E
m Sinop, Sorriso, Nova Mutum e Lucas do Rio Verde, todos eles municípios do Norte de Mato Grosso situados ao longo da BR-163, a expansão do agronegócio é tão evidente que transborda e modifica a vida da maioria dos moradores. Nessas cidades, com populações entre 50 mil e 150 mil habitantes, não é possível precisar se as bordas urbanas estão sendo corroídas pelas plantações ou se, ao contrário, as casas e os prédios avançam sobre os cultivos. Um contraditório deserto verde, sem gente e sem fauna, pontuado de silos que perfuram o céu, envolve e aperta as localidades, cujo crescimento indica o início de uma verticalização. Desfraldada em mastros e janelas, a bandeira do Brasil é onipresente e dá às cidades um clima permanente de Copa do Mundo – além de sinalizar a prevalência política do bolsonarismo em toda a região. Mas, mesmo no umbigo desse universo de abundância, há trechos onde nem tudo que viceja é verde-amarelo.
A rodovia, por exemplo, é um corredor de fumaça criado pelos caminhões, que vão deixando pelo caminho as sementes que vazam das carrocerias. Na área das cidades, a rodovia é emoldurada pela desarmonia arquitetônica de armazéns portentosos, revendas de implementos agrícolas, indústrias de beneficiamento, postos de combustível, oficinas e churrascarias de preço módico. Os pobres vivem em geral nos bairros atrás dos galpões periféricos, a Oeste da BR. Há décadas, são chamados e chamam a si mesmos de “maranhenses”. Os que vivem a Leste são empreendedores pioneiros, que desfrutam de ruas largas, comércio frenético e tapetes de grama imaculados nas áreas públicas. São os “gaúchos”, por sua origem sulista.
Os “gaúchos” chegaram para colonizar a região na década de 1970. Depois de grandes sacrifícios, muitos venceram o desafio, alguns enriqueceram de verdade e até os que falharam, mas não voltaram para trás, colhem benefícios da terceira onda de prosperidade. Na primeira onda, os pioneiros derrubaram a floresta e alimentaram serrarias. Em seguida, espalharam bois sobre a área desmatada. Vinte anos depois, no final do século XX, na terceira onda, empurraram o gado Brasil adentro, semearam arroz e em seguida soja, milho, algodão e girassol, como protagonistas da maior revolução agrícola da história, hoje aliada a granjas e a uma poderosa agroindústria.
“O agronegócio é o Brasil que dá certo”, definiu, tempos atrás, o economista Roberto Gianetti da Fonseca, ao dar uma palestra na Agrishow, a maior feira de tecnologia agrícola do Hemisfério Sul, em Ribeirão Preto, no interior paulista. “Cresce com uma taxa positiva, fantástica. Um sucesso absoluto.” Nesse cenário, o Norte de Mato Grosso é o principal protagonista, com cidades cuja renda per capita chega a quase o dobro da média nacional. O estado lidera o ranking de municípios mais ricos do agro e, conforme dados propagandeados pela Prefeitura de Sinop, essa é a cidade que mais contribui para o PIB do setor em Mato Grosso, seguida de Sorriso e de Lucas do Rio Verde.
Para um Brasil atropelado pelos avanços tecnológicos da era digital, incapaz de promover uma política econômica para desconcentrar renda e desenvolver educação e qualificação profissional de boa qualidade, essa revolução agropecuária de dimensões planetárias é considerada, literalmente, a salvação da lavoura. Em fóruns internacionais, como o que ocorreu em junho passado na Nona Cúpula das Américas, em Los Angeles, o presidente Jair Bolsonaro sempre apresenta o Brasil como celeiro do mundo, o país sem cuja produção milhões de seres humanos passariam fome.
As contas oficiais mostram que, no ano passado, mesmo num momento em que sanções chinesas à carne brasileira abalaram a participação do setor no conjunto do comércio internacional, a exportação de produtos de origem agropecuária representou quase metade de tudo que o país vendeu no exterior. Foram 120 bilhões de dólares (cerca de 600 bilhões de reais) de receita, um aumento próximo a 20% em relação ao ano anterior, com um saldo na balança comercial superior a 105 bilhões de dólares. Trata-se de um desempenho que rivaliza com o PIB do Kuwait (cerca de 106 bilhões de dólares), um dos dez maiores produtores de petróleo do mundo.
Em 2022, as coisas estão ainda melhores. A receita de exportações do setor cresceu 57,5% em janeiro e 65,8% em fevereiro, na comparação com os mesmos meses do ano passado. Esses resultados foram impulsionados pelo aumento dos rebanhos e da área plantada, pelos ganhos de produtividade e também por fatores como a situação cambial, a baixa nos estoques internacionais de alguns produtos e a guerra iniciada em fins de fevereiro envolvendo dois gigantes da produção mundial de grãos, Rússia e Ucrânia. “De alguns anos para cá, tudo tem jogado a favor do avanço do agronegócio brasileiro”, diz o economista José Roberto Mendonça de Barros. “A emergência econômica da China, doenças em rebanhos de outros países, encarecimento do dólar e avanços tecnológicos nos cultivos criaram uma combinação altamente positiva.”
Além desses números vistosos, o dado que mais espanta está resumido na participação do agronegócio no PIB brasileiro, conforme a metodologia desenvolvida pelo Centro de Estudos Avançados em Economia Aplicada da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Cepea/Esalq), da USP em Piracicaba, no interior paulista: 27,4%, e com tendência de alta. É um número espetacular. Isso significa que, entre tudo o que o Brasil produz num ano, quase um terço vem do agronegócio.
Diante disso, será que o Brasil inteiro ganha com o sucesso econômico da agropecuária, mesmo quem não vive nas cidades das frentes produtivas nem trabalha na cadeia de negócios do setor? Quando a resposta vem de alguém ligado ao agronegócio, ouve-se um arrazoado vertical. “Se um fazendeiro compra uma máquina fabricada no Sul do Brasil com aço que foi feito no Rio de Janeiro, o agro está dando emprego para muita gente nas cidades que estão longe da agricultura”, afirma o prefeito de Sorriso, Ari Lafin (PSDB), um “gaúcho” da cidade paranaense de Palotina e produtor rural, como praticamente todos os políticos da região. A lógica é chancelada pelo presidente Bolsonaro, que já declarou que seu governo é dos ruralistas.
Só que, nessa descrição sumária e tão recorrente, há mais mito que realidade. A começar pela informação de que o “agronegócio” contribui para o Produto Interno Bruto do país com 27,4%. Para se chegar a esse número, o Cepea/Esalq criou, em parceria com a Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil, uma metodologia inspirada no termo agribusiness, inventado na Universidade Harvard nos anos 1950.
O agribusiness designa toda a cadeia econômica envolvida com a produção realizada no campo. Por “toda a cadeia econômica” entenda-se até o prego enfiado no mourão da cerca do campo de trigo. Até o medicamento do cavalo, a gasolina do caminhão que vai para o porto. Até o empréstimo que a fábrica de móveis de madeira contraiu. A ideia está no refrão publicitário que o setor exibe na tevê com o apoio da Rede Globo: “O agro é tudo.” É como se a indústria automobilística colocasse na sua conta a produção dos curtumes porque reveste com couro os bancos dos carros de luxo.
Deixando o agronegócio restrito ao que efetivamente é – ou seja, às criações e às plantações – sua participação real não chega a 7%, segundo os cálculos do IBGE. Ou seja, a produção rural de verdade, aquela que lida com plantas e animais, representa um quarto do que se chama habitualmente de “agronegócio”. Sem essa etiqueta amplíssima, o campo brasileiro é bem menos viçoso. A imagem de pujança – vendida pelas entidades controladas pelos maiores produtores, pelos fabricantes e comerciantes de insumos e pelas exportadoras de commodities – esconde que esses gigantes formam uma elite muito rica e poderosa, que está empoleirada no alto de uma pirâmide formada por agricultores e pecuaristas na maioria empobrecidos. “O Censo Agropecuário revela que 85% do valor bruto da produção são gerados em apenas 9% dos estabelecimentos”, diz o professor Geraldo Sant’Ana de Camargo Barros, coordenador científico do Cepea/Esalq, baseado no Censo Agropecuário, Florestal e Agrícola 2017. Médios e pequenos produzem os 15% restantes, mas as unidades de produção familiar, que são três quartos do total de propriedades, não ocupam muita terra individualmente e respondem por apenas 23% da renda gerada na atividade.
Desde o início do ano, o governo federal vinha atirando contra a Petrobras, da qual é acionista majoritário. O presidente Bolsonaro atribuía seu mau desempenho nas pesquisas eleitorais ao alto preço dos combustíveis administrados pela estatal, “uma traição ao povo brasileiro”, conforme afirmava. Pois bem: só no primeiro trimestre deste ano, a Petrobras, sozinha, recolheu aos cofres públicos quase 70 bilhões de reais em impostos – o suficiente para cobrir mais da metade dos gastos com o novo valor do antigo Bolsa Família. A inquietação de Bolsonaro, portanto, claramente nunca foi a contribuição da estatal com o país na hora de pagar impostos. Se fosse isso, estaria vociferando contra o agronegócio.
O caso mais evidente dessa realidade desequilibrada é o do imposto de exportação. O governo não cobra imposto de exportação sobre produtos agropecuários para não encarecê-los e reduzir sua competividade no mercado internacional. Assim, nessa modalidade de tributo, a agricultura, a pecuária e os serviços relacionados, todos juntos, recolheram aos cofres públicos, ao longo de 2019, a quantia ridícula de 16 mil reais – menos de quinze salários mínimos. Enquanto no Brasil as commodities agrícolas têm isenção fiscal completa na exportação, na Argentina, o maior vendedor mundial de óleo e farelo de soja, os tributos sobre a venda da soja para o exterior são superiores a 30% e os do trigo e do milho são de 12% – e o país estuda aumentar esses percentuais. Detalhe humilhante: quando o Brasil precisa importar óleo de soja, é a Argentina que nos socorre, como aconteceu em 2021.
Outro exemplo de improdutividade fiscal: a Sociedade Brasileira de Cartografia calcula que o setor sonega pelo menos 2 bilhões de reais por ano só de imposto sobre a propriedade territorial rural (ITR), que é calculado conforme o tamanho da propriedade e o uso que é dado a ela (quanto maior, mais imposto; quanto maior a utilização agropecuária, menos imposto). A quase totalidade dos fazendeiros brasileiros declara usar mais de 80% de suas propriedades, mas o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) calcula que o número seja menor que 60%, conforme estudo realizado a quatro mãos – pelo geógrafo Marco Antonio Mitidiero Junior, professor da Universidade Federal da Paraíba, e a doutora em ciências humanas Yamila Goldfarb, vice-presidente da Associação Brasileira de Reforma Agrária.
No emaranhado tributário nacional, a Lei Kandir, que desde 1997 isenta de icms produtos primários e semielaborados destinados à exportação, responde por um enorme volume de descontos. O agro é o maior beneficiário dessas isenções. Até 2016, a perda de arrecadação acumulada pelos estados somente com a Lei Kandir era da ordem de 269 bilhões de reais, segundo os cálculos da Fundação Amazônia de Amparo a Estudos e Pesquisas.
Se tudo isso já explica a baixíssima arrecadação de um setor que fatura muito, tem mais: uma complexa corrente de compensações fiscais e de crédito revela quem, afinal, divide os lucros do negócio com os produtores. São o setor financeiro, os fornecedores de determinados insumos e as tradings internacionais – nome que se dá às empresas que compram mercadorias brasileiras para vender no exterior. Um levantamento baseado em dados do Ministério da Economia feito pelo economista Thomaz Ferreira Jensen e o defensor público Marcelo Carneiro Novaes, integrante do Fórum Paulista de Combate aos Impactos dos Agrotóxicos e Transgênicos, recorda que as indústrias de agrotóxicos não pagam IPI nem PIS/Cofins e se encaixam na desoneração parcial de ICMS e de imposto de importação.
Mais. Parte relevante dos fazendeiros envolvidos com as culturas extensivas (na dimensão) e intensivas (no manejo) faz a troca de sementes e agrotóxicos – o conhecido “pacote tecnológico” – por documentos de crédito que entram em um sistema que envolve processadoras, companhias de seguro, bancos, transportadores e agentes comerciais, num interminável renovar de títulos. Esses papéis, associados aos contratos de hedge – que asseguram preços fixos para a venda futura dos produtos antes mesmo de eles brotarem na terra –, tornam-se base especulatória de uma ciranda financeira, que, em grande parte, se beneficia da isenção de imposto sobre operações financeiras (IOF) e não gera tributos.
A ciranda financeira rural tem seis tipos de papéis – Cédula de Produto Rural, Certificado de Depósito Agropecuário, Warrant Agropecuário, Certificado de Direitos Creditórios do Agronegócio, Letra de Crédito do Agronegócio e Certificado de Recebíveis do Agronegócio –, todos com benefícios tributários. Jensen e Novaes dizem que o resultado da especulação pode atingir 4 bilhões de dólares.
Consultores do setor gostam de estabelecer uma diferença entre dono de fazenda e empresário rural. O primeiro, na mais lucrativa das hipóteses, vive hoje de arrendar suas terras. O segundo, cujos olhos estão focados no mercado, administra propriedades com milhares de hectares, investe os recursos captados no mercado financeiro – alocados por investidores ou emprestados por instituições de crédito – e presta contas sobre o rendimento obtido aos donos do empreendimento, sejam eles sócios ou familiares, sejam acionistas de um grande grupo empresarial. Desse modelo decorre uma espécie de alavancagem em que capital de giro, seguros e mesmo insumos e equipamentos são bancados por financiamentos e, na maioria dos casos, serão pagos com parte dos lucros obtidos na produção.
Os dois ramos – agronegócio e sistema financeiro – combinam-se bem porque, nas condições atuais, comprar terras eleva o custo e o tempo de amortização de investimentos a patamares inviáveis para quem pretende lucrar rapidamente e gosta de ter a liberdade de mudar de ramo diante de adversidades inesperadas. Esse padrão tende a empurrar os juros, as taxas e os lucros para o custo dos produtos agrícolas. “A agricultura de larga escala, voltada para a exportação de milho, soja, algodão e açúcar, tornou-se um negócio de altíssimo investimento”, constata a professora Maria Lúcia Carneiro Vieira, da Esalq. “É por isso que apenas nesse universo se justificam os caríssimos projetos de manipulação genética.”
Mas aqui surge outro mito: a modernização do agronegócio brasileiro. A limitação mais evidente é a qualidade do produto final. Sobretudo na agricultura, a maior parte dos produtos não tem beneficiamento e, portanto, não agrega valor – o que seria bom para a exportação e para a geração de empregos. O professor Camargo Barros diz que 83% do faturamento com exportações de soja corresponde à venda de grãos. O farelo fica com 15% e o óleo, com um total insignificante. É um quadro que depõe contra um setor que gosta de se apresentar como avançado e moderno.
Os países importadores comemoram a escassa modernização do agronegócio brasileiro. Assim, eles permanecem como os criadores de oportunidades de trabalho. Para mudar essa situação, seria preciso uma articulação entre os principais países produtores. O Brasil, na condição de campeão em vários rankings de exportação, poderia desempenhar um papel relevante nessas negociações. Mas, hoje, há um consenso segundo o qual o governo brasileiro está tão isolado do ponto de vista global que é incapaz de liderar ou até mesmo debater nos fóruns internacionais algo dessa natureza. Nos municípios, os prefeitos recorrem à busca de indústrias de transformação para alterar esse quadro, mesmo que seja apenas em nível local. Enquanto isso, os produtores e gestores econômicos preferem recolher o lucro fácil da venda de commodities.
Há outros entraves à modernização do agronegócio. “Primeiro, o conjunto ainda é muito influenciado por fazendeiros que não se afastam da nossa tradição patrimonialista e imaginam que podem controlar cada elo da corrente, da terra até à exportação, em vez de se aprimorar na produção e deixar que os outros especialistas cuidem do resto”, afirma um consultor que pede para ficar anônimo para preservar seus contatos no setor. “Segundo, na desorganização tributária do país, há um incentivo para que pessoas físicas continuem proprietárias de grandes fazendas, registrando o movimento financeiro em livro-caixa e simulando prejuízos para sonegar.” Um grande produtor de Lucas do Rio Verde confirma a afirmação do consultor. Ele diz que não troca o CPF pelo CNPJ enquanto não houver lei que o obrigue a fazê-lo. “Se posso pegar empréstimos, contratar pessoal, comprar máquinas e vender a produção contornando os impostos e tendo até mesmo acesso a juros mais baratos, por que eu faria diferente?”, diz. Ele pede para não revelar seu nome de modo que a fiscalização não chegue ao seu CPF.
O agronegócio também se beneficia de subsídios não tributários. É o caso do crédito favorecido para a compra de sementes e adubo e para a comercialização e estocagem do produto. Também é o caso da subvenção direta e da transferência de dívidas. Calcula-se que mais de 1% do PIB seja gasto com esse tipo de benefício destinado à agricultura, à pecuária e à agroindústria. Segundo o Orçamento de Subsídios da União de 2020, a subvenção para esses setores cresceu 13,3% de 2018 para 2019. E, em 2019, ganharam mais vantagens – uma nova temporada do costumeiro festival de perdão de dívidas.
Em setembro daquele ano, por exemplo, o governo ofereceu até 95% de desconto na liquidação de dívidas rurais. O que se repetiu em 2021, com abatimento semelhante nas dívidas contraídas no Banco do Brasil. No Programa de Subvenção ao Prêmio do Seguro Rural, a União banca até 35% do custo de aquisição. E, a despeito da recente crise hídrica, manteve-se inalterado o programa que dá descontos na energia elétrica para a atividade agropecuária até 2023, conforme decreto assinado na gestão de Michel Temer. Na conta oficial, a produção de alimentos consome menos de 5% da energia gasta no país, mas é só na conta oficial. O relatório Energia, Agricultura e Mudança Climática, da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), de 2016, apresenta percentual seis vezes maior.
Diante de tudo isso, o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento divulgou em outubro do ano passado um estudo que chamou a atenção: informa que os gastos federais com a agropecuária estão em seu menor patamar em quatro décadas. O estudo atribui o recuo histórico ao avanço do crédito privado. Seria uma excelente notícia, mas um exame um pouco mais detalhado mostra onde está o pulo do gato. O estudo simplesmente não trata das renúncias fiscais, nem do perdão de dívidas. Exclui, portanto, toda a conta dos gastos federais com o setor.
O discurso a favor dos subsídios se sustenta no argumento de que é preciso fixar a população no campo e incentivar a produção familiar. É uma estratégia que dá certo em países desenvolvidos a um custo até mais alto do que o brasileiro. Na Noruega, na Islândia, na Suíça, na Coreia do Sul e no Japão, segundo dados da OCDE levantados pelo jornal Valor Econômico, subsídios e proteções tarifárias podem equivaler a até 60% da renda bruta dos agricultores. No Brasil, esse número está na casa dos 5%, conforme a mesma fonte.
A questão é que os programas específicos para a família (Pronaf) e para pequenos e médios produtores (Pronamp), cujos objetivos são justamente fixar a população no campo e incentivar a produção familiar, recebem menos da metade do total do crédito rural concedido no país. Na safra atual, esse montante passa de 230 bilhões de reais. A desproporção mais flagrante aparece entre os grandes proprietários do Centro-Oeste, que recebem 26% de todos os créditos disponíveis no Brasil. Essa montanha de crédito é rateada na região por apenas 6,8% dos estabelecimentos contemplados em todo o país. O total de grandes contratos com esses estabelecimentos caiu 15% em doze meses, segundo dados apurados até junho de 2020, mas o valor destinado a eles aumentou na mesma proporção que o reservado aos produtores familiares, médios e pequenos. Resumindo: os maiores produtores, que são poucos, ficam com a maior parte dos subsídios.
No mercado internacional, os subsídios fazem parte de um jogo duro e pode-se até compreender que eles aqui representem uma ferramenta de compensação para o que fazem os competidores estrangeiros, principalmente na venda de commodities. O ex-presidente Donald Trump chegou a despejar 15 bilhões de dólares de incentivo ao cultivo de grãos num único ano. A China já admitiu ter subsidiado safras de algodão em limites até cinco vezes maiores do que o combinado com a Organização Mundial do Comércio (OMC) e também estourou o teto com a soja e outros produtos.
A questão relevante que distingue o Brasil é que, por aqui, o incentivo se transforma em ganho líquido para o grande investidor – e esse grande investidor não paga imposto de renda sobre as retiradas de lucros e dividendos que realiza nas suas empresas, donas dos estabelecimentos agropecuários. Até o ministro da Economia, Paulo Guedes, defende mudança na legislação, mas a Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA), a conhecida bancada ruralista, não quer nem ouvir falar no assunto. O grupo já sinalizou que não está disposto a aprovar nada que signifique aumento de impostos na atividade e consequente abalo na sua base eleitoral.
Seria uma compensação social importante se, apesar das isenções tributárias, dos perdões de dívida, do crédito e subsídios, o agronegócio gerasse empregos, mas isso também não é verdade. A mecanização das lavouras e os processos tecnológicos na pecuária têm reduzido drasticamente a quantidade de mão de obra empregada no campo. Antonio Mitidiero e Yamila Goldfarb analisaram números do Cepea/Esalq, coletados pelo IBGE, sobre trabalhadores diretos na agropecuária. Concluíram que mais de 185 mil perderam o emprego ao longo de 2019. Isso é mais do que 10% do total de empregados diretos e formalizados em propriedades rurais.
Nos dados do Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged) do Ministério do Trabalho e Previdência aparece um saldo positivo de 61 mil novas contratações, que inclui apenas empregos formais. Já a pesquisa do IBGE registra os informais também, que são cada vez mais raros no interior. No começo de janeiro deste ano, o IBGE divulgou que as atividades agrícolas foram as primeiras a recuperar os níveis de emprego pré-pandemia. Mas o instituto também mostrou que o agronegócio desempregou perto de 1,4 milhão de pessoas desde 2012. De 10,4 milhões de trabalhadores no campo, o total caiu para 9 milhões.
Não é para menos. Uma colheitadeira de cana, operada por funcionário qualificado, substitui mais de uma centena de cortadores que nem sempre tiveram vínculo empregatício. “A verdadeira contradição é esperar que um setor primário, sempre impactado por mudanças tecnológicas, possa aumentar o uso de mão de obra na medida em que se desenvolve”, observa o sociólogo Arilson Favareto, pesquisador do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap) e autor do livro Paradigmas do Desenvolvimento Rural em Questão. “Em qualquer lugar do mundo ocorre exatamente o contrário.”
A afirmação é válida para o chamado sistema de produção integrada, em que os criadores de animais prestam serviços para a indústria. Nesse sistema, os donos de granjas de frangos ou suínos recebem filhotes, rações e remédios da empresa que abaterá o rebanho. O interessante é que, a cada ciclo, a empresa aperta a seleção dos “integrados”, como são chamados os granjeiros, para que produzam mais, com margem de lucro menor e mais investimentos. O resultado é que as granjas estão crescendo de tamanho, mas seu faturamento é proporcionalmente menor e não gera novos empregos.
Na pecuária leiteira, quem perde o bonde da ampliação e modernização tecnológica só tem a alternativa de recorrer aos programas de governo, cujo objetivo é valorizar a produção regional, mas são irrelevantes. Exemplo dramático dessa irrelevância é a evolução do chamado Selo Arte, criado há quatro anos pelo Ministério da Agricultura para certificar e valorizar a produção de pequenos empreendedores. O universo potencial de beneficiados é de 160 mil pequenos produtores. Até o dia 1º de junho deste ano, o cadastro oficial dos incluídos no programa reunia 114 nomes apenas, responsáveis por 297 produtos.
Em julho do ano passado, ao registrar que a receita da produção de grãos e de cultura perenes prevista para este ano tendia a crescer 53%, o jornal O Estado de S. Paulo deu destaque à explosão de vendas de aviões, carros de luxo e produtos de alta sofisticação, sobretudo na região Centro-Oeste. Com dados da Associação Brasileira das Entidades dos Mercados Financeiro e de Capitais, o jornal informou que o negócio de administração de grandes patrimônios, o setor private, crescera 11% no país em cinco anos e estrondosos 32% nos municípios que concentram atividades rurais. Ouvido pelo Estadão, o coordenador do Cepea, Geraldo Barros, destacou o caminho feito pelo dinheiro. “O uso da renda que sobra depois dos investimentos no próprio setor vai movimentar a região, incluindo os demais setores”, disse.
O retrato é correto, mas falta uma pincelada fundamental: tudo isso caminha na rota da já sinistra concentração de renda no Brasil. Os consumidores do topo da pirâmide – esses que comprarão os aviões, os carros de luxo – moram em localidades já desenvolvidas. Ou nas cidades em que produzem ou em centros urbanos. Isso significa que a riqueza não se espalha. O agronegócio funciona como um aspirador de recursos que concentra essa riqueza em alguns bolsões de prosperidade. “Muita gente hoje vende as terras aqui, supervalorizadas, e investe nas novas frentes de soja”, diz o agricultor Nilfo Wandscheer, liderança da União das Cooperativas de Agricultura Familiar e Economia Solidária (Unicafes) de Sorriso. “Mas continuam morando aqui mesmo ou se mudam para São Paulo”, diz ele, um “gaúcho”, mas que sempre foi pequeno produtor e hoje não planta mais: cede parte de seu lote para parceria no cultivo da cana.
Essa realidade é ofuscada pelo mito segundo o qual o agronegócio traz riqueza. Em 2016, os pesquisadores José Eustáquio Ribeiro Vieira Filho e José Garcia Gasques, ambos do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), lançaram o livro Agricultura, Transformação Produtiva e Sustentabilidade. O trabalho mostrava que a região do Matopiba – uma aglutinação das primeiras sílabas de Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia – era um polo dinamizador de uma economia antes estagnada. Afinal, a região, criada para nomear o recorte de Cerrado que engloba o Sul do Maranhão e do Piauí, todo o estado do Tocantins e o Oeste da Bahia, deverá produzir mais de 20 milhões de toneladas de grãos por safra nos próximos anos. Mas os dois pesquisadores, que foram depois empregados no Ministério da Agricultura na gestão de Bolsonaro, viram a riqueza do Matopiba, mas não olharam para os lados.
Com a pesquisadora do Greenpeace Louise Nakagawa (agora no Cebrap) e outros três colegas da Universidade Federal do abc – Suzana Kleeb, Paulo Seifer e Marcos Pó –, o professor Arilson Favareto criou um quadro que mostra que os municípios do Matopiba nos quais a lavoura extensiva foi bem-sucedida têm um perfil de riqueza e injustiça social semelhante aos dos que não foram tocados pela exploração agrícola. Mais curioso: dentro da região, há também maior número de cidades consideradas mais saudáveis, mas estas – com indicadores sociais mais altos – têm baixa produção agrícola. Na conclusão dos estudiosos, “há mais pobreza e desigualdade do que riqueza e bem-estar no Matopiba”.
Com patrocínio da ONU, o estudo de Favareto e colegas está sendo ampliado para abranger as principais áreas produtivas do Brasil. Ainda nas etapas preliminares, os pesquisadores já anotaram que nas áreas tradicionais de propriedades menores, cooperativadas ou não, como no Sul do Brasil, o resultado econômico regional é muito maior do que nas fronteiras agrícolas em que avançam as grandes fazendas. “A riqueza produzida nas maiores propriedades migra para os grandes centros e para os mercados financeiros e de consumo sofisticado”, diz Favareto. É precisamente o que está acontecendo nos centros urbanos na região Centro-Oeste.
É fácil constatar essa realidade nas chamadas “novas regiões produtoras”, em que uma cidade enriquece enquanto as demais do entorno continuam pobres ou, pior, empobrecem ainda mais. A cidade de Luís Eduardo Magalhães, no Oeste baiano, é uma ilha de nova riqueza, cercada de lugares como Santa Maria da Vitória, onde a renda per capita é seis vezes menor. (O fenômeno é um pouco diferente em localidades como Sinop, Sorriso e Lucas do Rio Verde. Essas cidades, plantadas onde antes não havia praticamente nada, importaram de outras regiões do país até os pobres, “os maranhenses”. Mas o resultado, em termos de concentração de renda, é o mesmo.)
Em Mato Grosso, alguns municípios, por não estarem às margens da BR-163, mal enxergam o boom do agro. Vera, a apenas 25 km da rodovia, é um deles. Sem os gramados imaculados e as fachadas modernas que marcam as primas ricas da vizinhança, a cidade tem casinhas simples, negócios modestos e raríssimos visitantes. Seu território também está coberto de plantações, mas a cidade só arrecada as magras receitas do imposto territorial rural e não se beneficia da onda empreendedora da região. “Muitos fazendeiros plantam lá, mas moram e gastam aqui”, observa o produtor de banana e criador de gado de corte Márcio Kuhn, de Sorriso, que é também secretário adjunto de Agricultura e Meio Ambiente da cidade. “Com isso, a economia desses lugares fica parada no tempo.”
Os números que marcam a diferença são eloquentes. Vera tem 3 mil km² de área, 11,7 mil habitantes e somente 2,3 mil empregos. Lucas do Rio Verde, também conhecida pela sigla LRV, tem área apenas 20% maior e emprega 28 mil pessoas, o equivalente a 40% de seus quase 70 mil habitantes. O PIB per capita de LRV é de 68 mil reais. O de Vera está em torno de 45 mil reais. Mesmo sendo maior do que o PIB per capita do Brasil (35 161,70 reais), ele não produz efeitos locais porque o dinheiro não fica na mão dos munícipes. Em consequência, as casas, o comércio e a manutenção urbana do município estagnaram. E o maior movimento na praça central ocorre em torno de um vendedor de caldo de cana nos dias em que o ônibus escolar transporta as famílias mais pobres para receber cesta básica dos programas assistenciais. A esperança geral é que a usina de processamento de soja para fabricação de biodiesel, que está em construção, seja capaz de reverter a decadência.
“Outras cidades fora do eixo da estrada têm o mesmo problema”, diz Lafin, o prefeito de Sorriso que também preside o consórcio de municípios que trabalha para equilibrar o desenvolvimento regional. Na situação atual, os problemas sociais dos municípios que não progridem acabam se transferindo para os que concentram riqueza. “Na pandemia, tivemos até 80% das vagas de nossas UTIs ocupadas por pessoas que vieram de fora”, afirma o secretário de Desenvolvimento Econômico de Sinop, Klayton Gonçalves. Com sua economia já bem diversificada, Sinop é líder no ranking estadual do agro, sedia a maior usina de etanol de milho da América Latina, produz madeira certificada, tem pecuária forte, ao lado da agricultura, “e arca com o ônus do progresso”, na definição de Gonçalves.
Está na pauta do consórcio de municípios, por exemplo, a possibilidade de estatizar, em nível regional ou estadual, a obra de duplicação da BR-163, que se tornou inviável com a submersão econômica do Grupo Odebrecht, dono da atual operadora da estrada. Outro item é a tentativa de impedir a consolidação da reserva natural do Castanhal, que levaria as cidades de União do Sul, Cláudia e Feliz Natal a perder um enorme território com potencial para os cultivos.
No umbigo do agronegócio, os “maranhenses” que chegaram à região para “catar raiz”, limpando as áreas desflorestadas, agora realizam qualquer trabalho. Nas amplas revendedoras de carros, que dominam as avenidas centrais de Sinop, Sorriso, Nova Mutem e LRV, é deles a obrigação de manter bonitos os veículos expostos. É uma atividade de Sísifo. Logo cedo, eles removem o sereno acumulado sobre a lataria, antes do almoço espanam a poeira e, à tarde, tiram a fuligem de alguma queimada nos arredores. Isso toma o dia inteiro de dois, às vezes três, “maranhenses” que, quando formalizados, levam um salário mínimo para as casas invisíveis aos viajantes e aos moradores das áreas mais nobres.
A palavra “favela” – que efetivamente não se aplica às casas de madeira dos bairros populares, razoavelmente ordenadas em ruas bem traçadas e malconservadas – dá urticária nos gestores municipais, todos empenhados em impulsionar a área de assistência social das prefeituras. “Mantemos vigilância constante para localizar e assistir às famílias que chegam à cidade ou vivem em situação de extrema pobreza”, diz o lépido prefeito Miguel Vaz (Cidadania), de LRV, cidade com o terceiro maior PIB do agro em Mato Grosso, não tanto em razão da área plantada, mas principalmente por ter se tornado sede de dezenas de indústrias que processam a produção. “Por um lado, acabamos atuando na construção de habitações populares com venda subsidiada e, por outro, contribuímos para que alguns migrantes completamente frustrados possam retornar para sua origem”, diz Vaz, um gestor que faz do Facebook uma espécie de diário de sua vida administrativa, registrando até notas de falecimento de luquenses ilustres. Como o crescimento econômico multiplica o demográfico, atraindo principalmente nordestinos à caça de pequenas oportunidades, há muito gelo para enxugar nesse trabalho.
Em Sorriso, onde a própria existência de uma seção da Central Única das Favelas (Cufa) é um constrangimento para o marketing sobre uma terra de oportunidades, funciona uma estação rodoviária improvisada nas esquinas dos bairros pobres. Todos os meses desembarcam passageiros de uma dúzia de ônibus de transporte interestadual clandestino em busca de emprego. A maior parte vem do Maranhão, antigo fornecedor de mão de obra para o serviço bruto do desmatamento, da construção de cercas, do transporte de sacaria – trabalhos cada vez mais raros. Hoje, o que resta para esse pessoal é a construção civil, vigorosa em cidades que chegam a crescer 18% ao ano.
O prefeito Lafin diz que até 30% das famílias em sua cidade recebem algum tipo de ajuda financeira da assistência social. Mas ele admite que os migrantes que “não se esforçam para encontrar trabalho” perdem os benefícios, o que, naturalmente, alimenta as viagens de retorno. “Não tiramos de ninguém o direito de ir e vir, mas deixamos claro que aqui não tem espaço para quem não quer se integrar ao mercado de trabalho.” Segundo ele, o que está em discussão é o “direito de ficar”. Por isso, “nos mesmos ônibus que chegam, vai embora outro tanto de gente”, observa Luzinete Aparecida Alves, a coordenadora da Cufa em Sorriso.
Somente Alves, uma auxiliar e algumas poucas voluntárias fazem funcionar o galpão de telhado alto em que apenas a cozinha e os sanitários têm paredes. O resto é uma grande sala de piso frio, com cadeiras e pacotes de mantimentos acumulados nos cantos para dar espaço a dezenas de crianças. O local recebe a criançada no contraturno das creches municipais, oferece cursos de aperfeiçoamento em costura, cozinha ou artesanato, tem aulas de artes. Funciona como ponte entre os recém-chegados e os órgãos de saúde e assistência social e também como ponto de distribuição de cestas básicas doadas por empresários locais. A coordenadora explica: “O povo aqui até tem um teto em cima da cabeça. Não parece favela. Mas muitos não têm coisa nenhuma para pôr na mesa.” Quinhentas famílias estão cadastradas na Cufa. Perto de 2 mil recebem auxílio esporádico, total que foi bem maior no auge da pandemia, quando acordos feitos nacionalmente pela ONG fizeram chegar às mais necessitadas cartões de banco pré-carregados para compras de alimentos.
A diferença na cor da pele entre os assistidos da entidade e os moradores do outro lado da BR é um tema que ela prefere evitar. Um site de jornalismo investigativo publicou recentemente uma extensa reportagem destacando a segregação racial nas bem-sucedidas cidades da soja. A mera menção à Cufa no texto produziu nela o temor de que alguns doadores, agastados, pudessem reduzir as contribuições para os projetos assistenciais.
Os migrantes ou moradores locais, em geral, não têm qualquer expectativa de viver da terra em pequenos assentamentos ao lado dos grandes plantios. “Houve projetos do Incra aqui, no passado, mas muitos beneficiados venderam os lotes para o uso como chácaras de recreio ou arrendaram as áreas a quem tem mais vocação para lidar com a terra”, diz o agricultor Wandscheer. Como assentado em Sorriso, ele mesmo cede atualmente parte de sua chácara para cultivo de cana em regime de parceria. No Sindicato dos Trabalhadores Rurais de LRV, o presidente Ademir Forlin, plantador de limão, lamenta a dificuldade dos agricultores familiares em alcançar o ritmo de abastecimento demandado pelos supermercados. “A maior parte das frutas vem de São Paulo”, ele diz. Na greve de caminhoneiros de 2018, os municípios do Norte de Mato Grosso ficaram sem abastecimento de hortifrutigranjeiros, numa situação caótica.
Responsável na Prefeitura de Sorriso pela área de agricultura familiar, o produtor Márcio Kuhn desdobra-se para que um sistema que envolve 550 sitiantes e chacareiros, que ocupam 3,5% da área cultivável do município, disponha de condições para ter uma produção regular. Já foram milhares, mas a concentração de propriedades iniciada na década passada levou a maior parte a migrar para onde a terra custa menos. A agricultura e o meio ambiente compõem uma única secretaria do governo municipal, o que muitas entidades ambientalistas comparam com um lobo vigiando o galinheiro, mas Kuhn considera que dá agilidade na implantação de projetos de baixo impacto sobre recursos naturais. Na sua leitura, houve tal descuido pela área de agricultura familiar que hoje o pequeno e o médio produtores estão pressionados por não ter capital para insumos, tecnologia na lavoura e distribuição. Isso torna o arrendamento de suas terras uma tentação quase irresistível. Para quem arrenda 100 hectares, o que é uma propriedade média para os padrões do Incra, Kuhn estima uma renda de até 200 mil reais por safra.
Se a prosperidade do agro também não transborda para a economia brasileira na forma de impostos nem cria renda ou emprego nas cidades do seu entorno, uma coisa é certa: rende dólares para o país. Em 2021, a balança comercial brasileira registrou um saldo de 61 bilhões de dólares, dos quais 43,7 bilhões vieram do agronegócio. De um lado, isso é parte do sucesso da produção agropecuária do país. De outro, tem a ver com as importações brasileiras, que foram contidas pelo alto preço da moeda norte-americana, ajudando a melhorar o saldo da balança comercial.
A questão é o destino desses dólares. Há pontos polêmicos, a começar pela acumulação no Banco Central de um volume excepcional de moeda norte-americana que, encarecida por circunstâncias locais e internacionais, não atrai muita gente interessada em comprá-la. O BC fechou o ano passado com 362 bilhões de dólares no cofre. Economistas divergem sobre o nível ideal de reserva cambial para garantir o país contra crises internacionais, mas concordam que há problemas quando os dólares que entram não são usados para o financiamento de importações que permitam desenvolver e acelerar o crescimento. Para tentar desovar alguns dólares, o governo baixou em 10% os impostos de importação de vários itens em novembro do ano passado. Em maio, fez nova redução. Desta vez, diminuiu em mais de 10% a taxação de outros 6 mil itens comprados no âmbito do Mercosul, entre eles carne, feijão e arroz. Outra redução foi feita em julho, para treze itens, incluindo o lúpulo usado na fabricação de cerveja.
As medidas certamente consumirão alguns dólares, mas não solucionam a questão central e, como o cobertor é curto, podem acabar tendo um efeito deletério: impulsionar um pouco mais a desnacionalização da indústria de máquinas e equipamentos, conforme já sinalizou o lobby da Confederação Nacional da Indústria (cni).
As iniciativas do governo também não tocam num tema pouco comentado, porém lembrado pelo economista Mendonça de Barros, um defensor aguerrido do agronegócio, mas atento aos sinais negativos. Muitas tradings já nem trazem todas as suas receitas para o país, deixando uma parte lá fora. Isso acontece porque não há onde aplicá-las de forma a compensar o risco cambial no mercado nacional. Anualmente, mais de 45 bilhões de dólares relativos a exportações não são internalizados na economia brasileira. Isso é metade do valor de mercado da Petrobras.
Toda a comemoração que se vê em razão do superávit comercial do país termina retemperada com os ingredientes da vida real do comércio internacional. O saldo na balança de importações e exportações é parte de um conjunto de dados bem maior. Enquanto a balança comercial teve resultado positivo, o saldo de transações correntes com o exterior – que incluem serviços de dívidas, transferências de capital, financiamentos, seguros, viagens internacionais e outros itens – ficou negativo em 2020, ainda que com o melhor resultado desde 2007. No ano passado, foi pior do que no anterior. E, nessas despesas que abalam o saldo de transações do país, o agro tem grande participação, com seus gastos em fretes, juros, lucros, assistência técnica, patentes e royalties.
Entre os inúmeros contrapesos para o aparente sucesso do agro, há ainda a falta de diversificação. Ou seja: é o problema de o Brasil confiar nas vendas de poucos produtos a poucos clientes. A Arábia Saudita parou de comprar frango em maio de 2021. Depois retomou. A China, que já suspendeu a compra de suínos algumas vezes e no fim de 2021 ficou um tempo sem importar carne bovina, anunciou recentemente que está refazendo seu plantel de porcos e diminuirá definitivamente as encomendas. Não foi em resposta às desfeitas de Jair Bolsonaro, mas os chineses também reduziram em 5% a compra de soja ao longo do ano.
Apesar de ser reconhecido pela boa produtividade, item em que voltou a ocupar liderança no ranking divulgado pelo Departamento de Agricultura dos Estados Unidos, o Brasil patina na inserção de tecnologia na produção nacional e na capacidade para criar soluções sustentáveis. A Food Tank, organização que destaca iniciativas de segurança alimentar saudável e nutritiva, indicou 25 indivíduos cujas ideias ou organizações demandam atenção global nesta década, pela inventividade, originalidade e efetividade. Nenhum é brasileiro.
O próprio governo, embora se diga um amigo dos ruralistas, mais atrapalha do que ajuda o agronegócio, a começar pela falta de relevo do país nos fóruns globais. Sob Bolsonaro, o governo abriu mão de uma cadeira privilegiada na OMC em troca de um assento na Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE), que não veio até hoje. Na OMC, criada em 1995, países em desenvolvimento têm condições especiais para negociar o cumprimento de acordos e até para acesso a outros mercados – e foi disso que o país desistiu. Com isso, faz três anos que o Brasil não tem voz nas discussões comerciais do mundo. Submetido a ameaças de retaliação econômica por causa das queimadas, do desmatamento e do descompromisso com a agenda das mudanças climáticas, o governo brasileiro não dispõe de senha nem para chegar ao guichê de reclamações.
Em grande medida, o que deu certo na produção agrícola brasileira deve-se ao empenho da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa). A entidade domou o Cerrado, lidera a pesquisa de recuperação de terras degradadas e semeia conhecimento país afora, para pequenos e grandes empreendimentos rurais. No entanto, a Embrapa, apesar da excelência do seu trabalho, está sendo asfixiada com a redução de recursos federais. Conforme dados do Portal da Transparência, em 2021, a empresa perdeu 10% do orçamento de 3,4 bilhões de reais. Para este ano, tem orçamento 6,8% menor que o de 2019.
A invasão russa na Ucrânia trouxe à tona a displicência com que o governo brasileiro e o setor agrícola trataram, ao longo do tempo, a questão dos fertilizantes. Embora haja fontes em condições de se explorar no país, não houve investimento, e agora a dependência da importação cria risco não só de elevação de preços, mas até de desabastecimento.
Ao lado da pujança econômica do agro, germinou no país um sistema de suporte parlamentar que, na visão de muitos, termina por desequilibrar a discussão democrática tanto sobre os objetivos da agricultura e da pecuária quanto sobre o uso social da terra, a preservação natural, a manutenção de reservas indígenas, a delimitação de atividades extrativistas e a contribuição financeira que atividades de alto lucro devem à nação – entre outras distorções apontadas pelo ex-deputado constituinte Márcio Santilli, fundador do Instituto Socioambiental.
A Frente Parlamentar da Agropecuária deu metade dos votos em favor do impeachment de Dilma Rousseff, compôs a maioria na rejeição da denúncia contra Michel Temer por organização criminosa e obstrução de Justiça, apoiou a candidatura de Jair Bolsonaro e, como ele, defende a liberação de armas de fogo. Em maio de 2020, um mês depois do então titular do Ministério do Meio Ambiente, Ricardo Salles, usar a significativa metáfora sobre “passar a boiada” para defender a desregulamentação na sua própria pasta em nome de interesses econômicos da ala predatória do agronegócio e dos garimpeiros, a Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil, a Associação Brasileira dos Produtores de Soja, a Sociedade Rural Brasileira e dezenas de outras entidades do setor assinaram um manifesto de apoio ao ministro publicado em jornais de todo o país.
Um prefeito do Norte de Mato Grosso, que é também fazendeiro, nota uma peculiaridade na ação da frente parlamentar dos ruralistas: embora seja composta de políticos e em teoria possa auxiliar os administradores públicos das áreas agrícolas a encaminhar demandas que atendam à população dessas regiões, esses deputados e senadores nem sempre estão disponíveis para a tarefa. “O negócio deles é atender mesmo ao setor produtivo, não à administração pública”, diz o prefeito. “A instância é política, mas a atuação é de interesse privado.” Como há deputados que usam a camisa da FPA, mas também têm ligações com a sua região, esse prefeito não se dispõe a criticá-los publicamente. Mas é possível entender essa dedicação exclusiva ao analisar como funciona e quem compõe a entidade.
O Instituto Pensar Agropecuária (IPA), financiado por 48 associações (que, por sua vez, recebem recursos de empresas relacionadas ao agro), dá assessoria à FPA. Desenhado e administrado até 2021 pelo engenheiro João Henrique Hummel Vieira, ex-secretário executivo da entidade, o IPA sustenta que as bandeiras da agricultura e da pecuária são, no fim da linha, causas da sociedade, porque suas ações resultariam, na prática, em comida mais barata para a população. “Fizemos um instituto que, de um lado, busca demonstrar essa lógica e levar o debate das questões do setor para o Congresso, onde elas ficam transparentes para todos”, diz Hummel. “Por outro lado, a entidade incentiva a modernização dos processos no campo, que devem resultar em produtividade e, em consequência, ganhos para todo o país.” Ele destaca que o IPA apoia os parlamentares que integram a FPA. Um decano entre os lobistas brasilienses, com clientes envolvidos em financiamento de candidatos, pede discrição sobre seu nome e informa que esse apoio inclui fazer chegar aos deputados e senadores da FPA o acesso a serviços para campanhas eleitorais, entre outras facilidades.
Hoje, a moderação sobre o ânimo dos ruralistas é exercida, em parte, pelo mercado internacional, que tem assumido alguns compromissos com a sobrevivência do planeta. O aperfeiçoamento da rastreabilidade de produtos agropecuários brasileiros vem sendo exigido depois de uma proposta aprovada na União Europeia com apoio da China e dos Estados Unidos. O professor Raoni Rajão, do Departamento de Engenharia de Produção da Universidade Federal de Minas Gerais (ufmg), calcula que um quinto da soja exportada pelo Brasil pode ser bloqueado por ser originário de propriedades desmatadas ilegalmente. Seu estudo a respeito foi publicado na revista Science em 2020.
Enquanto isso, o presidente da República diz nos fóruns internacionais o oposto do que tenta tornar viável com o apoio de uma bancada que, hoje, mantém quase metade dos votos no Congresso e se tornou mais bolsonarista do que rural. A FPA recebeu a adesão de deputados e senadores que não têm um palmo de terra, mas compartilham da teoria do ex-capitão, segundo a qual é injusto o Brasil ter de preservar o meio ambiente por pressão de países que destruíram seus ecossistemas originais.
Desde que começaram a surgir indícios de que o Brasil estava voltando ao mapa da fome, uma contradição passou a intrigar os leigos: como o país que “alimenta o mundo” não consegue dar de comer à sua própria população? Afinal, o Brasil é o maior produtor mundial de soja, açúcar, suco de frutas e café, e também o maior exportador de soja, milho, carne bovina, frango, açúcar, celulose e suco de laranja – além de ocupar lugares de destaque no pódio do comércio mundial de carne suína, frutas, peixes. A explicação, claro, é a estúpida inflação dos alimentos. E o próprio agronegócio ajuda a encarecê-los.
Funciona assim: com a integração da produção a cadeias mundiais de comércio, financiamento e consumo, o agro amarra-se a contratos de longo prazo. Esses contratos estabelecem a entrega de determinado produto antes mesmo que o campo seja semeado ou que o bezerro para engorda seja comprado. Com essa prática, o produtor define os preços antecipadamente e garante que terá lucro, pois ele conhece os custos que enfrentará até colher a lavoura ou mandar o boi para o abate. Na medida em que os preços internacionais são atrativos, ou o dólar tem uma cotação favorável, esse caminho fica ainda mais interessante para o produtor rural. E, mesmo quando reserva uma parte do seu produto para vender depois, o produtor optará sempre por entregá-lo a quem paga mais – que, não raramente, são os compradores do mercado externo.
Quando faltam grãos no mercado mundial ou há quebras de safra, os produtores brasileiros têm de cumprir seus contratos com compradores internacionais, mesmo que tenham vendido a preços baixos – e não há como aumentar a oferta no mercado interno. Essa é uma razão pela qual o Brasil compra soja cara para moer e fazer ração aqui, depois de exportar soja barata para moer e fazer ração na China. Isso vale para o milho e para outros itens que compõem o cardápio da pecuária, e se explica pela existência dos contratos de exportação válidos para o longo prazo. Um produto cujas vendas foram combinadas na época de preços baixos tem de ser comprado a custo mais alto quando falta no mercado local. Produtores de suínos instalados nas cidades paranaenses calculam que estão tendo prejuízo de até 300 reais em cada animal abatido em razão da alta do preço do milho cultivado nos terrenos vizinhos a suas granjas.
O dólar, sempre ele, também encarece insumos, royalties, sementes, máquinas, fretes e, claro, a gasolina e o diesel usados para levar tudo de um lado para o outro. Quando eventualmente a taxa de câmbio diminui, isso pode reduzir a receita obtida na conversão dos valores exportados, mas a composição do custo dos produtos, determinada antecipadamente, foi definida no período de alta: ou seja, há uma nova pressão inflacionária de curto prazo.
Tudo isso significa que quando o preço internacional de um produto não é interessante ou está sujeito a imprevistos, os agricultores mudam de cultura ou abandonam o negócio. O Brasil importa, ainda que para apenas parte de seu consumo, arroz, feijão e, acredite, banana. Os microprodutores do entorno das cidades não compensam em nada as distorções porque estão submetidos à carestia como qualquer outro cidadão e constituem um elo tão fraco que nem mesmo são inseridos nas cadeias atravessadoras. O governo, por seu lado, amarrou as próprias mãos no combate a esse tipo de inflação com outra decisão desastrada: desde 2019, decidiu desativar a gestão de estoques reguladores de alimentos, uma ideia celebrada no Ministério da Agricultura como um feito que reduziu o investimento direto de dinheiro público no setor agropecuário.
Em 1929, o governo brasileiro comprou e queimou café para tentar sustentar o preço no mercado externo. Quase cem anos depois, o governo está queimando o bolso do consumidor, afetado pelo preço da comida. O agronegócio passou por enorme sofisticação entre um momento e outro, mas continua havendo um lado que tem dificuldade para adquirir o básico e outro em que uma minoria enriquece, desemprega, morde o erário, destrói o meio ambiente, abala as contas públicas, desequilibra mercados, inviabiliza a pequena produção, caloteia dívidas, acumula problemas com o fisco e superfatura sua verdadeira relevância econômica. Mas o marketing do agronegócio e até uma canção sertaneja da dupla Léo & Raphael garantem que o agro é top.
0 comentários:
Postar um comentário