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Uma réplica gigante, vermelha e com olhos azuis do Mickey observa tudo com as mãos atrás das costas. Algumas crianças se divertem com uma chuva de espumas, outras deslizam em um escorregador inflável. Há meninos no pula-pula, atores fantasiados de personagens, e um DJ, que mantém o clima de agitação. O cenário remete a um parque de diversões, existe até um pequeno portal com a inscrição Walt Disney World, mas o local é a Igreja da Lagoinha Alphaville, em Barueri, cidade da região metropolitana de São Paulo com um dos maiores PIBs do país – o 17º, segundo o IBGE.
Liderada pelo pastor-cantor-influenciador André Valadão, com mais de 600 templos espalhados pelo país e pelo exterior, a Igreja da Lagoinha possui um departamento cuja missão é “evangelizar e pastorear” crianças e pré-adolescentes de 2 a 13 anos. As menores ficam no chamado ministério “Kids”; os maiores, no “Link”. Além de educar os fiéis do futuro por meio dos chamados “discipuladores”, com cursos de formação, aulas bíblicas e celebrações em uma linguagem mais lúdica, esses ministérios têm a função de cuidar dos garotos enquanto seus pais estão nos cultos.
Distribuídas pelas faixas etárias, as crianças ficam nas “salinhas”, espaços menos formais nos quais a pregação religiosa é permeada por atividades de entretenimento. Os pequenos participam de brincadeiras, pintam, desenham e recebem lanchinhos. Já os pré-adolescentes fazem jogos e tomam parte de rodas musicais. Em datas especiais, como no 26/07, as dinâmicas ocorrem nos pátios das igrejas, atraindo não apenas os frequentadores habituais, mas também novos e potenciais seguidores, em um ambiente festivo.
Na manhã de 20 de julho, o encanto do ambiente se quebrou, conforme relato de uma advogada em processo contra a igreja que corre na Justiça paulista. Suas duas filhas, de 11 e 13 anos, estavam se divertindo em uma das turmas enquanto o pai participava do culto. Às 13h45, a mais velha lhe mandou mensagem de texto: “Na igreja do papai eles pedem dízimo pras crianças.” Sem pensar muito na resposta, a mãe devolveu no mesmo instante: “Sim, é para que aprendam desde cedo rsrs”. A menina emendou: “O cara falou que quem não desse dinheiro estaria roubando Jesus.”
A mãe conta que não quis esticar o assunto, mas passou o dia intrigada. À noite, chamou as filhas para conversar. Descobriu que a menor havia doado o dinheiro que tinha em sua conta bancária. Sentindo-se pressionada, segundo contou à família, ela pegou o celular, abriu o aplicativo do banco Santander e, às 11h06 da manhã, fez um pix de 16 reais.
“Mãe, o tio falou que mentir é feio, que falar palavrão é feio, e quando você tem dinheiro e não dá o dízimo, você está roubando Jesus”, relatou a criança na conversa, ressaltando ter dado o que tinha porque ficou com medo de estar “roubando Jesus”.
De acordo com o relato da caçula, o “tio” que a pressionou a doar dinheiro era um dos professores que atuam de forma voluntária como monitor da turma. A menina disse ainda que ele estava segurando uma maquininha de cobrança enquanto falava. A advogada então abriu um processo contra a igreja da Lagoinha, no qual pede reparação por danos morais.
“É evidente que a igreja responde pelos atos de seus voluntários, sobretudo quando esses atuam em ambiente institucional e diretamente junto a crianças, sujeitas à influência moral e religiosa dos adultos presentes”, afirmou na ação. “A fala revela pressão emocional, indução ao medo e constrangimento em um ambiente que deveria ser de acolhimento, cuidado e ensino, e não de exploração financeira”, escreveu.
À piauí, a mãe relatou que procurou por telefone o líder responsável, que ele disse que essa é uma “prática comum” e que, durante a aula bíblica, houve a leitura para as crianças de um texto de MALAQUIAS 3:6-101, acompanhado da conclusão de que “todos estão roubando a Deus e, por isso, a nação está amaldiçoada”.
A mãe considera que o dízimo, em si, não é o problema. “A questão é a forma: não tem o mínimo cabimento colocar a criança em uma situação desagradável. O que houve foi uma coação emocional, incompatível com um ambiente cristão que deveria transmitir mensagem de amor, e não de medo ou punição”, afirmou.
Após a conversa com o representante da Lagoinha, a igreja lhe enviou a seguinte mensagem: “Boa noite! Gostaria de pedir perdão pelo ocorrido, não obrigamos ninguém a ofertar, faz quem quer! Quanto ao ocorrido, estamos disponíveis a fazer a devolução, ok? Não estamos interessados na quantidade e sim em implantar na criança um coração generoso.” A mãe não se conformou. “Tal manifestação demonstra a ausência de reconhecimento da gravidade do episódio, já que não se trata de adultos conscientes, mas de crianças facilmente influenciáveis, que não possuem plena capacidade para discernir sobre as nuances”, disse na ação judicial em que pede a devolução dos 16 reais e uma indenização por danos morais de 20 mil.
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A Igreja Universal do Reino de Deus, por exemplo, foi condenada em segunda instância em janeiro deste ano a devolver 50.217,79 reais a uma fiel que frequentava o Templo de Salomão, um suntuoso prédio no Brás, inaugurado em 2014 a um custo de 680 milhões de reais, cujas paredes são revestidas com pedras importadas da Cisjordânia. Na ação, a mulher relatou que, desempregada e com problemas familiares, foi pressionada pelos pastores da Universal a fazer “sacrifícios” em forma de doações. Sem fazer “o impossível para Deus”, ela não obteria a transformação que desejava para a sua vida.
A mulher disse no processo que, como não tinha dinheiro, os pastores recomendavam que vendesse algum bem material. A fiel afirmou, então, que “sentindo-se pressionada psicologicamente e temendo que algo de ruim pudesse ocorrer”, passou a vender roupas e sapatos, entre outros objetos, além de sacar o valor limite de dois cartões de crédito. Em algumas reuniões, contou, algumas pessoas “possuídas pelo mal” eram levadas ao altar, onde se dizia que não estavam doando tudo o que tinham. A fiel contou que, com fé cega, sem capacidade de avaliar se estava agindo de forma certa ou errada, acabou vendendo seu carro. “Em dezembro de 2023, ela repassou o valor integral da venda à igreja”, afirmaram à Justiça os advogados Flavio Nobre e Rogério Ferreira, que a representam. Os advogados consideram que ela foi vítima de violência psicológica.
A Universal negou à Justiça a acusação de coação moral. Afirmou que a fiel é “maior de idade, alfabetizada e plenamente capacitada para executar qualquer ato, inclusive as doações realizadas”. Segundo a igreja, seus pastores nunca fazem ameaças e jamais dizem que as doações são condições necessárias para se alcançar uma glorificação. “Se realizou as doações, significa que foi através da própria fé desta, do entendimento à Bíblia Sagrada”, ressaltou.
Ao condenar a igreja a devolver os valores doados e ainda pagar uma indenização de 10 mil reais, o desembargador João Francisco Moreira Viegas afirmou que a entrega de todos os recursos da autora do processo a uma instituição religiosa, “pelo receio de que poderia vir a acontecer no campo da espiritualidade, ou receio da não salvação”, justifica a condenação por danos morais. “Há que se concluir que as quantias entregues, mesmo com o escopo da liberdade de culto e de religião consagradas pela Constituição Federal, exauriram todos os recursos da autora do processo, o que não se pode admitir”, afirmou. A Igreja recorreu ao Superior Tribunal de Justiça, mas ainda não houve novo julgamento.
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Procurada pela piauí para comentar a acusação de coação moral feita pela mãe à Justiça, a Igreja disse por meio de uma nota que não se manifestará publicamente sobre a ação judicial pelo fato de envolver uma menor de idade. Afirmou que todos os esclarecimentos necessários serão prestados exclusivamente nos autos, “com responsabilidade e plena confiança na Justiça”. “Reiteramos nosso compromisso com a proteção integral da criança, e o respeito absoluto a sua dignidade, reafirmando que toda e qualquer medida será pautada por esse princípio.”
À Justiça, a Igreja afirmou que a criança foi levada pelo pai, que ele realizou o check-in digital autorizando sua participação no culto de pré-adolescentes, enquanto permaneceu no culto principal. Disse que o pai assinou uma declaração escrita confirmando que “a participação foi autorizada e livre, que não houve constrangimento ou coação, que as filhas deixaram o culto alegres e acolhidas e que a doação de 16 reais foi espontânea”.
A Igreja disse no processo que não há nos autos prova de coação. “A mãe sustenta que a filha não teria discernimento por ser visitante. Entretanto, admite que a menor possui acesso a conta bancária e meios de pagamento digitais em aparelho celular próprio, sem supervisão. Tal contradição revela que, se é conferida maturidade para lidar com recursos financeiros, não se pode negar idêntica maturidade para compreender uma mensagem religiosa, sobretudo em ambiente autorizado pelo pai”, declarou no processo.
Na declaração anexada aos autos, o pai disse que em nenhum momento presenciou ou teve conhecimento de qualquer prática abusiva, constrangedora, ameaçadora ou emocionalmente danosa, seja por parte dos voluntários da igreja ou de qualquer representante ali presente. “Não houve afronta à dignidade, liberdade ou integridade moral das minhas filhas”, disse.
O processo ainda não tem data para ser julgado.
Fonte: Rogério Gentile, de São Paulo - 29/09/2025 /Revista Piauí/reprodução em 30/09/2025 12h:25
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