Em uma audiência de custódia promovida na quarta-feira (10/1), a juíza Lana Leitão Martins, do Tribunal de Justiça de Roraima (TJ-RR), cumpriu o protocolo do Conselho Nacional de Justiça que determina que os presos devem ser ouvidos sem algemas se não forem violentos e não existir perigo de fuga. Durante o depoimento, a julgadora ofereceu café e um casaco a um detento que estava tremendo de frio.
Foi o que bastou para que a juíza se visse jogada — contra a sua vontade — no meio do tiroteio habitual da polarização política brasileira. Parlamentares de extrema-direita e membros (e ex-membros) do Ministério Público atacaram a magistrada com a velha ladainha do “privilégio para bandidos”.
O vídeo da audiência foi compartilhado pelo deputado federal Nikolas Ferreira (PL-MG), uma das novas caras do bolsonarismo, com uma legenda irônica. E pelo ex-procurador e deputado cassado Deltan Dallagnol, que escreveu com seu português exótico: “No que se tornou o Brasil?”.
A repercussão foi tamanha que o TJ-RR teve de divulgar uma nota para lembrar que o CNJ estabelece que as audiências de custódia devem ser conduzidas em “condições adequadas para o custodiado”. O que foi reforçado pelos magistrados e advogados ouvidos pela revista eletrônica Consultor Jurídico. Para eles, a juíza simplesmente cumpriu a lei.
“Chegamos a tal nível de autoritarismo que, quando alguém cumpre a lei e trata as partes com urbanidade, vira manchete. Pior: os brucutus tipo Dallagnol criticam quem age corretamente. No que se tornou esse país, pergunta DD? Respondo: tornou-se assim porque pessoas como ele passaram no concurso para uma carreira jurídica. E quase destruíram a democracia. Ele, Moro e outros que desprezam a Constituição Federal, que DD chama de ‘filigrana’. Tornou-se assim também por causa do ensino jurídico. Que reproduz o autoritarismo da sociedade”, comentou o jurista Lenio Streck. “As audiências no Judiciário são o retrato de uma sociedade do tipo ‘você sabe com quem está falando?’. Advocacia se tornou o exercício da humilhação cotidiana. E as partes sofrem com tratamento tipo ‘chame-me de excelência’. Temos pela frente um imenso passado. Passado que ditaduras e estados de exceção foram construindo ao longo dos anos. E escapamos há pouco de uma tentativa de volta ao passado. Passado que gente como DD ajudou a piorar. Viva a juíza que cumpriu a lei. Parece que minha frase de 2015 na OAB-RJ foi profética: no Brasil, cumprir a lei é uma atitude revolucionária.”
Entendimento parecido tem o desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) Marcelo Semer. Ele afirmou que a magistrada atuou de maneira correta e lembrou que todos devem ser tratados com dignidade.
“Estranho é o Deltan Dallagnol, que foi promotor, fiscal da lei, defensor da ordem jurídica e, por tabela, dos direitos humanos, se estranhar tanto com isso. É uma mostra de que realmente estava no lugar errado.”
Semer lembrou que uma das primeiras lições que aprendeu na magistratura foi justamente chamar o réu de senhor. “O juiz que me recebeu na comarca me dizia: ‘Eles são maltratados em muitos lugares, aqui devem merecer respeito’. Não importa o que fizeram, isso a gente decide no processo e aplica as penas que forem condizentes com as leis e com as provas. Mas o respeito é para todos.”
O magistrado também recordou que, em uma audiência como a de Roraima, o réu está sob custódia do Estado, que tem obrigação de zelar por sua saúde e segurança.
Tratamento digno x privilégio
O advogado criminalista Welington Arruda, por sua vez, afirmou que o tratamento da juíza Lana Martins ao réu está em consonância com a Constituição Federal e com tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário, como a Declaração Universal dos Direitos Humanos e a Convenção Americana de Direitos Humanos.
“A confusão entre tratamento digno e privilégio é um equívoco que precisa ser prontamente corrigido. A legislação brasileira, assim como a prática judicial internacional, endossa o entendimento de que a dignidade da pessoa humana não é uma concessão do Estado que pode ser atribuída ou retirada a seu critério, mas, sim, um direito fundamental que assiste a todos os seres humanos.”
Na mesma linha, o advogado Fabio Menezes Ziliotti acredita que a conduta da juíza do TJ-RR deveria ser o padrão. “Nesse caso, a magistrada foi sensível ao sofrimento humano demonstrado pelo custodiado, independentemente de ele ter violado os ditames da lei, e o tratou com a dignidade dispensável a qualquer ser humano, oxalá que isso se torne um exemplo a toda e qualquer autoridade.”
Por fim, o criminalista Mário de Oliveira Filho defendeu que o respeito à dignidade humana não compromete sob nenhum aspecto a autoridade judiciária. “Quem perdeu ou não tem o dom, e não conhece os princípios cristãos da indulgência, da misericórdia, do não julgar com sua própria régua e do perdão, não pode atuar na esfera criminal. Porque punir é necessário, é civilizatório, mas dentro das regras legais, e de respeito humano, caso contrário, deixa de ser justo para se tornar vingativo.”
Fonte: Rafa Santos/ConJur 13/01/2024
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