Foto: José Cruz/Agência Brasil/reprodução
A Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior), órgão do Ministério da Educação, ignorou suas regras para aprovar um novo doutorado em uma universidade privada.
O órgão autorizou a abertura de pós-graduação em medicina veterinária na Unisa (Universidade de Santo Amaro), em São Paulo, apesar de a proposta ter sido alterada no meio do processo de análise, prática vetada por norma da própria Capes.
Um dos controladores da instituição, o empresário Antônio Veronezi, é ligado aos ministros Onyx Lonrezoni (Casa Civil) e Abraham Weintraub (Educação). Ele defende junto ao governo interesses do setor privado de ensino superior, apontado como prioridade pelo governo de Jair Bolsonaro.
O empresário foi recebido pelo presidente em março e teve encontros com Onyx na Casa Civil fora da agenda, como em 4 de junho. Desde abril, ele foi recebido cinco vezes pelo ministro em seu gabinete e pelo menos dez vezes por secretários do MEC.
A liberação do curso de doutorado ocorreu em junho, após recurso ao presidente da Capes, Anderson Correia. Antes, avaliações feitas por outras duas instâncias do órgão haviam negado o pedido.
Esse recurso final é previsto pela Capes desde 2017, mas o projeto não pode ser alterado. Mudanças no meio do caminho ampararam, por exemplo, a desclassificação de outras propostas. A Capes e o empresário negam irregularidades no processo.
Universidades são obrigadas a ter quatro mestrados e dois doutorados, como prevê a resolução 3/2010 do CNE (Conselho Nacional de Educação). A Unisa só tinha um mestrado até essa decisão controversa.
A aprovação do doutorado se deu associada ao mestrado já existente em veterinária com nota 3, conceito mínimo exigido para o funcionamento. A escala da Capes vai até 7.
O mestrado passou a ter, com essa liberação, a nota ampliada para 4. Assim, a Unisa saiu do alvo de qualidade determinado pelo governo (a maioria dos cortes recentes de bolsas de pesquisa atingiu programas de nota 3).
A análise inicial da Capes entendeu que o projeto do doutorado não era inovador e dependia de docentes colaboradores. A proposta também não atendia à proporção mínima de 70% de professores permanentes.
No pedido de reconsideração, a Unisa alterou então a composição de docentes para se adequar.
Na segunda análise, o CTC (Conselho Técnico-Científico) da Capes ressaltou as falhas de concepção e o veto a atualizações. Essa instância recomendou de novo o indeferimento, que foi questionado em novo recurso e, por fim, acabou revertido.
Em nota, a Capes defende que não houve alterações por parte da universidade, mas "esclarecimentos em relação às propostas do programa, como a possibilidade de exclusão de docentes em tempo parcial".
A portaria 161 do órgão proíbe descaracterização do conteúdo original e faz apenas uma exceção para "casos de incorporação de documentos originários de diligência de visita", que não foi o caso.
Alterações basearam a recusa, por exemplo, de iniciativas da USP e UFABC, cujas deliberações em 19 de junho, mesma data em que foi aprovado o da Unisa.
A criação de doutorados ligados a mestrados com nota mínima é tratada como exceção pela Capes. Casos como esse ocorreram, até a aprovação da Unisa, sete vezes desde 2017, mas sempre em decisões do CTC e não no último recurso.
Sem comentar o caso específico, o ex-presidente da Capes Abilio Baeta Neves (1995-2002 e 2016-2019) explica que o recurso direcionado à presidência assegura às instituições uma análise em instância superior, mas alterações no projeto não são permitidas.
"O pedido de revisão deveria apontar equívocos ou no tratamento dos dados ou no cumprimento dos próprios termos estipulados no documento de área", diz. "Desde o início sabe-se que não pode mudar o projeto, porque aí é outro pedido."
Veronezi, da Unisa, diz que não tentou interferir no processo e que esteve na Capes, durante o período de análise apenas para expôr o novo bom momento da universidade —isso estaria sendo ignorado pelos avaliadores.
"Eu aproveitei que conhecia o Anderson [presidente da Capes], não tenho nenhuma outra relação com ele, disse para ele da dificuldade que estava havendo no curso de pós-graduação, que a reitora me disse que ia e voltava, ia e voltava. Falei: 'Olha, Anderson, vai, passa lá e vê a realidade da instituição'", disse ele, que relatou ter ido algumas vezes à Capes.
A convite, Anderson Correia visitou a universidade no dia 5 de abril. Questionado sobre os encontros na Capes, o órgão informou inicialmente a ocorrência de uma reunião, em fevereiro. No dia seguinte, corrigiu a data para julho.
Antônio Veronezi tem estreita relação com Onyx Lorenzoni, que já o indicou a um prêmio na Câmara em 2017. O empresário tem trânsito livre no governo Jair Bolsonaro desde a transição, quando conheceu Weintraub e Correia.
Onyx o indicou, na transição, para influenciar a composição do MEC. Ele chegou a ser barrado em reunião onde estava o ex-ministro Ricardo Vélez Rodríguez.
Na ocasião, o atual ministro da Educação e seu irmão, Arthur Weintraub (assessor especial de Bolsonaro), intervieram pelo empresário. "Eles fizeram a apresentação pura e simplesmente porque eu era desconhecido", diz Veronezi.
O empresário tem rede negócios que inclui o grupo General Shopping. No governo, ele atua como interlocutor de entidades representativas de empresas do ensino superior.
Veronezi tem sido ouvido para a definição de autorregulação do ensino superior. Foi dele a ideia de programa que aumenta a nota de faculdades que atendam alunos de educação básica.
Ele ressaltou que outras tentativas de criar o doutorado foram recusadas injustamente. Negou ter feito pedidos aos ministros e disse ainda que a Unisa não teve benefício financeiro com a decisão.
A Capes disse que a comissão responsável pelo parecer final é escolhida com critérios definidos em portaria. A reportagem conversou com um dos pareceristas, que negou ter recebido orientações. O MEC e Casa Civil não responderam aos questionamentos. A Unisa não se manifestou.
fonte:Folhapress/24/11/2019 - 16h:25min.
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