domingo, 8 de março de 2015

Leia o texto do escritor e poeta José Barreto "Lampião, de parte com o tinhoso"

Lampião, de parte com o tinhoso
                               Foto:reprodução

O jornalista, escritor e poeta José de Jesus Barreto, que até agora só havia publicado poemas neste espaço, volta à coluna com um belo conto sobre o cangaceiro Lampião, bandido para muitos, herói para outros tantos, que assombrou o Nordeste, na Bahia conheceu apaixonou-se e casou com Maria Bonita, e morreu em 1938 no Angico, em Sergipe. A história aqui contada descreve o tenso encontro de um avô do autor com Lampião em uma estrada de terra na zona da mata sergipana. O agricultor nunca mais foi o mesmo.

Confira o texto completo abaixo:

À guisa de alumiação 
  
Lampião existiu. Nasceu no ano de 1897, em Serra Talhada, sertão de Pernambuco, e foi batizado com o nome de Virgulino Ferreira da Silva. Trabalhou desde menino com o pai e irmãos no roçado, e depois como tropeiro varando o interior de Pernambuco, Alagoas, Sergipe e Bahia. Os estudiosos do cangaço relatam que aos 17 anos, mais ou menos, o jovem Virgulino tentou ‘ganhar a vida’ como almocreve, carregando couro de bode e pele de carneiro em lombo de burro de Uauá e Curral dos Bois (hoje Glória) para o coronel Delmiro Gouveia, em Pedra, estado de Alagoas.
 
   Mas a vida de bandoleiro, chefe de cangaço também começou bem cedo para ele, antes dos 20 anos, após a morte do pai, José Ferreira, pelo que se sabe assassinado pelo tenente José Lucena, à frente de um grupo de pistoleiros e a mando de coronéis latifundiários da região, enquanto o jovem Virgulino e seus irmãos tropeavam em Uauá.
  O cangaço, assim, teria sido sina, destino ou opção de vida, por mera vingança. À frente de um bando desalmado, Virgulino e três de seus irmãos espalharam horror nordeste acima, sertão adentro, sem paz ou descanso, proclamando-se, a cada arrelia e conquista, o senhor dos sertões nordestinos, ‘O Rei do Cangaço, o Lampião’, com a polícia de cinco estados em seu encalço.
 
   No ano de 1926 foi recebido pelo milagreiro santificado pelo povo sertanejo, o ‘padim’ Padre Cícero, em Juazeiro do Norte (Ceará), quando lhe foi concedida a patente de capitão: Capitão Virgulino, vulgo Lampião. Em 1927 tentou tomar de assalto a cidade de Mossoró, no Rio Grande do Norte, à frente de 75 cabras cangaceiros, quando foi rechaçado.
    
  Em seu livro ‘Lampião na Bahia’ (Ponto e Vírgula Publicações, 2010), o escritor e pesquisador baiano Oleone Coelho Fontes dá rumo à prosa:
 
  “Ao pisar em terras baianas, Virgulino Ferrreira da Silva já tinha 31 anos de idade, ostentava a patente de capitão, título de que muito se orgulhava e fazia alarde. Além de Mossoró (1927), assaltara, em lance de grande atrevimento, Água Branca (1922), Alagoas, quando saqueou a baronesa Joana Viana de Siqueira Torres, despojando-a de jóias e moedas de ouro do Império, com as quais passou a enfeitar-se. Esses episódios, somados ao frustrado assalto a Mossoró, à patente de Oficial do Exército e às inúmeras batalhas em que se envolvera – Baixa Grande, julho de 1924; Serrote Preto, fevereiro de 1925; Serra Grande, novembro de 1926 – bem como ao saldo de mortes que lhe vinha no rastro, davam-lhe prestigioso renome em todo o Brasil e até no exterior.  Seu nome causava arrepios.”
 
   Escorraçado em Mossoró, Lampião fugiu, atravessou Paraíba, Pernambuco e Alagoas e veio dar na Bahia, cruzando o rio São Francisco nas imediações do município de Glória à frente de apenas cinco ‘esfarrapados, esfomeados, estropiados e mais mortos que vivos’ cangaceiros, em 21 de agosto de 1928. Então, renovou seu grupo, dividiu em bandos sob comando de seus homens de confiança e, com estratégias e forte espírito de liderança retomou as ações do cangaço, assustando e desafiando os poderes constituídos.
   Durante 10 anos Lampião, à frente de seus bandos, circulou, ditou ordens e plantou terror nos sertões de Bahia e Sergipe, assaltando, achacando, ameaçando, combatendo, fugindo e perseguindo, escondendo-se e surpreendendo, acoitando-se muitas vezes protegido por coronéis e políticos regionais que preferiam não enfrentá-lo. Mal sabia ler e escrever, mas era sagaz e inteligente, um notável estrategista, corajoso, cruel com seus inimigos e dono de um sexto sentido admirável.  
 
   Na Bahia, o Capitão Virgulino encontraria o grande amor de sua vida, Maria Déia, a Maria Bonita, a quem tratava carinhosamente como ‘Santinha’, e com quem viveu até caírem mortos, juntos, em Angico (Se), a 28 de julho de 1938. 
 
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   Conforme observações e relatos de pessoas que estiveram de frente com ele, Lampião era um sujeito de estatura mediana, voz mansa e não grave, tez morena bem queimada de sol, cabelos lisos escorridos, óculos de aro fino e lentes escurecidas pra esconder um olho vazado por espinho da caatinga, corpo delgado, usava à mostra vários tipos de armas – parabelum, rifle, punhal -, mais cartucheiras e embornais cheios de bala. Vaidoso, gostava de um lenço colorido, quase sempre vermelho, no pescoço e preso com um anelão dourado, usava anéis, o chapéu de couro quebrado na testa enfeitado com medalhões de ouro, era chegado num perfume e calçava alpercatas de couro cru.     
    
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   Em Sergipe, onde aconteceu o episódio real que inspirou o conto “De parte com o tinhoso’, o Capitão Virgulino nunca se mostrou tão cruel como em outros lugares, talvez por ter sido os sergipanos que lhe deram maior guarida e coito por essas bandas do nordeste. Mas foi lá, numa bem guarnecida grota à beira do rio São Francisco, que ele já envelhecido e adoentado afrouxou a vigilância, foi traído e morto num amanhecer de dia, sem ter direto de dar um só tiro, caindo ao lado de Maria Bonita e mais 11 de seus cabras cangaceiros.
  
   Então, o mundo vivia um estado de pré-guerra com a ascensão de Hitler assombrando a Europa e o Brasil experimentava o Estado Novo, a ditadura de Getúlio Vargas.
  
 
De parte com o tinhoso
 
 
   Antero nunca mais foi o mesmo, depois daquele encontro. Passou dias, semanas sem dizer palavra, a fala entalada na goela, sem ninguém saber o porquê. Envelheceu. Virou um mão aberta, nunca mais soube dar importância a ganhar dinheiro, foi-se desfazendo de tudo o que tinha, à toa, num desengano de breu, num desamparo sem fim.
   Estranho encontro... 
   Mas que estrupício de encontro teria sido aquele?
Só ele mesmo saberia e soube bem depois dizer o que de fato se deu e se passou de tão grave assim. 
 
   Logo percebeu-se ter sido coisa muito séria, porque Antero era muito reto e sempre fazia tudo nos conformes, de jeito previsível. Contudo, naquela ocasião ele saíra de casa - como sempre fazia de quinze em quinze aos sábados pela manhã  bem cedinho para ir à feira na cidade de Simão Dias, zona da mata de Sergipe, seis léguas distante do Engenho Velho, onde morava com a família, a mulher, três filhos homens já ficando taludinhos e uma menina de seis anos... - entonces, como vinha dizendo, inusitadamente naquele dia Antero não voltou, não chegou a tempo, na boca da noite como era de costume, com os alforjes do cavalinho de montaria cheios e os caçuás da mula de carga, que atendia pelo nome deCompreta, abarrotados de mercadorias trazidas para o consumo da família inteira e também por um ou outro favor prestado, a pedidos ou encomendas de algum vizinho.
 
   Naquele sábado esturricado de verão, em plena seca de trinta e dois, a demora de Antero foi se alongando como a réstia da luz poente por trás da serra da Miaba, se espichando feito a sombra da noite sem lua que tudo foi agasalhando e, a cada minuto de espera, foi-se apertando um nó na garganta dos que estavam no aguardo da pobre criatura. 
  
  Os olhos da esposa e dos meninos, agoniados,  já por um tempão fitavam perdidos o sem fim da escuridão, ouvidos acesos... 
   Porém, nenhum bater de cancela, nenhum paticum de casco de animal no oco do mundo. De barulho no escuridéu infindo somente o coaxar dos sapos e das jias, o zinir de cigarras, o canto lá pra longe das cauãs, os agouros das corujas e os piados de outras aves da caatinga rasgando aquele  silêncio morno, o mugido aqui acolá da vaca magra leiteira de nome Muderna, o berro carente de um ou outro bezerroe o tititi das galinhas se agasalhando nos poleiros. No mais, o tempo leitoso passando arrastado.
 
 
   A mulher (esposa) de Antero, Maria Corízia, mais conhecida como Dona Barreta, já aflita e antevendo coisa ruim, gritava descontrolada pros filhos acenderem os fifós, botar lenha do fogão e rezar umas avemarias e padre-nossos com jaculatórias na intenção de o pai chegar logo trazendo a carne fresca pra cortar, separar as porções de moquear, por o sal grosso e pendurar na corda do telheiro dos fundos, onde batia o sol da manhã  e ... Deus Nosso Pai, por tudo que há de mais sagrado, podendo assim aliviar todos daquela angústia, pois nunca havia padecido uma inquietação tão medonha assim.
 
 
   - Vige Nossa Senhora, cadê esse home que num chega... meu Deus do céu valhei-me! Que diabo foi que aconteceu, nunca antes essa criatura se atrasou assim desse jeito, meu coração tá é apertado, sabendo que coisa boa acontecida não foi, nos livre e guarde o Senhor, protegei esse home do pior, com fé no Senhor Mortoe no Criador que nos deu a luz, amém!
 
E nada. 
 
   Lá pra noite alta, beirando a madrugada, Dona Barreta, que não era de alisar, já tinha distribuído uns tapas nos ‘minino’ pra se aquietar e não fazer pergunta, não atazanar mais ainda o juízo atormentado dela; a menina, mais nova e apelidada de Zuite,  num canto acolá a gemer e a chorar baixinho de medo e dor por não saber se a estranha escuridão daquela noite  de padecimento iria acabar, enquanto que os três outros irmãos, todos ainda meninos, postavam-se calados a meia distância da mãe, espiando longe  e comprido, prontos a atender mais do que depressa os chamados e as ordens daquela mulher, magra e autoritária, à beira do desespero. 
 
- Escuta, escuta... será, meu Deus do céu!... 
 
   Do oco do ermo do breu, vindo lá do adiante bem distante ouviu-se uma pancada de cancela, aquela primeira cancelinha velha barulhenta que ficava no caminho da passagem da roça de comadre Mira, um pedaço de chão  antes de uma outra  cancela maior que já ficava mais perto, na divisa das terras cercadas da roça de propriedade da família. O bater dela era seco e bem reconhecido àquela distância pelos ouvidos ainda mais apurados de Barreta, ecoando no silêncio daquela amargurada noite. 
 
 
**
 
  Ela, católica fiel e pecadora que naquele instante balbuciava uma oração qualquer diante do oratório da sala implorando a todos os santos de sua devoção, correu feito uma doida varrida para abrir a tramela da porta e foi saindo terreiro afora com um candeeiro na mão, a filharada atrás apurando os olhos nas brenhas das trevas pra distinguir algum vulto se mexendo no negrume profundo. Os minutos de expectativa pareciam uma eternidade.
 
   - É, parece que vem alguém, como se fosse um homem véi, se arrastando, mas quem será?
  - Num pode ser papai... cadê os animá?  
 
   Silêncio. Nessas horas é que a gente tem noção de como o tempo passa devagar na aflição da espera.
 
   O vulto aos poucos foi virando gente...  Já dava pra distinguir: era mesmo um homem que vinha de lá se arrastando lento na direção da casa... um vulto de homem que então para na cancela mais próxima, bem defronte...  
 
  - Pois num é Antero? Valha-me Deus, o que poderá ter acontecido, pelo Santíssimo Sacramento?  
 
   Sem mais espera, foram-se todos breu adentro, desembestados na direção do coitado do homem que trupicava nas pernas como se tivesse tomado uma surra de cacete, apenas trajando um roló de couro cru nos pés, uma ceroula de pano de saco amarrada de cordão na cintura e um chapéu de palha cobrindo-lhe a cabeça, o queixo caído, o olhar baço, o tronco encurvado, acabado, deslembrado... coitado.
 
  E mudo. Como se nada ouvisse e de nada se desse conta nesse mundo.
 
  - O que foi, home de Deus, conta em nome da Virgem Santa, conta! Pelo Sagrado Coração de Jesus, o que sucedeu, home? 
 
  Nada! Nem um ai era de se ouvir da boca de Antero, nem um suspiro, nenhum gesto, nem um olhar indicando um rumo de pensamento, nada.
 
   Aquele Antero que ali aparecia acabrunhado e distante era uma criatura desfalecida, diferente daquele homem ativo, trabalhador e determinado que saíra de manhãzinha de casa. Esse, agora, era um ser encurvado, cabisbaixo, desonrado e corroído por uma tristeza de fazer dó. De modo que somente ele tinha ciência e guardava no silêncio e no alheamento a causa de tamanha desdita. 
 
   Pra se achegar em casa, precisou ser quase que arrastado pra dentro pela mulher e os filhos que, perplexos, choravam e punham-se todos a gritar:
 
   - Papai, papai, fala home, conta pelo amor de Deus... o que sucedeu!?
 
   E nada.
  
   Do pai e marido Antero não saía um ai, um sinal, nem uma lágrima. Era só aquele olhar de desamparo no vazio, como se tivesse ficado maluco, surdo, mudo, desmiolado.
 
  - Santa mãe de Jesus, terá sido atacado pelo lubisone, por um espírito maligno, por uma alma doutro mundo?  
... Mas pra quê mermo essas coisa ruim estranha iria querer roubar os animá, as mercadoria e até as roupa do pobre coitado? 
... Mas se num é coisa de satanás foi arte de gente do cão, de bandido, ladrão...
... Mas ladrão por essas bandas, nunca se viu contar... hum!  
 
   - A não ser os bandido cangaceiro, os bando de Lampião ou os miseráve das volante,  que é tudo ainda pior que o desgraçado do Virgulino, cabra da peste, fío do cabrunco, cruz credo, que Deus me livre e perdoe! 
   - Será ?
 
   Pois foi, sim.
 
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  Dias sem fim foram se passando e nada de Antero reagir. Emagreceu, prostrado numa rede, que até já parecia um esqueleto entregue à espera da morte. De nada adiantavam os parentes, vizinhos, os compadres e as comadres em volta, ajudando, fazendo promessas a todos santos do céu, oferecendo chás, tentando fazê-lo comer umas colheradas de coalhada da despensa, um cuscuz de milho verde relado na hora, ora limpando, ajudando a comadre Barreta, que parecia estonteada, no possível e no impossível, e vinham as rezadeiras conhecidas a bater folhas e fazer orações todo santo dia no amanhecer e no por do sol, as folhas sagradas murchando durantes as rezas por causa de tanto encosto e mau olhado, até que ...  aos poucos, como se dizia, quase que aos soluços, dia após dia Antero foi recuperando o entendimento, já se via no olhar, e foi conseguindo articular algum pensamento, aqui e ali balbuciando alguma fala, dando sinal de ainda querer viver.  
 
   **
 
   Daí que, um certo dia, pra surpresa da mulher Corízia, dos filhos, das comadres Honória, Pureza e do compadre Filomeno, todos ali na sala esperando a chuva forte que não caía mesmo com os raios e os roncos bravos da trovoada varando as nuvens do céu, Antero desentalou de vez, destravou a fala e conseguiu, enfim, para arregalo de todos, curiosos e perplexos, contar  direitinho o sucedido, os presentes avexados em saber, velhos e crianças de butucas acesas, na curiosidade daquela história de espanto para os que viviam por aquelas bandas esquecidas da Salobra e do Pombo, uma gente que jamais seria a mesma, pois nunca mais soube o que era paz de espírito depois que ficaram cientes do verdadeiro ocorrido com o compadre Antero, ‘tintim por tintim’, um acontecido que ganhou eco, que virou ‘causo’ e assim foi repassado e recontado de casa em casa, de boca em boca, de roça em roça, de bodega em bodega, de tal forma que até os bichos caseiros já sabiam de cor tudinho do sucedido, de tanto escutar os relatos que a cada vez contados e repassados adiante eram mais ainda enriquecido de detalhes...  geração a geração, enfim, e tempos afora.
  
   É, como se suspeitava, foi sim, tinha sido mesmo a peste do malvado Lampião que, acompanhado de alguns cabras de seu bando, deixou o pobre Antero naquele estado.
 
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   Bem como dizia o povo, o capitão cangaceiro Virgulino Ferreira Lampião parece que tinha parte de vera com o demônio, o satanás chifrudo, como se podia agora constatar com todos os effes e erres a partir desse ‘causo verdadeiro’ havido com o desditoso Seu Antero, uma criatura bom coração, filho e credor de Deus e da Virgem Maria, cantador e rezador das novenas de Santo Antonio e de Santa Luzia, um homem reconhecido em toda a redondeza, prestativo e fazedor do bem, como se dizia.
 
   Pra falar a verdade, há algum tempo já se comentava que os cangaceiros andavam circulando, espalhando medo e até se acoitando e fazendo estripulias por aquelas  bandas de sertão brabo entre Bahia e Sergipe - pelos municípios e localidades de Jeremoabo, Euclides da Cunha (Cumbe), Bonfim, Uauá, Glória, Campo Formoso, Paulo Afonso, Itiuba, Curaçá, Chorrochó, Cícero Dantas, o Raso da Catarina, Carira, Pião, Lagarto, Boquim, Paripiranga, Capela, Frei Paulo, Santa Brígida, Canindé do São Francisco, Queimadas, Cansanção, Simão Dias... -, uma região caatingueira dos infernos onde, segundo conta a história, Lampião e seus bandos de cangaceiros descobriram e vieram se entocar e devassar com suas diabruras a partir do ano de 1929 até o fim, em 1938, em Angicos, no sertão sergipano, onde o capitão Virgulino Ferreira foi morto e degolado.
 
   As histórias assombrosas do ‘cabra da peste amasiado com o tinhoso’ corriam aquele mundão esturricado de Deus pela boca de um que tinha sabido, de outro que tinha ouvido de fulano, de cicrano que teria visto os cabras passarem e se cagou todo de medo, e eram relatos medonhos dando conta de cangaceiros, jagunços e macacos das volantes que arrastavam  mulheres pra se servir delas no mato e apunhalavam até criancinhas de colo, de atos cruéis de vingança contra os que delatavam a passagem dos bandos e apontavam o rumo daqueles filhos de desgraceira, de um lado e de outro, e  que falavam de criaturas indefesas traspassadas na ponta do punhal só por pura malvadeza, de outros que tiveram dedos e mão cortadas a facão, de bicos de peito arrancados, de cabras machos frouxos que viram seus pintos e bagos cortados a fio de faca e alguns morriam se esvaindo em sangue nas praças e feiras pra que todo mundo tomasse como exemplo, e inúmeros casos de tocaias, tiroteios, chacinas, perseguições,  disputas e duelos a bala e punhal, resenhas do horror que cangaceiros e volantes  do governo provocavam em pequenas cidades e povoados para que as pessoas entregassem o destino do capitão Virgulino Ferreira, o Lampião, o rumo do Corisco ‘diabo louro’, do garoto Volta Seca que brincava de satanás, do miserê de Labareda, do malvado Zé Baiano, de Asa Branca ou de qualquer um dos integrantes dos bandos de demônios, credo em cruz,  que assombravam até os pés de juás, mandacarus, xique-xiques, palmas e macambiras com seus espinhos, e eram piores e mais venenosos que centenas de cascavéis, jararacas e jararacuçus malhas de sapo juntas e enfezadas ... 
 
   Assim se dizia e se contava nordeste afora desse Brasil sem dono, anos a fio... Êta nordeste sofrido da peste, de seca, fome e sangue!
 
   A desgraceira dos cabras, jagunços e volantes era o assunto, era só o que se ouvia naqueles tempos de estiagem medonha pelos balcões e tamboretes das bodegas, entre talagadas de pinga crua, nas rodas de farinhada, nas festas de reizado, nas rezas de oratório, nos encontros pelo roçado, nos mutirões das feitas de fumo, nas levadas dos tropeiros, carros de boi, entre as labaredas das coivaras e até nos acompanhamentos de enterro animados pelos tocadores de  pife (pífanos) e de zabumba - todos a pé, no buxixo, de casa até a Santa Cruz onde se reza e se encomenda os mortos por essas bandas do sertão ...  O pavor do cangaço se espalhando que nem praga de gafanhoto, de roçado em roçado, sertão a dentro.
 
   Fim de mundo, Deus meu, maldades tantas, crueldades que se tornavam epopéias, diversão e tormento de coronéis e roceiros, das velhas e da criançada com os olhos esbugalhados assuntando cada exclamação, cada reticência, cada ponto e vírgula das conversas, assustadas e acesas, as carnezinhas tremelicando por dentro, as bocas abertas, a baba caindo e a imaginação galopando por essas estradas sem rumo onde desembestam o medo e a vontade de saber,  a ânsia de correr atrás montado e ver de perto com os próprios olhos cada terrível acontecimento desses que eram contados e registrados no juízo feito fitas de cinema.
 
  - Vamo brincá de Lampião?
 
 
 
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   Apois então, sem mais querer cortar volta no assunto desse escrito, retomemos a prosa que interessa...
 
   O que sucedeu de verdade naquele sábado jamais apagado da mente daquela gente daquele lugar é que Antero, que nunca fora de dar confiança a histórias de assombração e não tinha medo de coisa alguma que viesse desse ou de outro mundo, Antero soube de boa fonte na feira da rua de cima de Simão Dias, naquele dia fatídico, que Lampião e seu bando andavam rondando a região. Daí, então, imaginou que não seria seguro retornar para casa pelo caminho costumeiro, a chamada Estrada Real, por onde passavam os carros de boi, as tropas de burro e era a via principal  entre a cidade de Simão Dias e os povoados próximos na direção da fronteira com a Bahia.
  Seria arriscado dar de cara com o bando de Lampião, diziam na feira. E caso isso acontecesse, Deus livre e guarde, só mesmo o Criador, lá do alto, seria capaz de saber o destino da pobre criatura, porque o capitão Virgulino era um cão danado capaz de tudo, como já se sabia e contava.       
 
   Antero, que conhecia aquela região como a palma da mão, pois ali nascera e vivera todos os dias de sua vida andando em lombo de cavalo, égua, burro, mula e jegue pra cima e pra baixo em seus afazeres de homem da roça, matutou: ‘Vou correr esse risco... pra quê ?’  
   Assim, decidiu cortar caminho.
 
   Ao invés de seguir pela estrada dos tropeiros, a Real, tomou o rumo de um atalho, um pouquinho mais longo, que passava por trilhas pouco conhecidas entre roças e fazendas que lhe eram familiares porque  praquelas bandas catingueiras conhecia todo mundo, dava-se bem com todos, gostava de uma boa prosa com quem topasse pelos caminhos, era um homem de paz, bom pai de família, fiel a Deus e nenhum mal lhe poderia advir, então. Assim raciocinando, sentiu-se seguro.
 
  Pois ...
 
  Já do meio pro fim da tarde daquele sábado de boa feira, os caçuás cheios de vasilhas, pesos de carne de boi, peixinhos salgados pra variar a comida e servir com fava e farinha da boa, peças de pano, umas esporas novas, um colchonilho pra forrar a sela dura, sabonetes, linhas de bordar, dedais, duas agulhas de crochê, miudezas de toda sorte encomendadas pela mulher e pelas vizinhas comadres, tudo anotado e conferido com seus preços para prestar contas a todos na chegada, Antero tomou o rumo de casa, feliz da vida.
 
   Saira até um pouco mais cedo, porque os atalhos encompridavam um tanto o tempo da viagem e ele não era de atraso, gostava de chegar sempre na boquinha da noite em casa pra dar tempo de dividir os comprados e  trazidos e fazer as contas dos gastos enquanto a mulher tratava as carnes e cuidava do de comer da noite pois a barriga roncava, a fome era grande, ele não costumava almoçar na rua, preferia pegar o pirão de casa e, depois do café forte esquentado na chapa do fogão, poder esticar as pernas, remoer o dia na cabeça e acalantar o sono pesado no balanço de sua rede com a pança quente e saciada.
 
   Antero ia distraído matutando essas bestagens aprumado pelas veredas do chão duro empoeirado, apreciando o mato, as cercas, os roçados... e já passava do meio do caminho quando, na curva de uma picada no meio de um ermo tabuleiro, entre a malhada do compadre Bernardo Cadete, a fazenda de Zé d’Onofre -  tio de Manezinho Onofre - e as serras das Miabas, ouviu o barulho de uma tropa que vinha em sentido contrário. Pelo trupicar dos cascos e pelas vozes que ecoavam na folhagem dos arbustos ressecados parecia um grupo de umas cinco a sete pessoas montadas.
  
   Nem deu tempo de ter medo ou de se arrepiar. Mal diminuiu o trote do cavalo montaria, puxando prum lado pelo cabresto a mula Compreta com a carga, no instinto de assuntar direito quem vinha de lá, deparou-se cara a cara com aquele magote de homens de chapéu de couro virado na frente, todos armados de fuzis, espingardas, pistolas e punhais à vista, enfeitados e enfezados ...
Sentiu as carnes tremerem por dentro e o sangue correr frio nas veias.   
  
   Pronto, era agora!    
**
 
   Mal esboçou dar um ‘boa tarde’ para a turma do bando, dando passagem, e já se viu cercado.  O caboclo magro, de óculos, era quem falava com voz mansa, mas como quem dá ordem:
 
 - Pensa que vai pra onde, assim?
 
 - Venho da rua, fui pra feira e vou pra casa... 
 
 - Vai levando o quê aí nesse burro ?
 
 - Né burro não sinhô, é uma burra, uma mula. E tô levando umas compra, mercadoria pra casa, umas encomenda... 
 
 - Apeie do cavalo. Cavalinho bonito esse... é seu?
 
 - É sim sinhô, tudo é meu..., balbuciou Antero, descendo do animal de estimação.
 
 - Tem arma ? 
 
 - Não sinhô, não uso arma, nem gosto de caçar...minha arma é a fé em Deus...  
 
 - É corajoso!  Vou precisar do seu cavalo e da burra com essas mercadorias...
 
   A essa altura faltou voz a Antero, que não mais conseguia olhar de frente para o cangaceiro e os homens do bando que começavam a rir e fazer umas pataquadas...
 
  - Mas eu vou pagar por aquilo que levar!  Tire as calça e a camisa ! – determinou o comandante do grupo.
 
   Sem regatear, Antero tirou as calças de brim, o que tinha de melhor e que usava somente para ir à cidade em dia de feira. Tirou também a camisa que tinha comprado naquela tarde mesmo na lojinha de Luzinete, costureira afamada, porque a que vinha usando já estava puída e rasgando debaixo do sovaco, de tanto suor.
 
  
   Apenas de chapéu, roló e ceroulas batidas, os cabras do bando danaram-se a dar risadas, mangando do homem, a essa altura apequenado e humilhado como nunca o fora em toda a sua vida. Um deles pegou as roupas, outro segurou o burro com o carregamento, um terceiro arrastou a montaria de Antero e um outro mais, que ficou todo o tempo com o punhal desembainhado na mão apontando, quase que cutucando o homem indefeso, deu um tropicão no coitado, lançando-o de cara no pó do chão ...
 
  - Deixa ele! -  ordenou o chefe, com frieza.
  Em seguida, meteu a mão num embornal que levava pendurado no ombro atravessado no peito e de lá apanhou algumas moedas, patacões de prata, sem olhar o valor e atirou no chão, quase sob as patas dos cavalos:  
 
  - Isso aí é pelo prejuízo. Diz que foi Lampião! E não olhe pra trás, seu cabra!
 
   Dito isso, deu um eia! para o bando e todos dispararam trilha afora, uns dois mais à frente, no galope, e os outros em trote rápido...  deixando Antero prostrado no chão, indefeso, sem força pra mais nada, as pernas amolecidas, as carnes estremecidas, o sangue a correr frio nas veias, a cabeça zonza, sem pensamentos, os olhos turvos, entalado de medo, sem saber como arranjaria sustança pra chegar em casa. 
 
   **
  
   Passado algum tempo do estupor, quando mais não ouviu nenhum barulho do trote dos animais, nem mais sentia o cheiro perfumoso daquele bando de cangaceiros, Antero levantou-se aos poucos e começou a andar na direção de casa, tão sem noção das coisas que sequer apanhou uma só das moedas que o tal cangaceiro dito Lampião atirou no pó do chão como se fossem esmolas.
 
   As pernas pesavam quilos e ele só imaginava que nunca mais conseguiria voltar para rever a família, tamanha tinha restado a sua alienação da realidade.
 
   Era como se aquele homem magro de tez morena e chapéu de couro estrelado, cheiroso e todo enfeitado de armas, cintos, medalhões e anéis dourados tivesse mesmo parte com o demo. Antero sentia como se ele o houvesse maculado no mais íntimo do seu ser e tivesse arrancado, roubado  de dentro e para sempre a sua alma, só com aqueles  olhos afiados e aquela fala macia, cortante como o fio de uma navalha. Olhar do cão!        
 
   Assim se passou.
 
  
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   Ano e pouco depois do ocorrido, quando já todos tinham como garantida a total recuperação de Antero, até porque ele haveria de esquecer aos poucos o padecimento daquele vilipêndio sofrido, espalhou-se um boato de que Lampião e seu bando, encurralados e enfurecidos, estavam novamente rondando as fazendas e roçados da região, roubando tudo, levando os animais, estuprando mulheres, passando inocentes na ponta do punhal, matando e esfolando quem passasse na sua frente.
 
   Foi a conta.
 
   Antero, atarantado, arrebanhou mulher, filhos e entocou-se na mata próxima fechada, semanas e semanas seguidas, dia e noite, vivendo no meio dos bichos como se fossem índios de verdade sob a copa de algumas árvores, comendo frutas, folhas, caça e raízes, as roupas em frangalhos. Um horror.
     
   Pior. Antes de sair e sem que ninguém visse ou soubesse como, escondeu todas as economias - moedas, patacas, cédulas, tudo o que herdara de jóias das famílias de senhores de engenho, donos de canaviais, dele e da mulher, Maria Corízia, aliás sua prima carnal, de sobrenome Barreto como ele... - assim, pos tudo dentro de três potes/botijas de barro e os enterrou, o mais fundo que pode, nalguns pontos do roçado onde morava, na intenção de impedir o saque dos cangaceiros e garantir o futuro da família.
 
  No mato passaram fome e sede, sofreram com as picadas de mutucas e micuins, e com odifruxo, mode a friage ( traduz-se: defluxo por conta da friagem noturna). Foram semanas de muita tristeza, necessidade e pavor na selva.
 
   Não fossem a obstinação, a coragem e a língua afiada da mulher Barreta , branquelinha de gênio forte, o alquebrado e amedrontado Antero não tomaria uma tenência de voltar pra casa.  Viveu aos sobressaltos e meio desgostoso pro resto da vida. 
 
   Lampião não passou por lá.
  
   **
 
   Antero, de tempos em tempos, atormentado e só com seus fantasmas, escavava o roçado inteiro... no entanto, jamais conseguiu encontrar, resgatar  o seu ‘tesouro’ enterrado. 
 
    Na brenhas daquele sertão todos acreditam, até hoje, que satanás deu sumiço nas botijas.
 
   **
 
   Lampião tinha parte com o demônio. Ora, se tinha!     
 
                                             
 
À guisa de assombração   (epílogo)
 
 
 
Para muitos, Lampião tinha mesmo artes com o tinhoso. O diabo o protegia e o atiçava. Protegia avisando-o dos perigos, aguçando seus sentidos, seus pressentimentos, fechando seu corpo contra as balas das armas inimigas.
Atiçava também seu instinto violento. Lampião, como tantos naqueles tempos e lugar, alimentava-se da violência, cada dia. Cometia crueldade como se fosse um ato fútil e corriqueiro, às vezes só por um punhado de dinheiro, joias, armas, sem demonstrar qualquer arrependimento. A malvadeza a sangue frio parecia uma missão prazerosa a ser cumprida. Só. Nunca fez conta de quantos matou, esfolou, arrancou pedaços...  Era seu fado, apenas.
Daí, acharem que Lampião tinha sim parte com demônio, um pacto de vida e morte com o estupor dos infernos. Sabe-se lá !
Credo em cruz!
 
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   Na realidade e de acordo com o levantamento de pesquisadores e biógrafos, com base em depoimentos dos que viveram dentro do cangaço e/ou conheceram ou combateram  o capitão Virgulino Ferreira Lampião de perto ou de frente, ele era um homem de uma religiosidade exacerbada e muito supersticioso. Fazia parte do que se pode chamar de catolicismo sertanejo. O homem de fé.
Cria na santidade de Padim Ciço, na força mágica dos patuás, das medalhinhas e  amuletos, de orações fortes que, acreditava ele, o protegiam. O capitão era cheio de crendices, sabia de cor ladainhas, rezava terços e rosários, fazia encomendações, orava ofícios para a virgem Maria, poupava os padres, os templos católicos... essas coisas. Acreditava piamente no poder da oração.
 
 
  Eis dois trechos elucidativos, do fundamentado livro ‘Lampião na Bahia’, de Oleone Coelho Fontes:
 
   “Rezava o capitão com muita freqüência, sempre no horário do meio dia. Retirava-se para local ermo, tirava o chapéu, ajoelhava-se e exigia naquele instante todo o respeito e todo o silêncio.
Usava escapulário pendurado no pescoço, no pé esquerdo uma fita de pé de anjo. Tinha também em seu poder livrinho de orações, sua carteira recheada de santinhos e retratos do padre Cícero. Às sextas-feiras era dado a jejuns e habitualmente se afastava das pessoas. Observava no odor da terra, no vôo ou no canto dos pássaros, nos rastros dos animais, nas árvores, nas sombras da noite algum mistério que somente ele era capaz de desvendar. Certa vez, ao observar um sabiá que voou até as alturas, cantou e voltou a descer perto dele, quase em voo razante, todo arrepiado, julgando tratar-se de um aviso mandou que o grupo dali se retirasse imediatamente. Com efeito, minutos depois a volante cercou o pouso.
...
Tendo conseguido escapar de emboscadas das quais não tivera informação prévia, mostrando-se capaz de vencer escarpas anfractuosas em terrenos dificílimos para fugir à perseguição de inimigos ou capaz, ainda, de furar cercos que pareciam insuperáveis, além de ter escapado com vida de mais de 200 batalhas com as quais se envolveu em seus mais de 20 anos de cangaço, levaram os sertanejos a acreditar em poderosos pactos transcendentais com os quais as milícias que o perseguiam pareciam não contar.
Por último, ele próprio começou a acreditar neste pacto. Relaxou, negligenciou, acomodou-se. E o resultado foi o desastre de Angico.”    
 
Fonte:Coluna BN Cultura

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