A condenação do sócio da boate Kiss Elissandro Callegaro Spohr a 22 anos e seis meses de reclusão foi desproporcional, contrariou provas e não levou em conta atenuantes. É o que afirma, em parecer, o professor de Direito Penal da Universidade Federal do Rio de Janeiro Salo de Carvalho.
Spohr foi condenado por dolo eventual por 242 homicídios simples e, no mínimo, 636 tentativas de homicídio causados pelo incêndio na boate Kiss, em Santa Maria (RS), na madrugada de 27 de janeiro de 2013.
O empresário foi denunciado por homicídio e tentativa de homicídio qualificados por meio cruel (emprego de fogo e produção de asfixia nas vítimas) e motivo torpe (ganância: economia na espuma adequada para revestimento acústico; falta de investimento em segurança contra fogo; e lucro com a superlotação do estabelecimento). Porém, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul e, posteriormente, o Superior Tribunal de Justiça afastaram as qualificadoras.
Responsável pela defesa de Spohr, o advogado Jader da Silveira Marques consultou Salo de Carvalho sobre a validade dos critérios de análise das circunstâncias de aplicação da pena-base (culpabilidade, motivos, circunstâncias e comportamento das vítimas); a não observância de circunstâncias atenuantes; e a razoabilidade da quantidade (cálculo) de pena privativa de liberdade aplicada ao réu.
A primeira pergunta de Marques ao professor foi: "A valoração do conteúdo das circunstâncias judiciais do artigo 59 (pena-base) segue os parâmetros dogmáticos e as diretrizes legais e constitucionais de fundamentação e proibição da dupla valoração (ne bis in idem)?".
Salo de Carvalho apontou que, dos cinco vetoriais valorados desfavoravelmente para fixação da pena-base, apenas a circunstância judicial "consequências do delito" apresenta fundamentação suficiente e válida.
Segundo o docente, a análise da culpabilidade feita pelo julgador ofende o princípio ne bis in idem (que veda dupla punição por um mesmo fato) ao apontar, como conteúdo, o dolo. Além disso, contraria a prova do processo de que Spohr buscou amparo técnico para as reformas na boate e considerava que o estabelecimento estava de acordo com as normas de segurança, tendo em vista as autorizações e fiscalizações do poder público (culpabilidade normativa).
Carvalho também sustentou que a apreciação dos motivos (motivo fútil) e das circunstâncias do crime (fogo e asfixia) contraria as decisões do TJ-RS e do STJ que desqualificaram a acusação para homicídio simples e afirmaram terem sido exatamente essas condições fáticas o fundamento da imputação (ne bis in idem).
"Outrossim, especificamente em relação à futilidade (ganância), a conclusão contraria a prova que atesta ter o acusado investido nas reformas necessárias para aumentar o conforto e a segurança dos frequentadores. Quanto ao comportamento da vítima, o juízo é igualmente equivocado em razão da inversão do objeto de análise (apreciação do comportamento dos réus) e da reprodução de argumento (número de vítimas) utilizado posteriormente para aumentar no máximo a quantidade de pena pela causa especial prevista no artigo 70, caput, do Código Penal (concurso formal) — bis in idem", avaliou o professor.
A segunda pergunta foi: "O cálculo da pena-base respeita as diretrizes jurisprudenciais consolidadas, sobretudo as fixadas pelo TJ-RS, e observa o princípio da proporcionalidade em sua dimensão proibição de excesso?".
Salo de Carvalho analisou que os erros na análise das circunstâncias judiciais provocaram "sobrecarga punitiva" na dosimetria da pena-base.
"Se válida apenas a fundamentação relativa às consequências do crime, a pena-base deveria ser estabelecida no ou próxima do mínimo legal. Mas mesmo se as cinco categorias judiciais estivessem legal e constitucionalmente adequadas haveria excesso, visto o magistrado ter fixado, na primeira etapa da dosimetria, sanção corporal acima do termo médio, critério consolidado historicamente pelo TJ-RS como limite máximo da pena-base", afirmou o docente da UFRJ.
Em resposta, Salo de Carvalho declarou que a decisão poderia ter considerado a atenuante da confissão (artigo 65, III, "d", do Código Penal). Isso devido à apresentação espontânea do acusado na delegacia na noite do incidente; à ampla utilização do seu interrogatório para fundamentação do dolo eventual na pronúncia e às informações prestadas em plenário, "sobretudo porque não é injustificado supor que influenciaram o Conselho de Sentença para afastar a culpa consciente".
"Ademais, é dogmaticamente lógico e probatoriamente sustentável a incidência da atenuante inominada do artigo 66 do Código Penal em decorrência (a) da corresponsabilidade dos poderes públicos municipais no incêndio e (b) da necessidade de se estabelecer um juízo de censura menos severo à hipótese do dolo eventual", examinou o professor.
A última pergunta do advogado foi: "Os fundamentos da tese do erro de proibição apresentados em plenário podem ser valorados na dosimetria da pena?".
Para Salo de Carvalho, a recusa pelos jurados da tese da excusabilidade do erro de proibição e a negativa pelo juiz da quesitação da sua modalidade evitável, teses apresentadas pela defesa, não descartam a necessidade de apreciação dos elementos fáticos que a sustentaram. Especialmente porque tais dados empíricos são indicativos sobre a consciência da regularidade da conduta que informam o conteúdo jurídico da culpabilidade normativa. Se não for considerada matéria de quesitação obrigatória, a irregularidade deve ser sanada com a aplicação do redutor do artigo 21, caput, na pena definitiva (redução de um sexto a um terço da pena).
"Assim, entendo que deva ser seriamente ponderado o fato de o acusado, no momento anterior até o incidente, entender estar agindo de pleno acordo com as normas de segurança. Na dosimetria da pena, as regras do concurso aparente de normas indicam que, se presentes elementos comuns em duas ou mais fases, deve a circunstância incidir na fase posterior em razão da especialidade das minorantes em relação às atenuantes e destas frente às circunstâncias judiciais. No caso, a inexperiência administrativa e os déficits na formação do réu devem impactar a pena-base (culpabilidade favorável), enquanto os dados empíricos que evidenciam o erro de proibição vencível operar a diminuição da pena definitiva", concluiu o professor.
Fonte: Sérgio Rodas é correspondente da revista Consultor Jurídico no Rio de Janeiro.
Revista Consultor Jurídico, 25 de março de 2022, 20h51
Clique aqui para ler o parecer
0 comentários:
Postar um comentário