MICROBIOLOGISTA NATALIA PASTERNACK CONDENA ATITUDES DE BOLSONARO DIANTE A VACINA CHINESA. CRÉDITOS: DIVULGAÇÃO
O presidente Jair Bolsonaro sofreu mais um revés em suas apostas para o tratamento contra a Covid-19. Nesta sexta-feira 23 foram apresentados os resultados clínicos dos estudos sobre a nitazoxanida (Annita), que o presidente tratou de alardear juntamente com o ministro da Ciência, Tecnologia e Inovação, Marcos Pontes. Resultado: mais um medicamento que está longe de ser a bala de prata da pandemia.
As análises mostram que a medicação apresentou um objetivo secundário, de reduzir a carga viral dos pacientes. Na prática, não resolve o problema do coronavírus.
A microbiologista Natalia Pasternak ressalta a irrelevância clínica e epidemiológica do medicamento. “Não diminui internação, doença grave ou morte e não tem impacto clínicos nem na transmissão”, avalia.
“Gastar 5 milhões dos cofres públicos com um estudo mal desenhado e mal executado durante uma crise sanitária chega a ser um desrespeito com a população, mais ainda quando os resultados são apresentados por instituições oficiais de forma populista”, critica.
É mais um capítulo na politização lançada por Bolsonaro sobre os medicamentos desde o início da pandemia com as propagandas sobre a cloroquina, e que agora também se estende às vacinas.
Depois de declarar que o Brasil não compraria a Coronavac, desenvolvida pelo Instituto Butantan e pela farmacêutica Sinovac, por ‘falta de comprovação científica’, o presidente Jair Bolsonaro disparou que mesmo que a Anvisa aprove o medicamento, o País não efetuará sua compra.
Na ocasião, Bolsonaro novamente atribuiu o novo coronavírus à origem chinesa: “Com a China, lamentavelmente, já existe um descrédito muito grande por parte da população, até porque, como muitos dizem, esse vírus teria nascido por lá”.
Para Pasternak, o presidente presta um desserviço à sociedade com a conduta ‘cientificamente errada’. “Não se trata de uma decisão política. Não é o presidente quem decide se a vacina é boa pra população; ele não tem competência para falar sobre Ciência, e pode gerar um sentimento de desconfiança que é péssimo neste momento’, afirma. Confira a entrevista:
Carta Capital: Como você a politização da vacina chinesa levantada por Bolsonaro?
Natalia Pasternak: Essa politização da Ciência que tem acontecido durante a pandemia, primeiro com os medicamentos e agora com as vacinas, só serve para gerar uma desconfiança completamente desnecessária na população, num momento em que ela já está cheia de dúvidas, acompanhando testes clínicos de vacinas como se fosse Copa do Mundo, de uma maneira como nunca aconteceu. É até esperado que as pessoas sintam-se inseguras. Mas daí o presidente começa a fazer esse tipo de afirmação, de ‘essa vacina não presta’, ‘essa vacina eu não quero’.
Anvisa não olhará certidão de nascimento de vacina, mas sim testes clínicos para comprovar segurança e eficácia
As pessoas só ficam com mais desconfiança, e isso pode acabar servindo de combustível pro movimento antivacina, que nunca teve força no Brasil do mesmo jeito que tem na Europa e nos Estados Unidos. Ele começa assim, fomentando pelo medo. É gravíssimo que o presidente se posicione dessa maneira, é um desserviço à sociedade, além de uma conduta cientificamente errada, já que não se trata de uma decisão política. Vacina não tem nacionalidade, a Anvisa não vai olhar certidão de nascimento de vacina, mas sim os testes clínicos para comprovar sua segurança e eficácia. Não é o presidente quem decide se a vacina é boa pra população, ele não tem competência para falar sobre Ciência, e pode gerar um sentimento de desconfiança que é péssimo nesse momento.
CC: O presidente citou a necessidade de ‘comprovação científica’ para justificar o cancelamento do protocolo de intenções de compra da Coronavac. Uma vez que todas as vacinas se encontram em fase de testes clínicos, essa conduta faz sentido?
NP: Não, não faz. Primeiro, comprovação científica vai ser dada pela avaliação da Anvisa quando as vacinas submeterem seus resultados de fase 3. Nenhuma vacina terminou essa fase e fez essa submissão. Então, não sabemos se alguma delas é eficaz ou não, todas estão no mesmo momento.
Os acordos bilaterais foram feitos no risco, as empresas estão trabalhando no risco e os governos também. O governo federal firmou um acordo bilateral com a AstraZeneca, ligada à vacina da Universidade de Oxford, nas mesmas condições, no risco, sem ter comprovação científica de que ela vai funcionar, exatamente como é o caso da Sinovac, da Pfizer ou da Johnson. Então, não faz sentido nenhum essa conduta.
Volto a dizer, não faz sentido, mas a gente espera que alguma coisa que o Bolsonaro diga faça sentido?
Outra coisa que não faz sentido é exigir comprovação científica de vacinas, mas não de medicamento. Nós temos um protocolo nacional, inclusive muito disseminado pelo próprio presidente da República, usando a hicroxicloroquina, um medicamento que não só não tem comprovação científica, como tem comprovação que não funciona contra a Covid-19. Mas o presidente recomenda. Volto a dizer, não faz sentido, mas a gente espera que alguma coisa que o Bolsonaro diga faça sentido?
CC: O rito das compras (países sinalizarem pelas vacinas antes da sua comprovação) foi modificado pela pandemia?
NP: Sim, esse rito vem com a pandemia, pela emergência. Nenhuma empresa desse tamanho trabalha no risco. Em uma situação normal, a gente estaria tranquilamente aguardando os resultados da fase 3, ninguém que não fosse da área científica sequer saberia o que está acontecendo com as fases clínicas, porque ninguém acompanha esse processo comumente.
Em uma situação normal, a gente estaria tranquilamente aguardando os resultados da fase 3
Qual a última vez que você se lembra de ter acompanhado algum? Uma das últimas vacinas liberadas aqui no Brasil, a vacina de HPV, alguém lembra de ter acompanhado a fase 3 de seu teste clínico? Então é uma situação inédita. Normalmente, as empresas esperariam terminar todos os testes, isso demoraria mais tempo, seria feito com mais calma, e depois disso é que elas iam patentear, vender, e os governos poderiam comprá-las.
CC: Como você avalia o cancelamento do protocolo de intenções da Coronavac por Bolsonaro?
NP: Eu não entendo de ciência política para te responder com certeza qual a repercussão diplomática disso tudo, mas imagino que não pega bem. Agora, do ponto de vista científico, volto a dizer, vacinas não têm nacionalidade. E se a gente tem oportunidades de fazer bons acordos bilaterais, deveríamos aproveitá-las.
A gente não vai vacinar 200 milhões de pessoas com uma única vacina
A gente tem um acordo bilateral com a AstraZeneca, que garante alguns milhões de doses pra nós a partir da transferência de tecnologia O estado de São Paulo também fez um bom acordo bilateral com o Butantan, e a gente pelo menos aderiu ao acordo internacional da Organização Mundial da Saúde, o Covax, que nos garante acesso a pelo menos mais nove vacinas que fazem parte desse programa. A gente não vai vacinar 200 milhões de pessoas com uma única vacina. Os acordos que permitem que tenhamos acessos a mais vacinas deveriam ser muito bem-vindos.
CC: As vacinas também têm levantado polêmicas sobre a obrigatoriedade. O que temos de dispositivos legais no País a respeito do tema? Como você vê a questão?
NP: A questão da obrigatoriedade foi uma das frases mais infelizes que o presidente disse nos últimos tempos. Ele levantou uma questão que, neste momento, é completamente irrelevante, inoportuna, e só serve pra gerar desconfiança na população. Quando você, do nada, levanta a questão que ‘ninguém vai ser obrigado a se vacinar’, você já induz as pessoas a imaginar que deve ter alguma coisa errada. Se querem me obrigar, é porque não deve ser coisa boa, senão não precisaria obrigar ninguém. Não é nem o momento de discutirmos obrigatoriedade, nem temos vacinas aprovadas. Uma vez que elas forem, a gente ainda vai ter que pensar em escalar produção, armazenamento, transporte, distribuição, campanhas de imunização.
Muito mais importante do que ficar discutindo se vai ou não vai ser obrigatório, seria montar campanhas publicitárias para informar a população sobre a importância e segurança das vacinas. Eu não estou vendo o governo federal nem o governo do estado de São Paulo muito preocupados com essa questão. Ficar com essa disputa de ‘vou obrigar ou não vou’ é completamente irrelevante, além de ser parte de um discurso populista.
A gente não precisou vacinar ninguém a força no Brasil desde a Revolta da Vacina no século passado, não é agora que vamos precisar disso. A gente sempre teve uma população extremamente favorável às vacinas, que as entendem como um direito do cidadão, e não um dever. As pessoas vão aos postos de saúde porque entendem que elas têm direito de receber ali, gratuitamente, uma vacina, além do direito de vacinar seus filhos. Mudar isso, essa percepção, gerando desconfiança, é péssimo e pode acabar abalando a confianças nas vacinas como um todo.
A gente não precisou vacinar ninguém a força no Brasil desde a Revolta da Vacina no século passado, não é agora que vamos precisar disso
O momento da gente discutir obrigatoriedade é depois de fazer a lição de casa, depois que a vacina estiver aprovada, distribuída, disponível nos postos de saúde, com a população devidamente informada. Se mesmo assim, depois de tudo isso, não tivermos uma boa adesão ao programa de vacinação, aí a gente pode discutir, o que também não quer dizer que o agente de saúde vai invadir a casa das pessoas com uma seringa na mão pra vaciná-las a força.
Obrigatoriedade quer dizer impor restrições à vida civil, como não poder matricular crianças na escola sem mostrar o comprovante de vacinação, não poder tirar passaporte, não renovar a CNH, tem várias restrições que podem ser impostas e que vão tornar a vacina obrigatória sem ter que coagir ninguém à força. Ninguém vai fazer uma coisa dessas. Isso tem que ficar bem claro porque pode gerar revolta e um sentimento contrário às vacinas. Em relação às leis que temos hoje, o Estatuto da Criança e do Adolescente garante o direito à vacinação, as crianças têm o direito de serem vacinadas.
CC: Após a divulgação dos resultados dos testes científicos, o que dá pra afirmar sobre a nitazoxanida (Annita), apresentado por Bolsonaro como medicamento contra a Covid?
NP: Diante os resultados dos testes clínicos apresentados, o medicamento se mostrou capaz apenas de reduzir a carga viral dos pacientes, um desfecho secundário, sem relevância clínica ou epidemiológica. O desfecho primário foi negativo. Já tínhamos apontado que o estudo não estava dimensionado para avaliar eficácia de intervenção.
Por fim, não houve redução de internação ou morte entre os pacientes e a janela de transmissão da doença é maior dois dias antes até dois dias após os sintomas. Ou seja, o medicamento não diminui internação, doença grave ou morte e não tem impacto clínicos nem na transmissão. Gastar 5 milhões dos cofres públicos com um estudo mal desenhado e mal executado, durante uma crise sanitária chega a ser um desrespeito com a população, mais ainda quando os resultados são apresentados por instituições oficiais de forma populista.
CC: Recentemente, a Anvisa retirou a exigência da retenção de receita para adquirir esse medicamento. Você vê riscos para a população?
NP: O Annita nunca foi um medicamento vendido com receita, ele é de balcão mesmo. A Anvisa só tinha colocado a restrição com a receita justamente pela polêmica, para não acontecer o mesmo que aconteceu com a hidroxicloroquina, que também era um remédio de balcão, e quando teve a corrida para as farmácias, o medicamento sumiu do mercado, deixando as pessoas que realmente precisavam dela, principalmente pacientes de lúpus e de artrite reumatóide, sem o acesso a medicação.
A agência fez isso para evitar que as pessoas, motivadas pelo presidente, façam essa compra sem necessidade. Lembre que as pessoas estavam estocando hidroxicloroquina. Agora, não há riscos em se tomar vermífugos, não é um remédio que fará mal individualmente se ingerido de acordo com as dosagens de bula. Então esse risco não existe, mas sim o da corrida às farmácias, e das pessoas não terem acesso ao medicamento.
CC: Temos agora a confirmação de que o voluntário que morreu, do grupo de testes da vacina de Oxford, recebeu placebo. Isso significa que a morte não tem relação com a vacina? Os estudos seguem dentro da normalidade?
NP: Sim, os estudos estão acontecendo normalmente. As interrupções que acontecem são super esperadas, normais. A questão é que a população nunca acompanhou isso antes, então as pessoas acabam se surpreendendo com situações corriqueiras. Qualquer efeito adverso, grave ou morte vai ser reportado durante um estudo de vacinas, isso é praxe, seja o voluntário do grupo da vacina ou do placebo. Tudo que acontecer com o voluntário durante um estudo de vacina, mesmo que seja um acidente de carro, vai ser reportado para o comitê de avaliação, para então se decidir se há alguma correlação com o medicamento, e se o estudo deve ser suspenso ou liberado para continuar.
Qualquer efeito adverso, grave ou morte será reportado durante um estudo de vacinas, isso é praxe
No caso do jovem médico que faleceu no Rio, já ficou público que ele estava no grupo placebo, ou seja, não há relação com a vacina. O placebo é uma solução inerte, é só realmente pra fazer um grupo controle, pra comparar os dois grupos, um grupo recebe vacina e o outro placebo, e a fase 3 consiste na comparação entre esses dois grupos, você vai literalmente contar quantas pessoas ficaram doentes em cada grupo. E o que se espera? Que tenha mais gente doente no grupo placebo, porque não receberam vacina de verdade, e que no seu grupo vacinado tenha menos pessoas doentes, que é um sinal que a vacina protege as pessoas.
Agora no caso dessa vítima fatal, ele era um médico que estava na linha de frente do atendimento à Covid-19, tratando pacientes e exposto à doença. Infelizmente, se infectou, virou um caso grave e faleceu. Isso teria acontecido mesmo se ele não fosse voluntário nesse processo de vacina. As pessoas voluntárias em testes clínicos estão levando suas vidas e sujeitas a ficarem doentes não só de Covid-19, mas de outras doenç
* Correção – Este texto foi atualizado às 16h para exibir a grafia correta da entrevistada: Pasternak.
FONTE: CARTA CAPITAL - 23/10/2020 -23H:32min.
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