*Reportagem publicada no Anuário do Ministério Público Brasil 2022. A publicação está disponível gratuitamente na versão online e à venda na Livraria ConJur, em sua versão impressa.
Na sabatina a que foi submetido no Senado, antes de ter seu nome reconfirmado pelo Plenário, foi claro. “Não permiti que o Ministério Público quisesse se substituir ao Poder Legislativo, ao Judiciário ou ao Executivo. Cumprir a Constituição é compreender a separação dos Poderes, é poder saber que o dever de fiscalizar condutas ilícitas não dá aos membros do Ministério Público nenhum poder inerente aos poderes constituídos, harmônicos e independentes entre si”, disse, na ocasião.
Na mesma inquirição, mostrou que não pretende criminalizar a atividade política e que a reversão de muitas condenações, feitas de maneira irregular e falha, contribuiu para diminuir a confiança no sistema judiciário, numa reafirmação de seus cuidados com o processo legal.
Essa máquina corporativa, chamada por críticos de “dinastia tuiuiú” – composta por procuradores que consideravam ter dificuldades para voar dentro da instituição, a exemplo da ave pantaneira –, foi cimentada com as negociações para formação das listas tríplices. Outra característica dessa dinastia foi a de transformar o MP em agência de notícias e propaganda. O objetivo era o de conseguir manchetes, não condenações.
O “caminho do meio” a que Aras consagrou sua gestão teve como consequência a interrupção dos linchamentos de representantes do poder econômico e político. Foram alvos dessa máquina Luiz Inácio Lula da Silva, Dilma Rousseff e Michel Temer, ironicamente aqueles que respeitaram as escolhas das listas tríplices. A resistência de Aras em restabelecer o patíbulo que fez a alegria da imprensa nos últimos anos lhe custou caro. A oposição interna na PGR promete novos lances, mas o PGR ainda acredita ter retaguarda para enfrentá-la.
O segundo momento de Aras começou quando, além das esperadas resistências internas, passou a ser mais cobrado em sua atuação pelo Supremo Tribunal Federal, cujos ministros, por diversas vezes, rejeitaram a simples abertura de investigações preliminares contra autoridades com foro privilegiado, principalmente o presidente Jair Bolsonaro.
Com o recrudescimento da epidemia de covid-19 nos últimos dois anos e a completa inação do governo federal, por vezes sabotando os esforços nacionais para combater a doença, Aras passou a ser mais cobrado a tomar providências céleres e concretas para a responsabilização de agentes públicos.
Em reação, em dezembro de 2021, ele fez divulgar que, nos 12 meses anteriores, abrira 25 apurações preliminares para averiguar a conduta de Bolsonaro. Não detalhou as notícias de fato. Parte diz respeito a atos e omissões do presidente durante a epidemia; parte às infundadas suspeitas levantadas pelo mandatário sobre o sistema eleitoral e as urnas eletrônicas.
Em documento enviado ao STF, ele fez uma defesa das notícias de fato, que, afirma, funcionam como “uma espécie de purificador e de anteparo à Corte Constitucional, a fim de não sobrecarregar a já pesada estrutura investigativa do Supremo”. Isso evitaria que centenas de representações chegassem à Corte Suprema.
Pode ser, mas as providências que Aras diz ter tomado não agradam parte do STF. Em outubro, a ministra Cármen Lúcia pediu providências para que Aras descrevesse as medidas que seriam tomadas pela PGR em relação aos pedidos de investigação que se acumulam devido às falas golpistas de Bolsonaro na comemoração do 7 de Setembro em 2021.
Depois, Moraes determinou a abertura de inquérito para apurar possível crime do presidente por ter associado, de maneira falsa, a vacinação contra a covid-19 a casos de Aids. O PGR havia determinado apenas uma apuração preliminar a pedido da CPI da Covid, que funcionou durante seis meses no Senado e apurou diversas irregularidades e casos de corrupção, no combate à doença por parte do governo federal.
Segundo Aras, o papel da CPI é político. Já a atuação do MP se limita aos princípios do processo judicial e do procedimento jurídico, o que inclui o respeito ao devido processo legal, à garantia de ampla defesa e à cadeia de custódia de eventuais provas, fundamentais para evitar futuras anulações.
Uma das marcas da gestão de Aras foi o desmonte das forças-tarefas, das quais o exemplo mais notório é o da operação “lava jato”, que chegou ao fim em 2021. As forças-tarefas estão sendo substituídas pelos Gaecos – Grupos de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado. Embora a formação destes grupos tenha sido autorizada em 2013, somente agora, depois de uma ação do PGR, houve um impulso para que as procuradorias nos estados tenham Gaecos.
Até o final de 2021, foram instalados sete destes grupos. “A denominada operação ‘lava jato’ cumpriu função relevante em uma fase da vida pública brasileira. Houve excessos, a partir de um modo de atuação com falhas que nossa gestão vem corrigindo. Temos buscado institucionalizar as forças-tarefas, cada uma identificada por certas características e conexões”, avaliou Aras, em balanço dos dois primeiros anos de sua gestão.
“Ao instalarmos os Gaecos, tanto aperfeiçoamos a institucionalidade que faltava quanto fortalecemos o sistema de freios e contrapesos internos da unidade a que está vinculado o Gaeco – realizado pela Corregedoria do MPF; e externo, pelo CNMP e pelos demais entes públicos.” Durante o seu mandato, Aras levou 20 denúncias ao STF e ao Superior Tribunal de Justiça e assinou 19 acordos de colaboração. Ao todo, 400 autoridades com prerrogativa de foro estão sendo investigadas.
O balanço das atividades da PGR ressalta, também, o trabalho na área constitucional. Nos dois anos da gestão de Aras foi adotado novo modelo de atuação, buscando maior eficiência e unidade institucional no controle concentrado de constitucionalidade perante o STF. O resultado pode ser traduzido em números: no total, foram 299 novas ações diretas de inconstitucionalidade (ADIs), 13 arguições de descumprimento de preceito fundamental (ADPFs) e quatro ações diretas de inconstitucionalidade por omissão (ADOs). Ao todo, foram 315 novos feitos. No mesmo período, o PGR se manifestou em 1.318 ações constitucionais propostas por outros entes.
Para aprimorar o trabalho da área constitucional foi feita a opção por uma atuação preventiva e não apenas por meio de respostas às representações que chegam ao gabinete do PGR. Dessa forma, passou-se a analisar em bloco as questões constitucionais dos estados para dar tratamento uniforme aos temas que se repetem em várias Unidades da Federação. Assim, foi possível o ajuizamento a um só tempo de diversas ADIs contra leis semelhantes editadas em vários estados que foram consideradas inconstitucionais pelo PGR.
Um exemplo dessa atuação em bloco foi o ajuizamento de 17 ADIs contra normas estaduais que trataram do foro por prerrogativa de função. A iniciativa de Aras expandiu a todos os estados a interpretação do STF sobre o tema. O entendimento da corte é de que não pode haver foro por prerrogativa de função em nível estadual quando a Constituição Federal não prevê esse tratamento para autoridades nacionais.
Claro que a epidemia afetou os trabalhos da PGR, com as atividades sendo retomadas presencialmente somente no final de 2021. Logo que foi constatada a gravidade da doença, o PGR determinou a criação do Gabinete Integrado de Acompanhamento da Epidemia Covid-19 (Giac) para promover a integração do Ministério Público brasileiro ao esforço nacional de controle e prevenção da doença, em articulação com o Ministério da Saúde e demais autoridades sanitárias das três esferas de governo (federal, estadual e municipal).
Em 18 meses de trabalho, o grupo realizou e/ou acompanhou 296 reuniões e emitiu 431 ofícios e cerca de 300 informativos e boletins, além de ter instaurado milhares de procedimentos. Também teve papel decisivo na destinação de recursos públicos decorrentes da atuação do Ministério Público brasileiro para o enfrentamento da epidemia. Considerando apenas os ramos que integram o MPU, o total destinado ultrapassou R$ 4,7 bilhões.
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