“A gente percebe a necessidade do governo itinerante nos pequenos municípios. Os grandes já têm o seu legado”. As palavras são do pastor Arilton Moura em um evento no município de Coração de Maria, no Centro-Norte baiano, em 7 de agosto do ano passado. Na ocasião, ele participava de uma solenidade com professores da cidade, com representantes da prefeitura e com os ministros da Educação, Milton Ribeiro, e da Cidadania, João Roma.
Diante da plateia, o pastor discursa sobre as transformações de uma sociedade só serem possíveis através da educação. “Foi por isso que me houve (sic) o maior interesse de trazermos o nosso ministro, nosso irmão, nosso amigo, para cá, para esse município. Pelo histórico da cidade na área da educação”, acrescenta, referindo-se a Ribeiro.
O vídeo de oito meses atrás voltou a circular agora porque, ao longo de toda a semana, o noticiário nacional foi tomado por denúncias de prefeitos de que dois pastores sem cargos no Ministério da Educação (MEC) seriam responsáveis por um esquema de 'gabinete paralelo' para intermediar recursos ou o acesso direto ao titular da pasta, Milton Ribeiro.
Os dois seriam justamente Arilton Moura e Gilmar Santos, segundo reportagem do jornal O Estado de S. Paulo. Mas por que a situação é tão grave? .
Desde 2015, o governo federal vem contingenciando investimentos na educação. De 2020 para cá, os cortes têm chamado ainda mais atenção pelas dificuldades no orçamento das instituições públicas de ensino, como universidades e institutos federais.
"A pandemia agravou isso porque praticamente não houve apoio do governo para instituições públicas. Ficamos sem estrutura, sem condições de trabalho, sem recursos", diz o professor Alberto Leal Neto, doutor em Educação e professor de Sociologia do Instituto Federal da Bahia (Ifba).
O Ifba, assim como outras instituições federais, foi afetado pelos cortes. "Sou professor de um instituto federal que vem passando, nos últimos anos, por um processo de contingenciamento dos recursos, precarização das condições de trabalho, congelamento do orçamento para assistência estudantil. E quando a gente vê uma situação como essa, vê como a gestão pública está alterando os próprios recursos públicos, não atendendo de fato as necessidades das instituições educacionais", opina.
Nos últimos dias, a Academia Brasileira de Ciências e a Sociedade Brasileira de Progresso pela Ciência (SBPC) divulgaram uma nota manifestando preocupação com as notícias e reiterando a separação entre o Estado e as instituições religiosas, instituída por lei desde 1889, além da própria Constituição Federal, de 1988, que determina que a República seja laica.
“Isso significa que as decisões do Poder Público não podem se subordinar a preceitos de qualquer religião. Além disso, a ideia de república diferencia claramente os princípios voltados ao bem comum e os valores, inclusive religiosos, que pertencem ao foro íntimo de cada qual”, dizem, em nota assinada pelos presidentes das duas entidades, Luiz Davidovich (ABC) e Renato Janine Ribeiro (SBPC).
Esta semana, uma das principais organizações da área, o Todos Pela Educação, também se posicionou. A entidade disse receber a notícia "com estupefação" e afirma que, se comprovado, o acontecimento tem gravidades éticas, de gestão e legais.
Histórico
Desde o começo da administração de Jair Bolsonaro, o MEC teve quatro ministros. O primeiro foi Vélez Rodríguez, que ficou pouco mais de três meses; seguido de Abraham Weintraub. Carlos Dacotelli foi anunciado, mas não chegou a tomar posse. Por último, veio Milton Ribeiro, um pastor presbiteriano.
"Ele (o presidente) aponta o combate à doutrinação trazendo um representante de uma determinada religião", diz o professor Alberto Leal Neto, do Ifba, citando o que chamou de 'doutrinação às avessas'. "A riqueza da educação é justamente você ter a possibilidade do pluralismo de concepções pedagógicas. O que a gente observa é a tentativa do que eles queriam combater", acrescenta.
Os recursos que estão sob suspeita no caso do MEC são vinculados ao Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE). Em geral, esses investimentos têm critérios específicos que tomam por base inclusive dados estatísticos. O problema é que, nos últimos anos, o governo já tinha eventuais atrasos no repasse desses valores aos municípios, de acordo com o advogado Mário Cleone de Souza Júnior, coordenador do curso de Direito da Rede UniFTC em Petrolina.
"Muitas vezes, isso (atraso) obriga o município a suprir esse pagamento com recurso próprio para depois ser ressarcido e é lógico que isso pode acabar causando graves problemas de administração de folha de pagamento", explica, citando que, se as denúncias se provarem verdadeiras, pode haver indícios de crime de responsabilidade.
Líderes
As lideranças religiosas são um dos campos de pesquisa dos estudos da religião, como explica o teólogo Antonio Carlos de Melo Magalhães, doutor em Ciências da Religião e professor do Departamento de Filosofia da Universidade Estadual da Paraíba (UEPB).
“A prática denunciada faz parte de uma das possibilidades do uso da religião: símbolos e investiduras religiosos são habilmente instrumentalizados para ocupar poder político e angariar enriquecimento ilícito”, analisa. “É mais um acontecimento que comprova como a educação passou a ser tratada como balcão de negócios. Recebe quem tem acesso aos corredores do poder”, completa.
Ele destaca que os atores fazem parte de dois ramos do universo evangélico: a Igreja Presbiteriana do Brasil, a do ministro, e a das Assembleias de Deus. Segundo o professor, ainda que não seja uma igreja com muitos membros, a primeira se destaca desde a ditadura militar pela relação com posturas e governos autoritários. As Assembleias, por sua vez, são uma das denominações evangélicas com mais força e adeptos no país. Para Magalhães, são igrejas com uma clara visão de ocupação de poder.
No governo de Jair Bolsonaro, esses grupos passaram a se sentir politicamente representados.
“Claro, não se pode julgar que as igrejas sempre agem dessa forma, mas é inconfundível seu protagonismo por ocupar poder e exercer influência no cenário da política nacional”, pondera.
Ensino laico
Por lei, o ensino religioso no Brasil é uma disciplina de matrícula optativa nas escolas. De acordo com a lei federal 9.745, sancionada em 1997 pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, o componente curricular deve assegurar o respeito à diversidade cultural religiosa do país, vedando qualquer tipo de proselitismo.
No entanto, segundo o professor Antônio Carlos de Melo Magalhães, da UEPB, não é o que acontece em muitas instituições de ensino. “Há claramente orientação para não se fazer catequese ou doutrinamento religioso, mas, na prática, os grupos cristãos católicos e evangélicos fazem, em sua maioria, apologia de suas tradições, o que é péssimo para a memória das religiões afro-brasileiras e indígenas”.
O próprio estado brasileiro precisa garantir que, além da sua laicidade - ou seja, não aderir a nenhum tipo de denominação religiosa -, sejam permitidas manifestações religiosas de qualquer tipo, desde que não agridam os direitos humanos. De acordo com o advogado Mário Cleone de Souza Júnior, da UniFTC, esse princípio é garantido pela Constituição Federal.
"Infelizmente, nosso país acaba misturando os conceitos. Para a dinamização das políticas públicas voltadas para o desenvolvimento do país e o crescimento econômico, toda e qualquer manifestação de natureza religiosa deve ser evitada", explica.
No caso específico da educação, é preciso buscar técnicos que não apenas tenham compromisso com o que está expresso constitucionalmente como também com o objetivo de reduzir as desigualdades educacionais.
"O país só tem condições de quebrar esse fosso de desigualdade quando a educação for tratada com a atenção que merece, seja através da laicidade, seja através da entrega de recursos federais nos prazos indicados, seja com a presença de técnicos que mobilizem práticas públicas que realmente atendam os anseios da população".
Procurados pela reportagem, nem o MEC, nem a prefeitura de Conceição de Maria se posicionaram até o fechamento da edição. Já a Controladoria-Geral da União (CGU) informou que recebeu, ainda em agosto do ano passado, documentos da pasta relativos a duas denúncias - uma sobre possíveis irregularidades em eventos realizados pelo MEC e outra sobre oferecimento de vantagem indevida, por parte de terceiros, para liberação de verbas do FNDE.
Desde então, uma comissão foi instaurada e não teria constatado irregularidades cometidas por agentes públicos, mas possíveis irregularidades cometidas por terceiros. O órgão sugeriu o encaminhamento dos autos à Polícia Federal e ao Ministério Público Federal. Após a denúncia na imprensa esta semana, porém, a CGU disse que decidiu abrir uma Investigação Preliminar Sumária (IPS), para averiguar os novos fatos.
Confira a reportagem completa no link abaixo do site do Correio da Bahia em 26/03/2022
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