Após a forte reação de ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) à fala de um dos filhos do candidato presidencial Jair Bolsonaro (PSL) - de que bastariam "um cabo e um soldado" para fechar a Corte -, a campanha se apressou para se retratar e buscar reduzir a tensão com a cúpula do Poder Judiciário.
Apesar disso, a hashtag #LimpezaNoSTF disparou entre os assuntos mais comentados do Twitter com postagens de ataque ao principal tribunal do país e críticas ao que consideraram uma reação desproporcional à fala do deputado federal Eduardo Bolsonaro, feita em julho, mas que viralizou no domingo.
Nessa linha, diversas postagens destacaram também falas anteriores de petistas contra o Supremo, cobrando reações semelhantes.
- Diante da troca de declarações que atingiu a mais alta Corte do país, a BBC News Brasil explica abaixo para que serve o tribunal, a importância de sua independência frente ao presidente da República e por que o mandatário não tem poderes para fazer uma "limpeza" em sua composição.
Qual a função do STF?
A função primordial do STF, assim como das cortes supremas de outras nações, é garantir a aplicação da Constituição Federal. Dessa forma, o Supremo tem o poder de anular leis criadas pelo Congresso Nacional ou decretos presidenciais e atos administrativos de qualquer órgão público caso considere que eles contrariem a Carta.
Essa atuação do tribunal está definida no contexto da divisão dos três Poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário) e tem a finalidade de evitar que os governantes ou legisladores eleitos abusem de suas prerrogativas sob o argumento de que representam o desejo da população, explica Estefânia Barboza, professora de Direito Constitucional da UFPR (Universidade Federal do Paraná).
"As cortes constitucionais são pensadas para controlar as maiorias eventuais, porque em momentos de crise os cidadãos em geral e os poderes políticos são seduzidos a violar direitos", ressalta.
Ao proteger a Constituição, o STF tem a importante função de atuar como Poder "contramajoritário", impedindo medidas que desrespeitem os direitos dos grupos minoritários, reforça o professor de direito constitucional da Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro) Daniel Sarmento.
"Vamos supor que o Congresso aprove uma lei proibindo uma religião que tem um pequeno grupo de seguidores. O Supremo tem o poder de derrubar essa lei e proteger a liberdade religiosa desse grupo", exemplifica ele.
Em 2017, por exemplo, o STF suspendeu decreto do presidente Michel Temer que mudava as regras para combate ao trabalho escravo. No entendimento da ministra Rosa Weber, a medida dificultaria a repressão à exploração de trabalhadores, afrontando os direitos constitucionais à liberdade e à dignidade da pessoa humana.
Já em junho deste ano, a maioria da Corte considerou inconstitucional e lei que previa o voto impresso associado à urna eletrônica, por entender que esse mecanismo colocava em risco um direito fundamental: o sigilo do voto.
Em 2014, por outro lado, o Supremo manteve a política de cotas raciais adotada pela UnB (Universidade de Brasília) por entender que a medida não feria o direito constitucional à igualdade - pelo contrário, reparava a exclusão histórica sofrida por negros.
Por que um presidente não pode 'limpar' o STF?
Para que uma corte suprema possa exercer seu papel de coibir o abuso dos demais poderes, seus ministros precisam ter independência. Essa autonomia, no caso brasileiro, decorre da impossibilidade do presidente retirar o mandato de um ministro do Supremo que não lhe agrade, afirma Barboza.
Embora os integrantes das cortes sejam indicados pelo presidente e precisem ter sua nomeação aprovada pela maioria do Senado, o fato de seu mandato ser irrevogável reduz a capacidade de pressão dessas autoridades sobre eles.
Hoje, os ministros do STF têm seu mandato garantido até os 75 anos, quando ocorre a aposentadoria compulsória. Os ministros Celso de Mello e Marco Aurélio atingirão essa idade em 2020 e 2021, respectivamente, o que garante ao menos duas indicações ao próximo presidente. Fora a aposentadoria compulsória, apenas um processo de impeachment por crime de responsabilidade pode destituir um ministro da Suprema Corte, o que nunca ocorreu no país.
Enquanto muitos opositores do PT criticam o fato de o STF ser quase todo formado por ministros indicados por presidentes petistas - Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff nomearam nove dos onze membros da atual composição -, a professora da UFPR diz que isso é do "jogo democrático" e reflete a realidade de o partido ter vencido quatro eleições presidenciais.
"O fato de a maioria dos ministros ter sido indicada pelos governos do PT não impediu diversas decisões desfavoráveis ao partido. Lula não obteve o habeas corpus (em abril) e está preso", pondera a professora da UFPR.
Um dos posts associados à hashtag #LimpezaNoSTF reivindicava "juízes de carreira, sem indicação", em uma crítica ao processo de escolha dos ministros.
Segundo o professor da Uerj Daniel Sarmento, "concurso para ministro do Supremo não existe em país algum do mundo". Ele explica que o STF, por ser um Poder da República, é um órgão político em sentido amplo, não partidarizado, e por isso sua formação passa pelos outros Poderes.
"Os ministros não têm mandato, ficam muito tempo na Corte. A indicação política, que passa pelo presidente e pelo Senado, é um mecanismo de aproximar as visões de mundo dos ministros dos órgãos majoritários (Poderes Executivo e Legislativo) a cada momento", pondera.
"O que a população pode demandar é que se leve muito a sério, na hora da escolha política, é qualificação técnica. Isso é algo que no Brasil vem sendo observado", acrescenta.
Um modelo que se espalhou pelo mundo
Sarmento ressalta que esse modelo de atuação da Suprema Corte predomina hoje no mundo - ele nasce no final do século XVIII nos Estados Unidos e se espalha por outros países em ondas, uma delas a partir do término da Segunda Guerra Mundial (1945) e outra nos anos 80 e 90, período marcado pela queda de ditaduras militares na América Latina e pela derrubada do Muro de Berlim, na Alemanha, que antecedeu o fim de regimes comunistas no leste europeu.
O STF é criado como Corte de controle constitucional no Brasil após a Proclamação da República, em 1989, mas sua capacidade de exercer esse controle é expandida e se consolida a partir da Constituição de 1988, quando mais instituições passam a ter a prerrogativa de levar aos ministros questionamentos sobre a aplicação da Carta Magna.
Durante esse mais de um século de atuação, a Corte sofreu ingerência de governos autoritários.
Após a chamada Revolução de 1930, liderada por Getúlio Vargas, o governo reduziu o número de integrantes de quinze para onze. Já em 1965, um ano após o golpe militar, o Ato Institucional número 2 aumentou a composição para 16 ministros.
Depois, em janeiro de 1969, com base no Ato Institucional número 5, foram aposentados três ministros. No mês seguinte, o número de ministros foi reduzido novamente a onze, com o fechamento das vagas que estavam vazias.
Em julho deste ano, Bolsonaro chegou a dizer que nomearia dez novos ministros, aumentando a composição do STF para 21 ministros, depois que a Segunda Turma do tribunal soltou alguns condenados em segunda instância.
"É uma maneira de você colocar dez isentos lá dentro porque, da forma como eles têm decidido as questões nacionais, nós realmente não podemos sequer sonhar em mudar o destino do Brasil", disse em entrevista à TV Cidade, de Fortaleza.
Segundo Sarmento, aumentar o número de ministros da Corte com objetivo de criar uma maioria alinhada e "dócil" ao governo é uma manobra conhecida como "empacotamento".
"Foi tentada por (Franklin Delano) Roosevelt durante o New Deal (plano de recuperação econômica que teve medidas barradas na Suprema Corte americana nos anos 30), mas ele teve que recuar", ressaltou.
Um caso mais recente no continente ocorreu em 2004, quando o então presidente venezuelano Hugo Chávez elevou de 20 para 32 os magistrados da Superma Corte, recorda Estefânia Barboza.
"Com uma medida dessa você desestrutura toda a democracia", resume ela.
fonte:BBC News/Brasil -reprodução 28/10/18- 10:00hs.
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