Foto: Vladimir Gerdo /TASS/reprodução
Pivô de um dos mais extraordinários episódios de defesa das liberdades individuais da Rússia de Vladimir Putin, o jornalista Ivan Golunov acredita que só haverá livre expressão em seu país quando todo o sistema associado ao longevo presidente, no poder há 20 anos, desabar.
"Não é só o Putin. É tudo, é seu partido, cada vez com menos credibilidade, são as pessoas do sistema", afirmou Golunov à Folha em um hotel de São Paulo, onde participa do Festiva Piauí de Jornalismo neste domingo (6).
Repórter investigativo, Golunov trabalha para o site independente Meduza. Em 6 de junho, ele havia acabado de entregar o texto de uma apuração sobre uma máfia do serviço funerário de Moscou que apontava para o envolvimento de membros do FSB, o serviço secreto sucessor da KGB soviética.
Após encontrar um amigo à noite, ele foi abordado por policiais, que jogaram dentro de sua mochila pacotes com pó branco. "Na hora percebi a armação", disse. Detido, ele foi espancado e só pôde ter acesso a um telefone às 3h30 da madrugada seguinte.
"Eu focava nas coisas práticas, como falar com meu advogado. Assim, não tive tempo de pensar em morrer ou nos 20 anos de prisão a que poderia ser condenado", contou. "Realmente, eu não achava que algo assim pudesse acontecer", disse.
Segundo ele, os jornalistas russos estão acostumados com pressão psicológica, mas que episódios como o assassinato da repórter investigativa Anna Politkovskaia, em 2006, seriam uma coisa do passado. Desde 2000, 28 profissionais de mídia foram mortos por causa de seu trabalho no país, segundo o Comitê de Proteção aos Jornalistas --no Brasil, foram 34.
O mais surpreendente na história de Golunov veio a seguir. Jornalistas, mesmo aqueles ligados ao Kremlin, se insurgiram contra sua prisão. Até a RT, o canal de TV que serve de palanque para o regime putinista, questionou o motivo da detenção.
No quarto dia de sua prisão, os três principais jornais russos publicaram a mesma manchete: uma página em branco com a frase "Eu sou/Nós somos Ivan Golunov" --mote estampado na camiseta que Golunov veste durante a entrevista. A reação da elite e da classe média intelectualizada russa chegara a um ponto inédito e o Judiciário, que é visto largamente como um cartório dos interesses do governo, teve de ceder.
Franzino e tímido, Golunov tem 36 anos e nem sequer bebe como é usual entre seus compatriotas e colegas de profissão --é fumante compulsivo, o que o faz descer de tempos em tempos os muito andares do hotel em que está nos Jardins. Seus amigos estranharam assim a acusação de porte de drogas e, ainda mais, a foto de um suposto laboratório de refino em sua casa.
A imagem foi usada até pelo porta-voz de Putin, Dmitri Peskov, para comentar o caso. Só que era uma fotografia de outro lugar, não da casa de Golunov, como a própria polícia foi obrigada a admitir. Com isso, no dia seguinte ao protesto dos jornais Kommersant, RBK e Vedomosti, Peskov disse que parecia haver erros no processo.
Na tarde daquela terça, 11 de junto, o Ministério do Interior afirmou que dois policiais haviam sido presos por armar o flagrante contra Golunov e o jornalista foi solto. No arranjo de poder na Rússia, a algo declinante popularidade de Putin é central para manter o controle das diversas facções, e o caso do repórter ganhou uma dimensão inesperada.
"Foi inacreditável. Até hoje eu não me acostumei com a publicidade do episódio. Logo depois da prisão eu fui para a República Tcheca, e o oficial da alfândega me cumprimentou pelo ocorrido", relata. Até então, o agora mundialmente famoso Golunov mantinha uma carreira discreta de reportagens sobre corrupção cotidiana, nada que envolvesse grandes temas.
Num primeiro momento, ele disse temer por sua vida, mas que isso agora não faz mais sentido. "Eu me sinto incomodado. Saio de casa com um policial de escolta todo dia, já que sou testemunha do processo da armação."
Editores russos também pediram mais cautela a seus repórteres depois do incidente. Segundo Golunov, jornalistas não bloqueiam mais o celular com identificador de digitais ou face, para evitar coerção física de eventuais sequestradores para liberar acesso a dados.
O episódio mudou sua vida, mas ele tenta seguir a rotina. Segue trabalhando para o Meduza, site que teve de mudar sua sede para Riga (Letônia) devido a pressões do Kremlin por sua linha contestadora. "Disseram que eu era um free-lancer trabalhando para uma publicação estrangeira, o que é mentira", diz ele, que é autodidata e trabalha desde os 13 anos.
Nos últimos dez anos, vem se dedicando ao jornalismo investigativo. É crítico do líder oposicionista Alexei Navalni, que surgiu na política como um blogueiro que publicava dossiês sobre corrupção de agentes do Estado. "Ele passou a ser mais político e menos investigador, manipulando e omitindo dados", afirma.
Descartando qualquer intenção política, Golunov vê uma correlação entre sua libertação e o movimento que tomou Moscou de assalto nos fins de semana que antecederam uma teoricamente inócua eleição para a Duma (Parlamento) local da cidade.
Dezenas de milhares de pessoas foram às ruas para pedir a reinclusão de candidatos oposicionistas barrados do pleito por tecnicalidades. Ao fim, o partido de Putin perdeu espaço na Duma.
"O que mudou [depois da libertação], eu acho, é que as pessoas passaram a ter esperança de que as mudanças são possíveis na Rússia", afirmou, não sem completar a avaliação com um saudável ceticismo.
"Só que é difícil. Mesmo pessoas que seriam bons candidatos acabam não participando porque acham que, no fundo, tudo será igual e eles farão parte do sistema", disse. Logo, diz, "é contraditório".
Sobre a crítica de que seu caso foi aproveitado pelo Kremlin para tentar mostrar ao mundo que nem tudo é repressão ao dissenso na Rússia, Golunov dá de ombros. "A pressão da sociedade foi inédita. Eu vi gente sobre as quais fiz reportagens com denúncias participando de piquetes em meu favor", disse.
Ivan Golunov fala sobre sua experiência às 16h30 deste domingo em mesa com os jornalistas Jaime Spitzcovski (Folha) e Thais Bilenky (Piauí).
fonte:Folhapress/05/10/19
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