sexta-feira, 5 de janeiro de 2024

Do Merópoles: Ódio, oração e golpe: como funcionava o acampamento bolsonarista no QG em Brasília

                                               foto:reprodução

O acampamento bolsonarista que deu vida ao 8 de Janeiro, em frente ao Quartel-General do Exército de Brasília, colocou nas páginas de história do país 71 dias de atividades que envolveram ódio, orações e planejamento de um golpe de Estado. O Metrópoles esteve dentro do acampamento por diversas ocasiões, registrando a realidade paralela em que viviam os acampados.

Entre 30 de outubro de 2022, data em que Luiz Inácio Lula da Silva (PT) foi eleito presidente, e 9 de janeiro de 2023, quando 1.927 pessoas foram conduzidas do QG até a Academia Nacional da Polícia Federal, o acampamento mesclou momentos de orações com planos de atentado terrorista a bomba, idosos servindo café com militares da reserva ensinando táticas de guerrilha.

O acampamento reuniu principalmente empresários, autônomos, aposentados, grupos armamentistas e militares reformados, sendo a maior parte deles brancos e de alto poder aquisitivo. Barracas foram montadas por uma vasta extensão do QG do Exército, que permitiu a permanência dos golpistas no local. Boa parte dos manifestantes, no entanto, não dormia no acampamento e escolhia o conforto das casas ou hotéis, voltando para o protesto no dia seguinte.

Além das barracas, várias tendas formavam a estrutura de uma “minicidade golpista”, como classificou o então interventor federal na Segurança Pública do Distrito Federal, Ricardo Cappelli. Mais de uma tenda funcionava como cozinha, onde eram servidas ao menos três refeições por dia, fruto de doações de empresários espalhados pelo país e doações via Pix de bolsonaristas acampados.

Contra Lula, Moraes e nordestinos

Também davam o tom do local as tendas da oração e “do ódio”. Enquanto uma delas reunia fiéis que rezavam diariamente, a outra, bem próxima, em cima de uma carreta, permitia que lideranças entonassem palavras de ordem contra autoridades, incitando a violência. O presidente Lula, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes e até nordestinos eram alvo da ira bolsonarista.

Até o papa Francisco chegou a ser atacado, como a reportagem registrou em novembro de 2022. “Esse papa é comunista. Vamos orar pelas Forças Armadas, porque a esquerda é satanista e está amaldiçoando os três comandantes, da Aeronáutica, do Exército e da Marinha. O feitiço está forte”, alegava uma senhora.

Passando ao lado de onde estavam 20 fiéis com terço em mãos, uma mulher conversava com outra: “O Nordeste é uma praga!”. Outro apoiador de Jair Bolsonaro (PL) misturava notícias falsas com xenofobia. “O Lula prometeu dar o auxílio e mais R$ 150 por filho. O povo do Nordeste deve ter ficado doido. Cheios de filhos. Quando foi agora, passou na TV que o [Geraldo] Alckmin falou que viu direito e não vai dar para dar o auxílio.”

Fake news

No universo paralelo de bolsonaristas criado em frente ao QG, fake news circulavam como se fossem verdades absolutas. Alexandre de Moraes era criminoso, Carla Zambelli (PL) havia viajado para os Estados Unidos para mostrar provas de fraude nas urnas, Bolsonaro teve votos roubados e as Forças Armadas teriam poder constitucional de tomar a Presidência de Lula.

O silêncio do presidente derrotado também ganhou novas interpretações. “Ele [Jair Bolsonaro] estava reunindo provas de que a eleição foi fraudada. Agora já tem tudo provado e o Alexandre de Moraes tem 72 horas para ir na TV falar que teve erro”, afirmava veementemente uma mulher.

As notícias saiam do WhatsApp, Telegram e até do Gettr, rede social que ficou conhecida após o uso maciço de apoiadores pró-Donald Trump. Uma das organizadoras do protesto chegou a comemorar, nas redes sociais, uma notícia falsa produzida para ridicularizar os manifestantes.

Ela divulgou que um ministro dos Emirados Árabes Unidos chamado “Jallim Habbei” não iria reconhecer a vitória de Lula contra Jair Bolsonaro. O ministro, no entanto, não existe. O nome criado forma uma piada quando lido. Nos comentários, a organizadora recebeu mais apoio. “Eita, glória”, respondeu uma seguidora.


Bombas e armas

Um dos acampados era George Washington de Oliveira Sousa, 54 anos, que planejava cometer atentados a bomba em Brasília. Atualmente preso e condenado, ele disse em depoimento à Polícia Civil do Distrito Federal (PCDF) que estava “preparado para matar ou para morrer”.

O empresário foi preso com arsenal composto por armas e explosivos, na véspera de Natal de 2022. Naquele dia 24 de dezembro, a polícia foi acionada e identificou uma bomba acoplada a um caminhão-tanque, abastecido com 60 mil litros de querosene de aviação, que ia entrar na área do terminal do Aeroporto de Brasília.

Em depoimento, George Washington afirmou que veio para a capital federal “preparado para guerra” e que aguardava uma “convocação do Exército”, pois é um “defensor da liberdade”.

“A minha ida a Brasília tinha como propósito participar dos protestos que ocorriam em frente ao QG do Exército e aguardar o acionamento das Forças Armadas para pegar em armas e derrubar o comunismo. A minha ideia era repassar parte das minhas armas e munições a outros CACs [caçadores, atiradores e colecionadores] que estavam acampados no QG do Exército assim que fosse autorizado pelas Forças Armadas”, afirmou.

O Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios (TJDFT) condenou ele e Alan Diego dos Santos, 32 anos, acusados de planejarem a tentativa de explosão de um caminhão-tanque perto do Aeroporto de Brasília em dezembro 2022. Somadas, as penas de ambos ultrapassam os 14 anos de reclusão.

Doações e dinheiro vivo

Os bolsonaristas contavam com uma estrutura cara durante os 71 dias de manifestação pelo golpe. Comidas, bebidas e tendas eram entregues “de graça” para os presentes. Isso fez com que várias pessoas em situação de rua começassem a ocupar o lugar, e até defender o território de “infiltrados”.

A maioria dos acampados não sabia dizer quem bancava tudo isso, enquanto outra parte dizia que eram doações voluntárias. A arrecadação em dinheiro vivo chamou atenção. Em cerca de 10 minutos em que a reportagem esteve no QG, uma vaquinha para “contratar um trio elétrico” recebeu R$ 3.670 em espécie. Notas de R$ 100 e de R$ 50 saíam facilmente do bolso dos presentes.

“Pessoal, quem puder doar, pode vir até aqui e entregar a quantia que puderem. A gente não vai usar Pix, porque é mais difícil contabilizar, fazer a prestação de contas. Daqui a pouco eu subo aqui para falar quanto a gente arrecadou, amém?”, disse uma mulher ao microfone. Hoje em dia, ela apagou todos os registros das redes sociais dos dias em que estava no QG.

Voluntários ajudavam a contar o dinheiro, para dar transparência, e a quantia total era anunciada. Já o destino final nunca foi muito preciso. Depois do fim do acampamento no QG, autoridades citaram que existia uma “máfia” no local lucrando em cima do desespero bolsonarista pelo golpe.

Enquanto havia essa arrecadação, carretas chegavam carregadas de comidas. Pão com mortadela, biscoitos e frutas eram os alimentos mais encontrados. Em almoços e jantares, era possível comer um churrasco com carne, frango, arroz tropeiro e mandioca. Após relatos de que “petistas infiltrados” estariam entregando comidas e bebidas com laxante e até chumbinho, aumentou o alerta para que se procurassem sempre as mesmas tendas de distribuição.

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Esperanças, delírios e violência

Os bolsonaristas também ficavam por mais de 24 horas no local, em dias de semana, com filhos em idade escolar. No dia 4 de novembro, entre 15h e 16h, a reportagem contou cerca de 50 crianças. Uma mãe colocou quatro delas em fileira e começou a orientar, enquanto gravava. “Vamos lá, digam assim: ‘Não queremos crescer em um país comunista’”. Só uma delas estava em idade de fala e pôde repetir.

Os bolsonaristas não convergiam em dizer quais os principais objetivos do ato. Alguns acreditavam que iriam convencer as Forças Armadas fazendo barulho em frente aos quartéis do país. Outros, colocavam esperanças em um documento que dizem ter sido elaborado por juristas, mas mais se assemelhava a um post de Facebook, com a “exigência” de que Lula não fosse empossado.

Havia ainda quem acreditava que era preciso aumentar o número de seguidores na página de Instagram do Exército para que o petista eleito democraticamente não assumisse. Ao passar dos dias, com Lula diplomado, em 12 de dezembro de 2022, e empossado, em 1º de janeiro de 2023, o sentimento foi de revolta.

A “solução”, para muitos dos acampados, era não esperar mais as Forças Armadas. Eles passaram a acreditar que o Exército aguardava uma ação dos bolsonaristas, e que invadir os prédios públicos da Praça dos Três Poderes acabaria obrigando o governo a assinar a Garantia da Lei e da Ordem (GLO), o que, no entendimento deles, provocaria uma intervenção militar, tirando Lula do cargo.

FONTE: ALAN RIOS/METRÓPOLES/REPRODUÇÃO 05/01/2024

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