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A noite de terror vivida pela comunidade de Arroz, patrocinada por aliança entre políticos, ruralistas e policiais é denunciada pela jornalista Thaís Lazzeri, do Repórter Brasil –
DA REDAÇÃO I Cultura&Realidade
Ação articulada por fazendeiros e policiais, na comunidade de Arroz, no município Formosa do Rio Preto, é denunciada pelo “Repórter Brasil”. A reportagem desenvolvida pela jornalista Thais Lazzeri aponta inclusive o envolvimento de autoridades políticas no ato que resultou em uma noite de terror para as famílias residentes na tradicional comunidade, que recebeu os primeiros moradores ainda no Século XIX.
De acordo com a jornalista, em seu texto original, “A pedido de ex-prefeito, policiais militares encapuzados e armados tentaram destruir curral de povoado, mas foram contidos. Retaliação na madrugada terminou com tiros, moradores espancados e casas arrombadas; denúncia foi encaminhada ao Conselho Nacional de Direito Humanos”, diz a introdução da matéria, que segue:
Os moradores do povoado de Arroz, próximo à cidade baiana de Formosa do Rio Preto, não vão esquecer de uma madrugada que começou tranquila e acabou com homens armados e encapuzados invadindo casas, aterrorizando crianças e espancando agricultores.
A ação da polícia local vingava o fracasso de uma investida anterior, quando PMs à paisana teriam sido expulsos do vilarejo ao tentar escoltar um ruralista.
O PM Silva não frustrou as expectativas do ex-prefeito e chamou outros três soldados para a escolta: Gilmar Batista Monteiro, Reinadson Rocha Dias e Cledson de Souza Magalhães. Sem fardamento, os quatro acompanharam Felipe, na tarde do dia 23, levando três pistolas Taurus calibre 380, uma Taurus calibre 40 de propriedade da PM da Bahia e quatro carregadores municiados. O relato está no boletim de ocorrência 21-02235, em descrição da própria corporação.
Em duas camionetes e uma escavadeira, segundo testemunhas, rumaram até a Fazenda Batalha da Conceição. Estacionaram próximo a um curral do povoado de Arroz, onde vivem mais de 200 pessoas. Em um dos veículos, iam os policiais armados e encapuzados, segundo testemunhas ouvidas pela reportagem e a denúncia encaminhada ao Conselho Nacional de Direitos Humanos. Felipe e outros homens, conhecidos na região por recrutarem trabalhadores ou por trabalharem em empreitadas, iam no segundo carro, carregado de galões de combustível, segundo o depoimento de uma testemunha colhido pelo Grupo Especial de Mediação e Acompanhamento de Conflitos Agrários e Urbanos (Gemacau), ligado à Polícia Civil. Em fevereiro, moradores já tinham registrado, na delegacia de Formosa do Rio Preto, um boletim de ocorrência por desmatamento, apontando Gerson Bonfantti como responsável pela ação, mas a denúncia não andou.
Os moradores começaram a perceber que havia algo errado quando ouviram barulhos. Ao se depararem com o comboio que começava a destruir o curral da comunidade, por volta de 30 agricultores cercaram o grupo de Felipe e dos policiais. A briga corporal terminou com as identidades dos PMs reveladas e os invasores, desarmados e expulsos. Horas depois, a polícia voltou. O resultado foi uma madrugada de terror, tortura e ameaças.
A Polícia Civil afirmou que os PMs envolvidos foram afastados, que outras suspeitas estão sendo apuradas pela Corregedoria da Polícia Militar e que indiciou quatro moradores por crimes como porte ilegal de armas. A Repórter Brasil também tentou contato diretamente com os policiais, via assessoria de imprensa da Polícia Militar, mas a corporação informou que responderia em nome dos agentes (leia os posicionamentos na íntegra). Procurada, a família Bonfantti não respondeu aos questionamentos da reportagem.
Segundo outro depoimento colhido pelo Gemacau, Felipe trabalharia para o fazendeiro, advogado e ex-deputado estadual José Leão Carneiro.
O nome do fazendeiro consta como dono em cinco matrículas de terrenos (documentos com todas as informações do imóvel) que incidem em parte da área da Fazenda Batalha da Conceição – um dos muitos nomes de um território registrado por José Alves Pugas, fundador do povoado de Arroz, no século 18. Os descendentes de Pugas formam a comunidade atacada pela polícia e hoje disputam a posse da terra com Leão Carneiro. Tanto os moradores como o ex-deputado possuem liminares da Justiça e autos de manutenção de posse reconhecendo direitos sobre uma área de cerca de 3.000 hectares em que coincidem os registros. Procurado, Leão Carneiro não respondeu aos questionamentos da Repórter Brasil.
‘A gente vai invadir’
Com gritos de “a gente vai invadir” e sons de socos contra a porta e janelas de casa, Rosivaldo Alves da Cunha, de 44 anos, a mulher e os filhos – o mais velho tem 10 anos, o caçula tem 5 meses – saltaram da cama. Eram quase 2h30 da manhã quando a polícia avançou armada, pela segunda vez, sobre a comunidade rural. Dessa vez, em viaturas oficiais. Rosivaldo não sabe dizer quanto tempo levou para a polícia arrombar a porta e o levar arrastado. Seu filho mais velho presenciou toda a cena e, desde então, não dorme mais sozinho. “Até hoje não sei porque entraram na minha casa e me levaram”, disse à Repórter Brasil.
À medida que os policiais avançavam sobre as casas, moradores ouviam Rosivaldo apanhar. E gemer de dor. Depois, foi a vez de Álvaro Miranda Pugas. “Parecia que queriam deixar um recado pra gente”, diz uma moradora que pediu anonimato por medo de perseguição policial. “Atiraram bastante na comunidade toda. Encontrei uma cápsula na porta da minha casa.” Segundo depoimento de uma testemunha que dormiu no mato por duas semanas com medo, a meta dos policiais era recuperar as armas dos colegas apreendidas na rendição do dia anterior.
Na gaiola das viaturas, espirraram spray de pimenta contra Rosivaldo e Álvaro. Apesar de existir uma delegacia em Formosa, os dois foram levados para Barreiras, a 154 km dali. Lá, afirma Rosivaldo, foram submetidos a seções de espancamento e tortura madrugada adentro.
“Saí do carro apanhando. Botaram saco na cara da gente para perder a respiração. Fizeram isso comigo três vezes”, descreve. “Dispararam bala de borracha contra mim, nas costas. Chutaram muito minha costela e minha cabeça, teve uma hora em que achei que a cabeça ia explodir.” As pancadas lhe custaram o tímpano do lado esquerdo, mostram laudos audiológicos particulares feitos em março. Álvaro sofreu a mesma violência policial e também teve o tímpano perfurado.
Na manhã seguinte, em 24 de março, às 9h42, a PM registrou o boletim de ocorrência 21-02335, contra Álvaro e Rosivaldo, por “crime de posse ilegal de arma, uma bate-bucha, coronha de madeira”, a única arma que encontraram nas casas do povoado. Ali, admitiram que a guarnição da PM “estava, a pedido do amigo Gerson Bonfantti, acompanhando o filho do mesmo, Felipe Bonfantti, em uma vistoria para abertura de área na Fazenda Batalha da Conceição”.
A polícia afirma que precisou se defender dos agricultores armados, que ainda teriam roubado quatro celulares e uma carteira dos policiais. Consta no BO que “[os policiais] Foram surpreendidos por diversos homens, entrando em luta corporal quando perceberam armas direcionadas aos mesmos, tendo que se renderem, sendo suas armas, celulares e carteira subtraídas, obrigando-os a andarem mais de 8 km. […] Alegam os policiais que as suas armas, supostamente de propriedade da Polícia Militar, teriam sido apreendidas”. Na versão contada pela corporação, não há escolta armada, escavadeira nem nova incursão madrugada adentro em casas do povoado.
Na madrugada do dia 25, a PM voltou ao povoado. De novo, sem mandado nem identificação. Registros em vídeo feitos pelos moradores mostram ataques aos pertences da comunidade, como sacos de farinha rasgados – base de alimentação para muitas famílias e sustento de outras tantas –, pratos quebrados e um freezer que teve os fios cortados. “Teve criança que ficou até doente, não queria voltar para casa, estava com medo de eles voltarem”, diz um morador. Quase uma semana depois de serem arrastados porta de casa afora, Álvaro e Rosivaldo retornaram.
‘Ilegalidade evidente’
“É evidente a ilegalidade da ação de policiais nesse contexto e eles devem ser responsabilizados”, afirma Rodrigo Ghringheli de Azevedo, chefe do departamento de Justiça e Segurança Pública do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (Ibccrim).
Organizações que acompanham a situação fundiária do povoado encaminharam um ofício, encabeçado pela expressão “URGENTE”, ao presidente do Conselho Nacional de Direitos Humanos, Yuri Costa.
“Há tempos essa comunidade vem sendo vítima de um grave conflito fundiário e socioambiental. No âmbito desse conflito, desde o dia 23 de março a comunidade de Arroz tem se tornado vítima de ataques continuados e sucessivos promovidos por policiais militares”, afirma o documento. “A ação dos policiais já resultou na detenção ilegal, espancamento e tortura de dois defensores de direitos humanos, na invasão de muitas casas e na intimidação de todos os moradores desta região.”
Ainda segundo a denúncia, nem Álvaro nem Rosivaldo participaram da contenção aos invasores no curral, na tarde do dia 23. Em testemunho ao Gemacau, Rosivaldo confirmou a informação: passou o dia na área urbana de Formosa do Rio Preto. Pagou contas na lotérica, comprou uma motocicleta e levou mercadorias para o mercadinho que tem na comunidade.
“A questão mais delicada é o papel da polícia, que muitas vezes presta serviço de pistolagem e coisas que não lhes cabem. Mas a gente não pode deixar de investigar a relação com a família [Bonfantti] e a proximidade, até agora não explicada, com esse político [Leão]”, afirmou, sob condição de anonimato, uma das pessoas que acompanha o caso.
Desde a invasão, pessoas armadas, desconhecidas no povoado, passaram a rondar a região, contam moradores. “Eles dizem que estão caçando, mas como a gente vai saber se é verdade ou não?”, perguntou um morador.
“O que aconteceu na Bahia é o mesmo que aconteceu no Jacarezinho [comunidade do Rio de Janeiro, palco de uma chacina em maio deste ano] e que acontece em tantos cantos do país, com apoio de autoridades e, muitas vezes, por parte da sociedade. Ações violentas praticadas pela polícia são relativizadas sob o slogan que ‘é a polícia fazendo o seu trabalho’ e terminam em impunidade”, diz Azevedo, advogado do Ibccrim. “Mas o direito configura: é crime.”
Procurada por telefone e por e-mail, a Secretaria de Segurança Pública da Bahia não respondeu aos questionamentos da reportagem.
A Polícia Civil afirmou que concluiu o inquérito e que “os policiais militares envolvidos na ação foram indiciados por ameaça, abuso de autoridade e estão afastados das funções”. A corporação disse ainda que “quatro moradores foram indiciados pelos crimes de porte ilegal de arma de fogo de uso permitido, cárcere privado, roubo majorado, dano qualificado, lesão corporal, ameaça e constituição de milícia privada”.
A Polícia Militar informou que “o fato em questão foi objeto de investigação no Inquérito Policial Militar nº 008/2021, que foi concluído e remetido ao Ministério Público. E que há um “Processo Disciplinar Sumário (PDS) n° 012/2021 para apurar o resíduo de faltas administrativas cometidas pelos policiais militares.”
Já o Ministério Público do Estado informou que recebeu o inquérito policial em 27 de setembro e, em 4 de outubro, “devolveu o inquérito, solicitando diligências às polícias Civil e Militar para esclarecer pontos importantes e dar seguimento às investigações.” O MP afirmou que também solicitou informações ao Ministério Público Federal a respeito de um procedimento existente na instituição referente aos mesmos fatos. A íntegra dos posicionamentos das instituições pode ser lida aqui.
Fonte/Reprodução: Repórter Brasil
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