Uma tragédia anunciada – ante um precedente de impunidade –, com motivação ainda indefinida, mas bastante presumível. A execução da líder quilombola Maria Bernadete Pacífico, a Mãe Bernadete, de 72 anos, na noite de anteontem, em Simões Filho, pode estar relacionada com grilagem de terra, especulação imobiliária, interesse industrial e até atuação de grupos ligados ao tráficos de drogas, mas talvez tivesse sido evitada se a execução do seu filho e também liderança quilombola Fábio Pacífico, ocorrida há seis anos, tivesse sido esclarecida, com os culpados identificados e punidos. A morte aparentemente encomendada contra uma minoria oprimida, como ela mesma havia alertado diante de constantes ameaças, se repetiu.
Embora nada seja descartado nas investigações do caso de Mãe Bernadete – assassinada com vários tiros na cabeça, na frente dos netos, dentro da casa onde vivia no Quilombo Pitanga dos Palmares, na Região Metropolitana de Salvador –, o fato dela conduzir lutas por recursos, melhorias e preservação de direitos do povo quilombola, não só no estado da Bahia, mas em todo Brasil, pode ter selado seu destino.
Na sua região em específico, de acordo com o advogado da família, David Mendez, ela carregava consigo uma agenda nada curta de coisas pelas quais batalhava. “Capitaneava uma luta muito ampla, que tinha como antagônicos grandes interesses econômicos. Mãe Bernadete mencionava os fazendeiros porque eram mais visíveis, já que são os primeiros a deixar o território quilombola [em Simões Filho, na Região Metropolitana de Salvador] após o fim do processo de demarcação”, destaca Mendez.
Ele acrescenta, porém, que, para além dos fazendeiros, Mãe Bernadete lutava contra outros agentes. “Para mim, até que haja uma elucidação dos fatos, todo mundo é suspeito. Na região do quilombo, existem empreendimentos bilionários sem dar a devida compensação ambiental, rodovias pedagiadas em área de proteção… São diversos interesses que dona Bernadete lutava contra. Não descarto nada e nem ninguém”, completa o advogado.
Investigação
A Polícia Civil, que investiga o crime, também segue a mesma linha. É isso, ao menos, o que indicou a delegada Andréa Ribeiro, diretora do Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP). Ela destacou em coletiva à imprensa, nesta sexta, mais cedo, que dois homens foram os executores do crime, mas afirmou que ainda não se tem a informação de imagens de câmera de segurança para uso nas investigações.
Horas depois, a Secretaria estadual de Justiça e Direitos Humanos (SJDH) informou que a localidade onde o crime ocorreu era monitorada por câmeras desde 2017, o que pode ajudar na busca pelos executores. “O local recebia rondas policiais permanentes. O Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos (PPDDH) do Governo Federal atua no atendimento e acompanhamento dos casos de risco e ameaça de morte dos defensores”, dizia nota divulgada pelo governo estadual.
Duas semanas antes de morrer, a líder comunitária (que apesar do título honorífico, não era uma ialorixá) havia pedido mais segurança ao Supremo Tribunal Federal (STF), depois de receber ameaças de pessoas ligadas à grilagem e extração ilegal de madeira na região do quilombo.
Sobre a possibilidade dos grileiros serem mandatários do crime, a delegada Andréa Ribeiro afirmou que é mais uma entre as motivações consideradas. “A gente não descarta essa hipótese, assim como não descarta a hipótese de ameaça, ou outras que possam estar relacionadas à atuação do tráfico de drogas na localidade”, garantiu.
Além da Polícia Civil, a Coordenação de Conflitos Fundiários vai participar das investigações, assim como a Polícia Federal (PF), neste caso porque o Quilombo Pitanga dos Palmares está numa Área de Proteção Ambiental (APA).
O território é formado por cerca de 290 famílias e tem 854,2 hectares, reconhecidos em 2017 pelo Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID) do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária.
A comunidade tem um histórico complexo de disputas e conflitos fundiários, e é nesse contexto que o Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos (PPDDH) do Governo Federal, executado na Bahia pela SJDH, afirma atuar na “adoção de medidas, visando à proteção de defensores que tenham seus direitos ameaçados”.
Em nota, a Polícia Federal informou que a Superintendência Regional na Bahia instaurou inquérito policial para investigação do caso. “Salientamos que o homicídio de Flávio Gabriel Pacífico dos Santos [filho de Mãe Bernadete morto em 2017] está sendo apurado em inquérito policial nesta regional. Todos os esforços estão sendo empregados para a devida apuração da autoria dos homicídios e as investigações seguem em sigilo”, lembrou a PF.
O ministro dos Direitos Humanos e da Cidadania, Silvio Almeida, lamentou a morte e informou que equipes da pasta estão vindo para a Bahia para acompanhar o caso. “Determinei o imediato deslocamento das equipes do @mdhcbrasil até Simões Filho, na Bahia. Expresso minha solidariedade aos familiares e à comunidade”, escreveu nas redes sociais.
O Ministério da Igualdade Racial (MIR) vai enviar também uma comitiva para a Bahia para acompanhar o caso, além de convocar uma reunião do grupo de trabalho de enfrentamento ao racismo religioso para tratar do ocorrido. “Uma comitiva liderada pelo MIR, junto aos Ministérios da Justiça e dos Direitos Humanos”, vai “realizar reunião presencial junto aos órgãos do estado da Bahia e atendimento às vítimas e familiares e para garantir que seja garantida a proteção e defesa do território”, anunciou a pasta, comandada por Anielle Franco.
Crime de mando
A investigação do caso de Flávio Pacífico, mais conhecido como Binho do Quilombo, é motivo de desconfiança da família, mesmo com a mobilização das polícias e demais órgãos. Assim como a mãe, Binho era uma liderança do Quilombo Pitanga dos Palmares, mas foi justamente sua atuação que provavelmente motivou sua morte.
De acordo com seu irmão, Wellington Pacífico, na época do assassinato de Flávio, Mãe Bernadete tinha ‘passado a liderança’. Binho foi surpreendido por homens armados na zona rural de Simões Filho, dentro da área do quilombo.
Depois do caso, a Polícia Civil iniciou a investigação que nunca resultou em uma resposta concreta e, há três anos, passou para responsabilidade da PF. Questionada sobre atualizações, a PF só reforçou que “o inquérito ainda está em andamento e segue sob sigilo”. A não resolução, para Wellington, passa uma sensação de impunidade aos mandantes dos crimes.
“Eu queria entender como alguém tem coragem de disparar 20 tiros contra uma pessoa idosa, que estava com seus netos, de 19 e 12 anos, e que só fazia o bem? É crime de mando. Alguém mandou executar minha mãe”, declarou Wellington, inconformado.
“Nós somos perseguidos, as nossas lideranças são mortas. Eu perdi meu único irmão há seis anos e, agora, perco minha mãe da mesma forma, através de execução. E o que há de resposta? Nada. Todo mundo que luta contra esse sistema é eliminado. Minha mãe pediu mais segurança ao STF, através da Ministra Rosa Weber, e mesmo assim foi morta”, complementou.
O pedido de Mãe Bernadete foi registrado em vídeo, publicado nas redes sociais, no qual ela aparece falando diretamente à presidente do Supremo, que fazia uma visita a um território quilombola na Grande Salvador. “Recentemente, perdi um outro amigo e amiga de quilombo também. É o que nós recebemos: ameaças. Principalmente, de fazendeiros e de pessoas da região. É o que nós recebemos. Hoje vivo assim: não posso sair que tô sendo revistada, minha dela casa é toda cercada de câmera, me sinto até mal com um negócio desse”, disse Mãe Bernadete em desabafo para a ministra Rosa Weber.
A presidente do STF, que também comanda o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), lamentou ao saber da morte de Mãe Bernadete, cobrando esclarecimentos.
“Lamento profundamente a morte de Maria Bernadete Pacífico, com quem me encontrei há menos de um mês juntamente com outras lideranças no Quilombo Quingoma, na Bahia. Mãe Bernardete, que me falou pessoalmente sobre a violência a que os quilombolas estão expostos e revelou a dor de perder seu filho com 14 tiros dentro da comunidade, foi morta em circunstâncias ainda inexplicadas. As autoridades locais devem adotar providências para o urgente esclarecimento e reparação do acontecido”, cobrou a ministra, em comunicado.
Em entrevista à TV Bahia, Wellington Pacífico havia sugerido se tratar de, mais uma vez, se tratar de “um crime de mando”. “Minha família está sendo perseguida. (...) Eu não vou sujar minhas mãos de sangue. Eu vou deixar um recado para o ministro Flávio Dino e o governador Jerônimo Rodrigues, que estava com ela até a semana passada: está fácil de resolver esse crime. Eu peço por favor que se faça justiça. Que não aconteça o que aconteceu com meu irmão. É a chance de elucidar os dois casos”, comentou.
“Se a justiça quiser resolver, ela resolve. Eu sei que sou o próximo alvo. Mas eu não tenho medo não, eu só nasci uma vez e vou morrer. Vou continuar lutando pelos meus direitos porque quilombola é resistência”, continuou ele, antes de se reforçar sua indignação com a forma como o crime foi executado. “Você matou uma idosa, descarregou uma pistola no rosto de uma idosa. Você é ruim, um escroto e quem mandou matar é pior ainda. Quem mandou matar é um covarde”.
Possíveis falhas
Segundo o advogado David Mendez, crimes como extração ilegal de madeira na área do Quilombo Pitanga dos Palmares foram alguns dos mais denunciados por Mãe Bernadete, e que renderam a ela ameaças como as relatadas à ministra Rosa Weber, semanas antes de ter a vida abreviada.
“As mais recentes ameaças diziam à extração ilegal de madeira. Lá é uma APA e dentre as muitas brigas que Dona Bernadete capitaneava, ela era uma espécie de delegada da comunidade, com autoridade moral. Então ela não deixava que nenhuma bandidagem ou que nada errado se criasse. Ela batia de frente com facção criminosa, batia de frente com extração ilegal”, comentou o advogado.
Mendez ressaltou ainda que a líder atuava “no vácuo do poder público”. “Caberia a ela esse papel? Uma senhora de 72 anos? Ou caberia à Polícia Militar, Secretaria de Segurança Pública? Porque ela fazia isso no vácuo do poder público”, salientou.
Apesar da medida protetiva, executada pela Secretaria de Justiça e Direitos Humanos, ele comentou que a segurança tinha muitas falhas. “Era uma proteção falaciosa. Como é uma proteção sem Polícia Militar? Sabe como era a proteção? Uma viatura ia lá em horário indeterminado, às vezes de manhã, às vezes de tarde, e falava: ‘Oi, dona Bernadete, tudo bem com a senhora?’. Uma proteção para inglês ver”, reclamou.
Fonte: Correio da Bahia - 19/08/2023
0 comentários:
Postar um comentário