foto: Fabio Motta/ Estadão Grupos milicianos do Rio mantêm parcerias com polícias, facções criminosas e igrejas pentecostais, aponta estudo.
As milícias do Rio de Janeiro mantêm parcerias com as polícias, com facções criminosas e com igrejas evangélicas pentecostais, e agora tentam se infiltrar em prefeituras e Câmaras de vereadores, segundo estudo a ser apresentado nesta segunda-feira, 25, pela Rede Fluminense de Pesquisas sobre Violência, Segurança Pública e Direitos Humanos, organização composta por pesquisadores de sete universidades do Rio de Janeiro, entidades da sociedade civil, centros de pesquisa de entidades jurídicas e jornalistas.
O 1º Seminário da Rede Fluminense de Pesquisas sobre Violência, Segurança e Direitos, com o tema “Milícias, grupos armados e disputas territoriais no Rio de Janeiro”, começa às 14h e será transmitido pelo YouTube. Durante o evento será apresentada a nota técnica “Controle Territorial Armado no Rio de Janeiro”, primeiro trabalho da Rede, criada em julho de 2019.
Ao longo de quase um ano, pesquisadores, policiais, promotores, jornalistas, ativistas e especialistas em dados debateram o tema. A nota técnica resultante desse estudo alerta para os riscos que as milícias representam ao Rio de Janeiro e consequentemente ao Brasil.
Grupos milicianos do Rio mantêm parcerias com polícias, facções criminosas e igrejas pentecostais, aponta estudo. © Fabio Motta/ Estadão Grupos milicianos do Rio mantêm parcerias com polícias, facções criminosas e igrejas pentecostais, aponta estudo.
A nota ressalta que as milícias surgiram oferecendo segurança a moradores de áreas até então dominadas por traficantes: “Desde sua origem, os grupos milicianos procuraram se posicionar junto às populações dos territórios onde atuavam com um discurso de escudo em face do jugo do tráfico. Construíram sua identidade como antagonistas do tráfico, valendo-se, para tanto, do fato de que a guerra entre polícia e traficantes era uma fonte permanente de insegurança para os moradores das favelas”, afirma o texto.
Mas as atividades se expandiram e os milicianos passaram a controlar a venda de vários tipos de produtos básicos ou valorizados nas comunidades: “Há registro de atuação de milícias em serviços de transporte coletivo, gás, eletricidade, internet, agiotagem, cestas básicas, grilagem, loteamento de terrenos, construção e revenda irregular de habitação, assassinatos contratados, tráfico de drogas e armas, contrabando, roubo de cargas, receptação de mercadorias e revenda de produtos de diversos tipos e proveniências. Diversamente de outros grupos armados e/ou criminais, as milícias têm como característica sua não especialização. Essa diversificação parece ser um dos grandes propulsores econômicos das milícias e uma vantagem em relação aos seus concorrentes em cada mercado específico”, diz o texto.
A diversificação “garante não apenas acesso a diferentes fontes de recursos econômicos, mas também a possibilidade de atuação variável e flexível a depender de sua rentabilidade circunstancial”. O maior número de fontes de renda permite também maior capacidade de imposição frente aos outros grupos armados do Rio de Janeiro, afirmam os pesquisadores.
Embora inicialmente adversários, milícias e facções criminosas se uniram em algumas áreas do Rio: “Mais recentemente já se observa um processo de simbiose entre tráfico e milícia. Até onde foi possível saber, tal simbiose tanto tem acontecido pela mudança no comportamento dos traficantes, que passam a impor em suas áreas práticas caras à milícia; quanto com a milícia incorporando a seus negócios o mercado do varejo de drogas”, diz a nota técnica.
A atuação da milícia sobre o mercado de segurança, como ocorreu inicialmente, e os demais que passaram a ser dominados decorre da complacência das autoridades públicas responsáveis pela regulação e fiscalização desses mercados, segundo a Nota: “A ‘proteção’ e o provimento de ‘segurança’ são bens públicos que sob nenhuma justificativa poderiam ser negociados privadamente, mas os relatos indicam haver uma delegação ilegal desse serviço público, admitindo-se a ação miliciana como substituta da presença policial. (...) Os serviços públicos de transporte, habitação ou assistência social, assim como seus equipamentos urbanos associados, vêm sofrendo uma verdadeira ocupação pela imposição armada ou o consentimento das respectivas autoridades competentes”, afirma o texto.
Os pesquisadores identificam a ligação entre as milícias e o Poder Público: “O vínculo original das milícias com elites política e econômica locais se desdobra em outro tipo de conexão, com instâncias do Estado. Tal articulação começa pela colaboração discreta e pontual com profissionais da Polícia Militar. Esse, contudo, é um fenômeno antigo e não pode ser encarado como típico das milícias. No Rio de Janeiro, são conhecidas as articulações do jogo do bicho e mesmo de certos segmentos do tráfico de drogas com setores da polícia. Sequer se pode dizer que ocorre apenas no Rio de Janeiro”, afirma o texto.
Consultada pela reportagem sobre a suposta conexão entre policiais e milicianos, a secretaria de Polícia Civil do Rio de Janeiro informou que não comenta estudos que não conhece ou que não sejam oficiais do governo, e informou ter criado uma força-tarefa para combater as milícias (leia mais ao final deste texto).
Os pesquisadores avançam sobre a ligação entre milicianos e políticos: “As ‘relações perigosas’ entre polícia e milícia são apenas a face mais visível e difundida das conexões que ameaçam a vigência do Estado de Direito no Rio de Janeiro. (..) (Os milicianos) parecem se infiltrar em nichos dos poderes executivos (sobretudo em algumas prefeituras) e, cada vez mais, em casas legislativas”, alertam. “Talvez essa expansão dos interesses milicianos a instâncias dos poderes legislativos locais guarde relação com o elevado número de mortes violentas envolvendo candidatos a vereadores no último processo eleitoral municipal, em diversos municípios da Região Metropolitana do Rio de Janeiro. É imperativo monitorar esse fenômeno e buscar medidas para revertê-lo”, segue a nota. “As milícias passariam a atuar não mais como grupos que precisam estabelecer alianças com os poderes instituídos e sim como parte interna e orgânica ao aparelho estatal, submetendo os poderes públicos a seus interesses privados e extralegais”.
O texto descreve um caso de atuação da milícia junto ao Poder Público para acesso a moradias do programa federal “Minha Casa Minha Vida”: “Colhemos relatos segundo os quais um grupo de milicianos funda uma associação de moradores e chega a mobilizar a Defensoria Pública da União para assegurar o acesso de moradores a unidades do programa. Tal articulação impressiona, pois indica a plasticidade da ação dos milicianos, mobilizando famílias para obter domínio sobre um empreendimento construído com verba pública. Revela habilidade em transitar entre o legal e o ilegal, colocando-se, ademais, como porta-voz do direito à moradia”.
Em seguida são relatados vínculos com igrejas: “Igualmente relevante são os relatos sobre conexões entre igrejas de perfil evangélico pentecostal e milícias. Algumas igrejas estariam servindo tanto para a lavagem de dinheiro das milícias como para azeitar sua articulação com políticos. Sem falar do fato de que por meio das igrejas realizam trabalho social, por exemplo, através da distribuição de sopa comunitária. Tem-se notícia de que pastores chegam a abençoar as práticas milicianas, dizendo serem “sagradas” e que “Deus, de tempos em tempos, manda um grupo de pessoas para limpar o mundo do mal”.
Os pesquisadores concluem fazendo uma comparação entre as facções criminosas, habitualmente sediadas em favelas, e as milícias: “Agora não se tem mais como trabalhar com a abordagem simplificadora e falaciosa de que o ‘inimigo’ está nas favelas; pois ele está infiltrado no Estado, nas suas estruturas de poder; ao mesmo tempo em que se apresenta como protagonista no mercado político. É também um novo tipo de empresário, cujo mercado é tudo que puder ser consumido por moradores de favelas e subúrbios; um agente da mercantilização da vida popular. Sem regulação e sem limite, tende a corromper todas as estruturas. É sem dúvida o maior desafio ao estado de direito, à república e à democracia no país”, conclui a nota técnica.
Resposta da Polícia Civil do Rio
Consultada pela reportagem a respeito da suposta aliança entre milicianos e policiais, a Secretaria de Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro afirmou, em nota, que não comenta estudos e pesquisas que não conhece ou que não sejam oficiais do governo do Estado.
A pasta afirmou, no entanto, que “após cerca de 10 anos sem uma política de estado efetiva de combate às milícias, a atual gestão criou uma força-tarefa para coibir este tipo de crime” e que “em menos de um mês já foram realizados diversos serviços de inteligência, investigação e ação, resultando em operações complexas contra as milícias”. Segundo a pasta, as ações não tem prazo para terminar, e “a estratégia é a união de prisões e asfixia, coibindo todas as práticas criminosas de entrada de dinheiro na organização criminosa. Este planejamento resultou no fechamento de comércios, areais, shopping ligados a grupos criminosos, prisões, apreensões de fuzis, pistolas e veículos, fechamento de centrais de gatonet e de distribuidoras ilegais de gás, interrupção de várias construções irregulares e mortes de milicianos em confronto”.
Também consultada pela reportagem, a Secretaria de Polícia Militar do Estado do Rio não havia se manifestado até a publicação desta reportagem.
FONTE: ESTADÃO -26/10/2020 10h:15min.
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