Foi a busca das nuances que marcaram a personalidade do monge alemão que motivou a historiadora australiana Lyndal Roper a se dedicar a anos de pesquisa para escrever 'Martinho Lutero - Renegado e Profeta'.
Foi em 31 de outubro de 1517 que o monge agostiniano Martinho Lutero (1483-1546) iniciou um processo que mudaria decisivamente o mundo ocidental. Naquele dia, ele afixou 95 teses religiosas à porta da igreja pertencente ao Castelo de Wittenberg, pequena cidade universitária da Alemanha. Tratava-se de um libelo contra a Igreja Católica, corajosamente desafiada por Lutero, cujos ataques verbais contra a autoridade papal chegaram a polarizar o continente europeu. Nascia ali o movimento conhecido como Reforma Protestante, do qual se originaram as denominações evangélicas de hoje. No ano seguinte, em Augsburgo, o monge era submetido a interrogatório por ordem do papa Leão X. A excomunhão não tardou.
Lutero, no entanto, era uma figura nada destemida - ao contrário: com muitas falhas e temores, vivia atormentado por dúvidas e, ainda que crente fervoroso, conseguiu, com suas críticas, eliminar o conceito de pecado que envolvia a sexualidade humana. Foi a busca das nuances que marcaram a personalidade do monge alemão que motivou a historiadora australiana Lyndal Roper a se dedicar a anos de pesquisa para escrever Martinho Lutero - Renegado e Profeta, que a Companhia das Letras acaba de lançar com o selo da Objetiva.
"A Reforma de Lutero rompeu definitivamente a unidade da Igreja Católica, e pode-se atribuir a ela até mesmo o início do processo de secularização no Ocidente, na medida em que o catolicismo perdeu seu monopólio em grandes áreas da Europa", escreve ela. "E seria difícil imaginá-lo no papel de revolucionário. Prestes a completar 34 anos, Lutero era monge fazia 12, tendo subido na ordem agostiniana e ocupado o cargo de administrador e professor universitário. Não tinha publicado quase nada, e sua experiência em escrever para o público se restringia basicamente a teses para debates, trabalhos de exegese e redação de sermões para colegas preguiçosos. Embora a reação da Igreja tenha sido lenta, as Noventa e Cinco Teses tomaram a Alemanha como um furacão. O número de leitores foi imenso, tanto laicos quanto clericais. Em dois meses, elas eram conhecidas em toda a Alemanha, e logo mais o seriam no exterior."
Especialista em história da Reforma e do início do período moderno na Alemanha, Lyndal buscou entender o pensamento de Lutero, homem cujo humor maravilhosamente grosseiro (adorava piadas sobre flatulência) ajudava também a entender os meandros da Reforma Protestante - entre suas irônicas observações, destacava-se a crítica contra a adoração às relíquias. Segundo ele, só na Alemanha havia 26 túmulos para apenas 12 apóstolos. Ele era ferino também ao afirmar que, com a madeira que se acreditava ter sido parte da cruz de Cristo, era possível construir um navio de guerra.
A carta que as acompanhava mostrava um tom de notável segurança, até de arrogância. Ela começava de forma obsequiosa e, logo a seguir, condenava categoricamente a negligência do arcebispo em relação a seu rebanho, alertando que, se Albrecht não tomasse providências, 'pode aparecer alguém e, por meio de publicações, silenciar aqueles pregadores' que vendiam indulgências prometendo aos compradores uma redução no tempo que passariam no purgatório. Lutero escreveu uma carta similar a seu superior imediato, o bispo de Brandemburgo, e essas missivas, mais do que a afixação das teses num lugarejo distante como Wittenberg, constituíam a ação que garantiria uma reação. Um dos talentos de Lutero, visível já naquela época, era a habilidade em montar uma cena, em fazer algo espetacular que atraísse a atenção para si."
Sobre sua pesquisa, Lyndar respondeu, por e-mail, as seguintes questões.
Muito foi escrito sobre Lutero. O que a motivou pessoalmente a se dedicar à vida desse homem por mais de dez anos?
Cresci na Austrália e, por um breve período da minha vida, durante minha adolescência, meu pai foi pastor presbiteriano durante alguns anos. Nossa família vivia na casa paroquial, ao lado da igreja, e estávamos à mostra; nossa vida privada dizia respeito a todo mundo. Viver como "filhos do pastor" num subúrbio australiano fez-me perguntar como isto aconteceu historicamente. Queria compreender o que isso significava quando Lutero insistiu que um clérigo poderia se casar, como "a casa do pastor" começou e o que isso significava para sua mulher. E, na Austrália dessa época, a teologia germânica tinha muita influência. O estúdio do meu pai estava forrado do chão ao teto de livros de teologia luterana. Eu o invejava! E, embora ele estivesse em uma igreja calvinista, Lutero também era importante.
Acredito que você leu o máximo possível de obras dele - seus sermões, seus trabalhos teológicos. Mas por que as cartas de Lutero foram mais instrutivas?
Martinho Lutero é um fantástico escritor de cartas. Ele sabia como interagir com as pessoas, como provocá-las ou impressioná-las, como levá-las a fazer alguma coisa. Ele aparece nas cartas como uma personalidade multifacetada. Acompanhei suas amizades se desfazerem, ideias germinarem e crescerem, e como ele lentamente chegou à convicção de que arriscaria sua vida em Worms e desafiaria o Papa diante do Imperador e todos os príncipes reunidos do Império.
Você abordou essas fontes diferentemente de biógrafos anteriores?
Sim. Sou uma historiadora social e cultural, não da igreja. Portanto, não estava interessada em usar as cartas para "provar" o que Lutero fez ou não sabia, ou quando isto ou aquilo "ocorreu". Eu as vi como a expressão de uma personalidade complexa. Busquei ver o que Lutero NÃO diz, o que ele parecia estar sentindo, que palavras usou repetidamente e o que ele disse sobre suas várias doenças, porque, no caso de uma pessoa como Lutero, seu corpo é muito importante. Ele mantinha aberta uma veia na sua perna para acalmar suas dores de cabeça e ele fala muito do seu "Anfechtungen", suas atribulações e experiências espirituais, o que poderíamos entender como depressão ou melancolia.
E quanto ao caráter de Lutero, encontrou alguma coisa nova?
Acredito que a ruptura trágica da sua amizade com Andreas Karlstadt, seu primeiro colega de trabalho e o homem responsável pelo seu doutorado, foi muito mais importante do que imaginava para o caráter de Lutero e até para sua teologia. Quando ele estava escondido, depois da Dieta de Worms, em Wartburg, Andreas Karlstadt, assumiu a liderança da Reforma em Wittenberg. Quando ele retornou, reverteu as reformas de Karlstadt e, quando este defendeu que fossem abolidas as imagens e afirmou que a comunhão era um memorial, não um ritual onde Cristo estava realmente presente nos elementos do pão e do vinho, Lutero se opôs enfaticamente a essa posição. E chegou mesmo a impedir Karlstad de publicar. Mas os dois homens não conseguiam deixar um o outro sozinho: depois da Guerra dos Camponeses, quando Karstadt temia por sua vida, ele retornou a Wittenberg. Lutero abrigou-o no antigo monastério onde havia sido monge e vivia então como um homem casado. Em oposição a Karlstadt, manteve a elevação da hóstia na missa até a morte dele. Foi só então que ele aboliu o ritual.
Lutero cresceu numa cidade mineira, o que moldou sua vida. Que importância tiveram seus amigos e familiares em sua vida?
Eles foram muito importantes e, durante toda a sua vida, Lutero ajudou sua família em Mansfeld a assegurar os seus arrendamentos das minas. Acho que a infância de Lutero numa rústica cidade mineira teve uma forte influência sobre ele, deu-lhe independência, ensinou-o a se defender sozinho e como enfrentar um mundo onde não existia muita deferência.
Lutero deve ter sido um homem muito complexo. Na sua visão, quem era realmente Martinho Lutero, o grande reformador?
Acredito que ele foi um indivíduo extraordinário, com talentos excepcionais. Acima de tudo, tinha o dom da comunicação e da simplificação - sabia como transmitir ideias teológicas complexas com uma imagem. Por exemplo, explicou sua visão do sacramento como sendo o corpo de Cristo, mas também o pão como o ferro, que pode ser, ao mesmo tempo, ferro em brasa. Ele tinha uma coragem extraordinária e uma determinação. E um senso fabuloso de humor. Quem mais conseguiria enfrentar o debate sobre o celibato monástico afirmando em tom de brincadeira que, se você deseja fazer um voto, prometa que não irá cortar o próprio nariz porque é um voto que pode cumprir.
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