foto:ABR/reprodução
A implantação de uma Linha de Transmissão (LT) de energia elétrica na Bahia está sendo investigada por suspeita de violação aos direitos de comunidades tradicionais de Fundo e Fecho de Pasto situadas em Juazeiro, Curaçá e Abaré, no Norte baiano. O projeto faz parte de uma concessão bilionária adquirida pela ex-estatal Eletrobras — atual Axia Energia.
Essas comunidades são conhecidas pelo seu rico conhecimento do Cerrado e Caatinga, além da criação de animais, coleta e plantio em terras coletivas na Bahia. Já a Axia Energia, que deixou de se chamar Eletrobras, é uma gigante do setor brasileiro de energia e foi privatizada por R$ 33,7 bilhões em junho de 2022, durante o governo de Jair Bolsonaro (PL).
Inclusive, essa recente mudança de nome foi oficializada no último dia 22 de outubro. A escolha em abandonar a denominação "Eletrobras" e adotar a "Axia" também tem efeito estrutural, uma vez que todas as suas antigas subsidiárias, como Eletronorte, Chesf, Eletrosul, Furnas e Eletropar, agora se "fundiram" para a criação da Axia Energia.
A BNews Premium apurou que em março de 2024 — já na gestão de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) —, ocorreu o leilão de 15 lotes quilométricos para construção e, posteriormente, concessão e manutenção de linhas de transmissão e subestações de energia elétrica espalhadas pelo Brasil, somando, ao todo, 6.464 km de extensão.
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Na época, a antiga Eletronorte — subsidiária da Eletrobras — arrematou quatro lotes por 30 anos. Um deles, o lote 5, possui um trecho que cruza a comunidade de Fundo e Fecho de Pasto. A ex-estatal criou uma Sociedade de Propósito Específico (SPE), batizada Nova Era Integração Transmissora, para operar o projeto.
Vale frisar que o lote 5 é considerado um dos mais importantes do projeto. Ele é o maior dos 15 lotes, com 1.116 km de extensão, cortando seis estados (Ceará, Paraíba, Pernambuco, Alagoas, Bahia e Piauí) e com um custo estimado em R$ 2,6 bilhões — o segundo mais caro de todo o projeto.

MPF de olho nas obras da Eletrobras na Bahia
O leilão bilionário (Leilão de Transmissão n° 1/2024) dos 15 lotes de linhas de transmissão partiu da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), em 28 de março de 2024. Seu objetivo principal é transportar grandes quantidades de eletricidade por longas distâncias, com o mínimo de perdas.
As cifras totais do projeto que cruza o Brasil desde a região Nordeste até o Sul do país, superam os R$ 18 bilhões. No entanto, a Linha de Transmissão Bom Nome II - Campo Formoso II, que compõe o lote 5, entrou na mira do MPF no último dia 20 de agosto.

O órgão acredita que a implantação, que ainda não foi inciada, apresenta risco para as terras coletivas da comunidade de Fundo e Fecho de Pasto situadas em Juazeiro, Curaçá e Abaré. O trecho tem 372,9 km de extensão e atravessa os estados da Bahia e Pernambuco.
O inquérito civil foi assinado pelo procurador da República Marcos André Carneiro Silva. O MPF quer aprofundar as investigações, agora no âmbito de um inquérito civil público, para esclarecer os impactos do empreendimento e garantir a proteção dos direitos coletivos das comunidades afetadas.
A Linha de Transmissão Bom Nome II - Campo Formoso II começa em Pernambuco, nos municípios de São José do Belmonte, Mirandiba, Salgueiro, Cabrobó e Belém do São Francisco; até atravessar a Bahia pelas cidades de Abaré, Chorrochó, Curaçá, Juazeiro, Jaguarari e Campo Formoso.
Documentos acessados pela BNews Premium mostram que o Lote 5 é considerado estratégico pela Aneel. Seu objetivo é "expandir a rede básica de eletricidade no Nordeste para facilitar novas contratações e suprir a demanda local".
Expansão da Rede Básica da área leste da Região Nordeste de forma a possibilitar o pleno escoamento das usinas já contratadas na Região Nordeste, ampliar as margens para conexão de novos empreendimentos de geração e atender ao crescimento da demanda local", dizia um trecho da apresentação do projeto.
No geral, os 15 lotes que englobam o pacote de concessões irão erguer linhas de transmissão e subestações nos estados de Alagoas, Bahia, Ceará, Mato Grosso do Sul, Maranhão, Minas Gerais, Paraíba, Pernambuco, Piauí, Rio de Janeiro, Rio Grande do Norte, Santa Catarina, São Paulo e Tocantins.

História do Fundo e Fecho de Pasto
As comunidades de Fundo e Fecho de Pasto são reconhecidas como tradicionais por sua forma de uso comum da terra, fundamental para a reprodução cultural, social e econômica de seus modos de vida. Elas começaram a surgir a partir do declínio das sesmarias, pedaços de terras distribuídas pela Coroa Portuguesa a latifundiários durante o período colonial.
Após o declínio do ciclo do açúcar na Bahia, no século 18, as terras começaram a ser abandonadas, e trabalhadores dos latifúndios passaram a viver na terra. Os territórios se consolidaram a partir do desinteresse econômico pelo sertão baiano nos séculos 19 e 20.

Ao longo dos anos, a atividade rural passou por gerações de camponeses. A partir de 1970, com a expansão do agronegócio no interior da Bahia, começaram os avanços ilegais de terra em direção aos territórios quilombolas e de Fundo e Fecho de Pasto.
Além de criarem os animais soltos em terras coletivas, coletam frutos e plantam roças. As terras coletivas são chamadas de fecho, daí o nome Fundo e Fecho de Pasto. Essas comunidades cercaram as plantações e deixaram os animais, especialmente o gado solto.
Os conflitos envolvem grilagem das terras comunais, adulteração de documentos de posse e uso de violência para intimidar as pessoas oriundas das comunidades. De acordo com organizações que atuam em defesa dos agricultores, existem cerca de 1,5 mil comunidades de Fundo e Fecho de Pasto na Bahia.
Reconhecimento
De acordo com a Rede Cerrado, essas comunidades estão na contramão do atual modelo de produção agropecuária que tem forte relação com a monocultura e com a concentração de terras, o pastoreio segue como base da subsistência de muitas pessoas que vivem no Cerrado e na Caatinga ligadas por laços de cumplicidade e parentesco.
Elas são reconhecidas pelo governo federal devido à sua importância, sobretudo, em relação à criação de animais em área comum, o que sempre contribuiu para a preservação do Cerrado e Caatinga, regiões onde essas comunidades estão localizadas.

Os modos de vida dessas comunidades estão diretamente ligados à terra e ao bioma onde vivem. Eles desenvolvem atividades como a criação livre de animais de pequeno porte, principalmente cabra e bode, e de gado — que se alimentam da própria vegetação nativa — como alternativa a uma agricultura em uma região marcada pela seca.
Além disso, elas compartilham uma área sem cercamento. Cercas, nessas áreas, só para proteger os lotes de plantações — que são cultivados essencialmente para o consumo das famílias — e os pequenos animais, como as galinhas, de outros maiores.
Assim como outros povos e comunidades tradicionais, o dia a dia desses camponeses se faz na luta pelo direito à terra, na manutenção do seu território e no direito de produção e reprodução da sua cultura.
O que dizem os envolvidos
A BNews Premium questionou a Aneel e a Axia Energia sobre o projeto. A Aneel, no entanto, não respondeu. Já a Axia destacou que já iniciou o processo de consulta livre, prévia e informada que "integra a política de relacionamento da empresa com comunidades tradicionais".
Para as comunidades de Fundo e Fecho de Pasto, as etapas de consulta sobre o estudo de impacto e as medidas de mitigação já se iniciaram, com parceria e alinhamentos com os órgãos do estado da Bahia, o Ministério Público Federal e representantes comunitários, assegurando um processo de diálogo adequado às expectativas e às tradições dessas comunidades", destacou a Axia em nota enviada à BNews Premium.
A empresa destacou que os diálogos com o governo da Bahia tem o objetivo de avançar no processo com respeito e diálogo, alinhando as etapas de licenciamento às expectativas comunitárias, reduzindo impactos e fortalecendo a transparência nas relações.
Nesse sentido, a Axia informou que "os diálogos com o MPF tem sido construtivos e vem contribuindo para uma solução com o devido cuidado técnico, social e cultural necessário".
FONTE: Thiago Teixeira/Bocão News/Metrópoles - 02/11/2025
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