Perfil para marcar o centenário do autor em 2012 foi transformado em livro após início das pesquisas
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A jornalista baiana Josélia Aguiar começou sua trajetória com Jorge Amado (1912-1900) num barquinho a remo. Mas, quando se deu conta, estava em alto-mar embarcada num transatlântico, navegando num mar de informações sobre o romancista mais lido no Brasil e no exterior. Na viagem, que durou quase oito anos, percebeu que as pessoas (incluindo ela própria) achavam que sabiam tudo sobre Jorge.
Assim, foi construindo um retrato do autor de Gabriela, Cravo e Canela como nunca se viu antes. O resultado está na polpuda edição de Jorge Amado: Uma Biografia (Editora Todavia), que terá lançamento nacional em Salvador no dia 27, às 19h, no Palacete das Artes (Graça).
Josélia Aguiar lança biografia nacionalmente em Salvador, no próximo dia 27 (Foto: Arisson Marinho/ CORREIO) |
“Agora, parece que tirei um peso da minha cabeça. Jorge é um personagem muito complexo. Toda vez que achava que ia terminar, surgia uma coisa nova”, revela Josélia, que foi curadora da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip) em 2017 e 2018.
Em 2011, a proposta era escrever apenas um perfil biográfico para marcar o centenário do autor em 2012. “Mas, percebi que um perfil ia ser um desperdício. A história começou de forma desprensiosa e foi crescendo com o tempo”, diz Josélia. Dessa forma, pacientemente, resolveu tomar para si a missão de narrar a primeira obra biográfica do marido de Zélia Gattai (1916-2008).
Detalhes
Nesse tempo, só se envolveu em projetos de curta duração e achou que tinha terminado o livro em 2017. Achou porque um nome a perseguia nos círculos literários onde falava da biografia de Jorge: o do editor, biógrafo e agente literário americano Thomas Colchie. Nome forte da Penguin Randon House, foi ele quem primeiro se candidatou a escrever o livro da vida de Jorge, no início da década de 90, e passou três anos entre pesquisas e entrevistas. Mas, diante do imenso navio de cabotagem, desistiu e recolheu seus escritos na Universidade de Princeton, Estados Unidos.
Várias tentativas de contato depois, Colchie permitiu que a baiana tivesse acesso aos artigos, desde que fosse lá pessoalmente. E não é que, com livro pronto, Josélia precisou mexer no original? Graças à padroeira da boa pesquisa, foi pouca coisa. “Não tive que mudar o rumo de nada, passei a ter mais detalhes”, conta ela, que tem, ao todo, quatro versões diferentes da obra. “O livro era muito maior do que se lê hoje. Para escrever uma biografia é preciso ter muita entrega, vai te consumindo”, explica a autora.
Jorge Amado ao lado de Sônia Braga, que interpretou Gabriela na novela da TV Globo (Foto: Divulgação) |
É no detalhe que mora o principal aspecto desta. Nascida sob o signo de Virgem, com ascendente em Virgem, Josélia lida bem com isso. Assim, utilizando um misto de técnica de reportagem com metodologia da pesquisa histórica, ela desmontou várias fake news que o próprio Jorge criou ou não quis desmentir.
A jornalista joga luz no início da carreira internacional do escritor, que teria sido alavancada fora do Brasil pelo Partido Comunista, do qual foi militante ativo. Ajudado pela propaganda do partidão, Amado garganteava ter sido publicado na Rússia desde meados da década de 30, fiado de que ninguém iria até aquele fim de mundo checar se os originais enviados tinham saído realmente do prelo.
Na verdade, ele só foi traduzido na Rússia no fim dos anos 40, depois de ser publicado na França pela requintada Gallimard (Jubiabá) e nos EUA, pela igualmente refinada editora Alfred Knopf (Terras do Sem Fim).
Diálogo
Outro ponto sobre o autor, que já vendeu mais de 50 milhões de cópias em todo o mundo, e que Josélia ajuda a clarear, tem a ver com a relação de Jorge com a primeira geração de modernistas. A amizade com Oswald de Andrade (1880-1954) e a gastura que sentia por Mário de Andrade (1893-1945) nunca tinham sido citadas em publicação alguma. Ela conta que o desafeto surgiu quando Jorge declarou que a literatura de Lima Barreto era superior à de Mário. “Foi por causa de Jorge que passei a me interessar por Lima Barreto”, revela.
Morando em São Paulo há 21 anos, Josélia Aguiar veio muitas vezes a Salvador, onde a família reside, para pesquisar e entrevistar. E revela que deve a Jorge Amado a reaproximação mais forte com a cidade, que começou graças a Pierre Verger (1902-1996), tema de seu mestrado: “Foi esse livro sobre Jorge que me fez entender muita coisa, como o significado de ser um escritor baiano no Brasil”, afirma .
Ela conta que rezava a lenda no mercado literário que Jorge Amado demorava de escrever porque tinha preguiça de baiano. “Isso é puro preconceito”, afirma. Parece que a relação com a Bahia vai ficar ainda mais estreita porque Josélia desenvolve seu doutorado na USP também sobre Jorge, analisando desta vez o diálogo dele com autores de sua geração.
“Jorge Amado sempre foi um escritor fora da bolha. E isso fez com que tivesse mais leitores, é uma questão de identificação”, opina a autora.
Num ímpeto de profeta, Jorge dizia que seria esquecido depois de morto. E assim ficaria por quase uma década. Ninguém pode desmentir que seja coisa do destino o lançamento de sua biografia somente agora, 18 anos depois de sua morte e em tempos de ânimos tão acirrados. Ser político em muitos aspectos, Jorge não teria se escondido no anonimato se estivesse vivo, acredita a biógrafa: “Ele sempre teve diálogo com as pessoas de ideologias diferentes. O que me parece muito claro é que ele teria agido desta forma, deixando suas opiniões claras através do diálogo, porque defendia a liberdade acima de tudo”.
Nesse exercício de recriação de um personagem histórico, a jornalista brinca ao supor o quê seu biografado teria achado do livro.
“Imagino que, em algum lugar, Jorge deve estar se divertido ao se ver como personagem histórico, porque o tratei com o distanciamento de uma pessoa que não o conheceu. E mais, foi um livro feito por uma mulher. Nas histórias dele há muitos momentos de empoderamento feminino”, opina.
Viagem
Quando Josélia Aguiar defendeu uma nova dimensão para o texto que estava escrevendo sobre Jorge Amado, teve que ouvir do editor a seguinte frase: “Mas, todo mundo sabe tudo da vida de Jorge Amado!”. “Não, todo mundo sabe do folclore”, respondeu a jornalista.
Pois bem, através da pesquisa que envolveu a consulta a arquivos no Brasil e no exterior e entrevistas com amigos, familiares e até desafetos, ela colabora para a criação de um novo Jorge, sobre quem, na verdade, muito pouca gente sabe além do óbvio que a fama proporciona.
Uma das revelações mais interessantes é o motivo de sua mudança para o Rio de Janeiro, em 1929. Na história oficial, ele teria ido, aos 17 anos, forçado pelo pai, até a capital federal para estudar Direito. Na verdade, num gesto apaixonado, seguiu a beldade Mariá Sampaio, com quem viveu o primeiro grande amor. A ideia era arrumar trabalho e casar por lá mesmo. Acabou que o romance não deu certo e, aí sim, ele ingressou na faculdade de Direito.
Josélia conta que descobriu isso porque uma mulher entrou em contato com ela pelo Facebook e disse que a avó tinha sido namorada de Jorge. “Estava terminando de escrever. Tive que parar tudo o que estava fazendo para correr atrás disso. Na versão oficial, ele foi estudar direito, mas foi mesmo para casar. Acho que ele ia acabar sendo famoso de qualquer jeito, mas a decisão foi passional”, explica.
Através da biografia é possível compreender como Jorge foi notadamente prejudicado pelo Estado Novo. Proibido de publicar, teve livros recolhidos e incendiados em praça pública. Depois de preso duas vezes, se exilou no interior de Sergipe, em Buenos Aires e Montevideu.
Fica clara também que a qualificação como dignatário do partidão se deu após escrever a biografia de Luis Carlos Prestes, publicada pela primeira em espanhol, pela editora argentina Claridad, em 1942. Foi esse livro que abriu caminho para os leitores de esquerda da América Latina. Lida clandestinamente no Brasil, só foi lançada por aqui em 1945, por ocasião da reabertura.
A filha Lila, fruto do primeiro casamento de Jorge e morta aos 15 anos, em 1950, também é vista com detalhes, revelados pelo texto do diário inédito do autor. Inéditos também são os detalhes de sua atuação no cenário do comunismo brasileiro e internacional e a decepção com o stalinismo que ocasionou seu afastamento da política. Ao contrário de versões que circularam, ele não rompeu, tampouco foi expulso do partidão.
A biografia revela ainda um livro inédito, Rui Barbosa n.2, que mostra um tal de Archanjo, embrião para o Pedro Archanjo de Tenda dos Milagres, livro de 1969.
fonte:Correio da Bahia 17/11/18 - 10:12
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