preconceito mora dentro de quem tem ele. A maior preocupação de Mãe Stella nos últimos momentos da vida foi com a obra cultural dela. E ela deixou bem claro: se isso não me der trabalho, entendeu? Então... Se me deixarem em paz, que é o que eu espero, a humanidade ganha com a sabedoria de uma mestra que veio à Terra em sacrifício por todos nós. Eles sempre se preocupam com o dinheiro que eu recebo, mas nunca se preocuparam em dar uma Novalgina, um nada a Mãe Stella. E como é que se vive no Brasil de livros? Mas antes de viver com Mãe Stella, eu já era escritora e pretendo continuar no meu cantinho, no meu quarto, escrevendo, como sempre fiz. Enfim, deixem Graziela em paz. Não saio do meu cantinho pra perturbar ninguém. Eu sou por natureza uma monja celibatária.
Mas a senhora tem a pretensão de investir esses recursos em algum projeto ligado a ela?
Olhe, que recursos? (risos) Vamos lá. É só procurar. Desse livro meu [A Dama de Branco], cada livro que vendesse, eu receberia R$ 1,50. E aí eu troquei por livro, porque eu dou... Agora, se eu quiser montar alguma coisa para Mãe Stella, é muito fácil, não precisa de recurso não. Tenho tudo dela já digitalizado, mas não sei se quero.
Mãe Stella publicou sete dos seus nove livros após começar a relacionar-se com a senhora. Que tipo de influência acredita que teve nesses projetos?
A gente trabalhou até os últimos momentos. Larguei tudo, um consultório muito famoso, que tinha um ano de fila de espera, por quê? No dia que Mãe Stella ficou para jogar comigo, aos 70 anos, ela atendeu todo mundo e me deixou por último. Via as pessoas idolatrarem Mãe Stella e eu não a conhecia nem da televisão. Mas quando vi Mãe Stella andando sozinha pelo terreiro, que tem declives, dei o braço àquela senhora e disse à mim mesma: jamais ela estará sozinha. Levei dez anos junto a Mãe Stella sentada no chão e jamais ela disse: sente na cadeira. Fiz cirurgia na coluna, sofri tudo que um corpo pode sofrer. Aos 80 anos, ela me perguntou: você moraria comigo? Com toda certeza. Alguém que vai morar com outro aos 80 anos sabe o que lhe espera. Então, para fazer o dia dela passar, já que ela não tinha tanta mobilidade, cabia a mim estimular a mente. Ô Mãe, tem um bocado de provérbio em iorubá, vamos fazer um livro? Vamos fazer os artigos?
Sua saída do Afonjá, no final de 2017, foi tumultuada. Como vê o episódio hoje?
Vejo com muita piedade das pessoas que não têm maturidade emocional e espiritual para entender a vida. Mãe Stella foi a ialorixá mais velha do Afonjá. As pessoas não estavam preparadas para isso. Não dava mais para tratar de determinados assuntos com uma pessoa de 90 anos. E eles queriam que ela definisse. E quando ela definia algo que eles não gostavam, ‘ah, foi Graziela’. Como vou definir algo se nem aos rituais eu ia? O objetivo era me tirar de lá. Ok, eu não sairia, eu morreria ali. Só que Mãe Stella no hospital disse: ‘vamos embora’. Tive a decência de ir ao Ministério Público e à Delegacia do Idoso para avisar que estava levando Mãe Stella. Não sinto absolutamente nada pelo que fizeram, tá? Sinto muita tristeza pela reação da sociedade. Eles tinham um objetivo. E qual objetivo da sociedade? Quem parou para me ouvir?
A senhora ficou como a vilã da história. Como é ocupar esse papel?
Ah, a vilã nunca é esquecida (risos). Nazaré Tedesco nunca será esquecida, né? Por mais que eu buscasse viver isolada, algum motivo o universo tem para me expor.

É contraditório porque as pessoas a acusam de manipular Mãe Stella, mas ao mesmo tempo atribuem a ela uma sabedoria e um poder muito grandes...
Mãe Stella é retardada ou sábia? Definam, pelo amor de Deus! Eu tô me sentindo uma garota superpoderosa. Um Estado se moveu para lutar contra uma mulher. Então, parabéns pra mim.
Até toda essa briga acontecer, a senhora era referenciada como uma filha de santo da casa, e não como companheira de Mãe Stella. Foi uma opção não tornar a relação pública?
A gente é esperta... Mãe Stella é uma pessoa de Oxóssi, com o coração fechado e recluso. Eu sou uma pessoa de Iemanjá, por natureza apaixonada por tudo. O jogo começou a prever tudo que iria acontecer. Mãe Stella ficou quietinha, alertando os filhos, pedindo união. Não sou eu quem vai dizer o que é o Ilê Axé Opô Afonjá. O Opô Afonjá está dizendo. Não posso fazer nada se Mãe Stella é apaixonada por mim, gente. Se matem, se rasguem todos, mas o que eu posso fazer? Então, nós casamos. Quando eles me arrastaram, eu disse: nós somos casadas. Todos riram. Eu perguntei: vocês estão rindo do quê? Do fato de duas mulheres se amarem? Ou estão achando ridículo uma mulher de 80, 90 anos, ainda ter a capacidade de amar alguém? Uma mulher de 80 anos com uma mulher de 40, o amor está muito mais do umbigo para cima do que do umbigo para baixo. Mãe Stella me respeitou, porque sabe que minha escolha sempre foi o celibato. E se foi necessário para que eu a protegesse, que a gente fizesse isso pela Justiça, ela não titubeou em me pedir em casamento, ao qual eu aceitei com muito afeto. Tenho fotos dela expondo para a lua o nosso anel de casamento. É linda nossa história de amor.

fonte:atardeonline 14/01/19 - 19:03min/reprodução

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