foto:reprodução
Thiago não recebeu o atendimento de que precisava na mesma velocidade em que fazia suas entregas sobre uma moto no trânsito de São Paulo. Morreu.
A história do entregador engrossa a estatística decorrente dos obstáculos aos quais estão submetidos os paulistanos que necessitam de atendimento público de saúde na maior cidade do Brasil. É também um retrato das relações atuais de trabalho.
Passava das 22h do último sábado (6). De um lado, quatro amigos reunidos num apartamento de Perdizes (zona oeste) naquela que foi uma das noites mais geladas deste inverno na capital paulista.
De outro, o entregador Thiago de Jesus Dias, 33, que tinha a missão de levar um vinho para seus clientes. Thiago trabalhava para o Rappi, aplicativo de compras e entregas de produtos.
O entregador chegou ao endereço já reclamando de forte dor de cabeça e sentindo muito frio. Seu quadro de saúde se agravou rapidamente, lembra Ana Luísa Ferreira Pinto, advogada na área de direitos humanos. "Ele nem chegou a entrar no prédio. Caiu no chão, estava com o corpo enrijecido e reclamava do frio", disse a advogada.
Ali, na calçada, Ana e seus amigos agasalharam Thiago com cobertores, deram água e iniciaram os cuidados com o entregador. Ainda consciente, ele entregou seu celular para Ana. Pediu que ela avisasse a Rappi que estava passando mal e não faria as próximas entregas programadas.
A advogada avisou e recebeu a seguinte orientação. "Entramos em contato com a Rappi que, sem qualquer sensibilidade, nos pediu para que déssemos baixa no pedido, para que eles conseguissem avisar os próximos clientes que não receberiam seus produtos no horário previsto", disse.
No último lampejo de consciência, o entregador apertou a mão da advogada e balbuciou o nome da irmã, Daiane. "Eu só pedia uma coisa naquele momento: Thiago, fique com a gente, por favor", afirma.
O grupo se dividiu entre ligações para serviços públicos de emergência. Na PM (190), ouviram que precisavam comunicar o Corpo de Bombeiros.
Na central de atendimentos do Corpo de Bombeiros (193), foram informados que a ocorrência havia sido aberta, mas o resgate, no caso específico, deveria ser feito pelo Samu (Serviço de Atendimento Móvel de Urgência).
No Samu (192), órgão sob a responsabilidade da gestão Bruno Covas (PSDB), ouviram de um atendente que "a ocorrência havia sido aberta, mas sem previsão de chegada da equipe". Reportagem do jornal Agora mostrou que 67% dos chamados de socorro ao Samu na capital paulista apresentam "grandes atrasos" nos atendimentos.
Outra reportagem, da Folha de S.Paulo, mostrou que as equipes do Samu estão atendendo menos chamadas. Em abril, a redução chegou a 22%, cerca de um mês depois do fechamento de bases e a consequente realocação de equipes para outros endereços.
No caso de Thiago, o Samu não apareceu. O entregador já agonizava e, após a crise de dor, havia urinado na própria roupa. Naquela altura, ele estava esperado havia 1h30 desde a primeira ligação feita aos órgãos de resgate, conta Ana.
Sem respostas do serviço público, Ana resolveu avisar Daiane sobre o que havia acontecido com o irmão dela. A diarista de 30 anos cruzou boa parte da zona oeste da capital dentro de um carro da Uber para chegar até Perdizes. Ela, a mãe, os três irmãos (incluindo Thiago) moram numa casa de três pavimentos em Pirituba.
O deslocamento entre os dois bairros leva ao menos 50 minutos de carro –isso quando o trânsito coopera. Ao chegar ao local, Daiane se desesperou. "Meu irmão não falava, estava no chão e não apresentava nenhuma reação", disse.
Ela queria tirar o irmão dali de qualquer jeito. Foi quando pensou que poderia transportá-lo também num segundo carro da Uber até um hospital.
A chegada do motorista da Uber, no entanto, só piorou a situação. Quando viu Thiago já no banco de trás com a roupa encharcada de urina, o motorista se recusou a fazer a viagem, alegando que o entregador "sujaria o seu carro". "Eu disse que aquilo era omissão de socorro, um crime. Mas ele cancelou a corrida", disse Ana.
Thiago só saiu dali porque, no mesmo instante, o seu melhor amigo chegou de carro e o levou às pressas ao Hospital das Clínicas. Lá, os problemas continuaram. Um segurança, diz a família da vítima, dificultou a entrada do carro porque a unidade só recebe pacientes levados por ambulância. "Tivemos que burlar o sistema. Aproveitamos que uma ambulância estava entrando, colamos nela e conseguimos levar o meu irmão até a entrada", disse Daiane.
A diarista ainda precisou procurar por uma maca disponível e levar o seu irmão à sala de emergência. Ela lembra que o relógio marcava 2h quando recebeu o primeiro diagnóstico: Thiago sofrera um AVC (acidente vascular cerebral).
Por volta das 4h, o quadro de saúde do entregador piorou e ele foi transferido para a UTI (Unidade de Terapia Intensiva). "Eu conversei com ele, vi uma lágrima caindo de seus olhos. Parecia que ele entendia tudo. Foi a nossa despedida", disse Daiane.
Às 10h de domingo (7), a família recebeu o segundo diagnóstico: Thiago estava com suspeita de morte encefálica. Sem esboçar reação, o quadro se confirmou no dia seguinte. O entregador morreu às 9h35 de segunda-feira (8).
A família doou as córneas, o fígado e os rins. O corpo de Thiago foi enterrado na terça-feira (9) no cemitério Dom Bosco, em Perus (zona norte).
Thiago deixa três irmãos, a mãe, o pai e a filha, Brenda, 6. Amava andar de moto desde adolescente e planejava construir um canil para suas duas cachorras Kiara e Giulia.
Era considerado um piadista incorrigível, disse Daiane. "Perdemos o nosso grande humorista, o cara que só fazia a gente rir", afirma.
Brenda é quem conforta a família agora. Toda vez que sai para brincar no quintal de casa, aponta o dedo para o céu e avisa: o meu pai virou uma estrela.
OUTRO LADO
A Rappi disse que lamenta a morte de Thiago de Jesus Dias e informou que busca melhorias em seus procedimentos. "A empresa está desenvolvendo um botão de emergência, que estará disponível dentro do aplicativo dos entregadores, por meio do qual os mesmos poderão optar por acionar diretamente o suporte telefônico da Rappi ou as autoridades competentes", disse a empresa. O serviço, segundo a Rappi, poderá ser usado em situações relacionadas a saúde ou a segurança.
O Samu disse que o chamado de Thiago chegou até sua central às 22h15 de sábado, como dor de cabeça e classificado com prioridade média, recebendo monitoramento à distância até ser cancelado com a informação de que o paciente havia sido removido em carro particular.
O órgão ressaltou que abriu um procedimento para verificar todas as circunstâncias que envolveram o atendimento e, após sua conclusão, a direção do serviço disse que adotará as medidas cabíveis.
A Secretaria da Segurança Pública informou que a Polícia Militar não registrou nenhum pedido de resgate para Thiago. A pasta da gestão Doria (PSDB) diz que analisou os chamados recebidos pela PM na noite do último sábado (6) e não encontrou o endereço informado pelos solicitantes.
O Corpo de Bombeiros, por meio de sua assessoria de imprensa, também negou ter recebido as ligações. Disse que no caso do entregador, é o Samu o responsável pelo atendimento. "Casos clínicos são de responsabilidade do Samu. Os bombeiros atendem ocorrências de traumas e acidentes."
Procurada nesta quinta (11), a Uber não se manifestou sobre o comportamento de seu motorista e procedimentos da empresa em casos como este.
O Hospital das Clínicas foi questionado sobre o fato de ter dificultado a entrada de Thiago no setor de emergência e disse que as imagens de câmeras mostraram que o veículo que transportava o entregador demorou três minutos para entrar na unidade.
Para a advogada Ana Ferreira Pinto, o caso não ficará impune. "Ocorreu uma série de negligências. Isso precisa ser evitado. Já me coloquei à disposição da família", disse.
fonte:Folhapress/12/07/19
0 comentários:
Postar um comentário