sexta-feira, 6 de outubro de 2023

Ex-Bahiatursa pagou quase R$ 2 milhões para festival gospel a produtora de fachada

                                        Realizado pelo governo do estado, Canta Bahia recebeu patrocínio irregular da Sufotur. Crédito: Divulgação

O Canta Bahia é um fenômeno de sucesso no universo gospel. A última edição, realizada sexta e sábado passados em Feira de Santana, reuniu aproximadamente 80 mil pessoas atraídos pelos dois dias de shows com astros do naipe de Bruna Karla, Cassiane, Mizael Mattos, Eli Soares e Sandro Narizeu, todos bastante conhecidos pelos fãs da música de louvor e adoração. Até o governador Jerônimo Rodrigues (PT) apareceu no primeiro dia de evento, ao lado de uma trupe de auxiliares. Até aí, tudo dentro do script, assim como nas duas etapas anteriores - uma em Salvador no início de julho e outra em Camaçari no fim de agosto. A questão é o que está fora dele.

Embora seja realizado pelo governo do estado, o festival gospel recebeu a título de patrocínio R$ 1,83 milhão pagos pela Superintendência de Fomento ao Turismo (Sufotur) através de duas parcelas de R$ 916,2 mil para a S E Entretenimento, segundo dados do portal de transparência da Secretaria Estadual da Fazenda (Sefaz). Acontece que o CNPJ informado pertence à empresa JF Soluções Hospitalares, cadastrada na Receita Federal como o nome de fantasia S E Sport, cujas atividades econômicas declaradas nada tem a ver com eventos musicais ou artísticos. Basicamente, tem como ramo principal o comércio varejista de produtos médicos e ortopédicos.


                          CNPJ da S E Sport prova que empresa atua no comércio de produtos médicos. Crédito: Reprodução

Como atividade secundária, a empresa se apresenta como atacadista de medicamentos, instrumentos cirúrgicos, próteses, produtos e equipamentos médicos e odontológicos, cosméticos, perfumes, artigos de higiene e material de limpeza. Ainda de acordo com o cadastro da Receita, o portfólio descrito por ela inclui também transporte rodoviário de carga, locação de veículos com motorista e aluguel de aparelhos hospitalares, entre outros serviços similares. Não há quaisquer referências à produção de eventos ou captação de patrocínios para projetos relativos à arte, cultura e música gospel que justifiquem, mesmo que indiretamente, o repasse de quase R$ 2 milhões.

Mas o ramo de atuação não o único problema que ronda a S E Sports. Na verdade, é o menor deles. A empresa tem como endereço declarado a rua Doutor Aloisio Prata, número 84, centro de São Felipe, cidade do Recôncavo com pouco mais de 20 mil habitantes vizinho a Santo Antônio de Jesus. Contudo, trata-se de um imóvel residencial que não pertence ao sócio-administrador da S E, Jossellek Ferreira dos Santos, nome desconhecido pelos moradores da rua consultados pela reportagem, que garantiram ainda jamais terem visto a empresa na via.

No cadastro da prefeitura, ela consta como se estivesse baixada, ou seja, excluída da lista de CNPJs em operação, seja por pedido do próprio dono ou por decisão da Receita após cinco anos sem prestar as informações solicitadas, embora no Fisco ela constasse como ativa até ontem. A última tentativa de localizar algum dado concreto sobre a S E Sport era por meio do contato telefônico, com DDD de Salvador, apresentado por ela no cadastro do Fisco (71-3265-0310). Porém, a ligação foi automaticamente direcionada ao serviço de mensagem de voz, com a seguinte informação: "Este número de telefone não existe". O que reforça a tese de que se trata de uma empresa de fachada.



Empresa que captou patrocínio para o Canta Bahia não existe no endereço cadastrado no centro de São Felipe. Crédito: Reprodução


Excesso de projetos e eventos desconhecidos

Os fantasmas da Sufotur, órgão que herdou a estrutura da extinta Bahiatursa e foi criado no início do governo Jerônimo, não se restringem apenas à empresa beneficiada com o patrocínio para o festival Canta Bahia. Uma pesquisa detalhada nos repasses da superintendência revela dezenas de ações desconhecidas pelo trade turístico do estado. Entre os quais, o projeto Turismo Inteligente, que de abril a julho deste ano recebeu R$ 840 mil para três etapas de R$ 280 mil cada, todas realizadas em Salvador. A primeira em dezembro do ano passado. As demais de 16 a 21 de fevereiro e de 3 a 8 de abril de 2023. Entretanto, nenhuma iniciativa concreta com tal nome aparece nas buscas em redes sociais ou no próprio site da Sufotur.

A empresa que captou o patrocínio para o projeto foi a Brilho Estrelar, que figura no grupo das 20 maiores recebedoras de verbas da ex-Bahiatursa e está instalada no edifício Senador Dantas, prédio comercial localizado na rua Visconde do Rosário, no Comércio. A empresa é ligada a outras três que também estão time de grandes destinatárias de recursos da Sufotur, todas suspeitas de integrarem um cartel de produtoras denominado "O Consórcio" e denunciado em 11 de agosto pelo radialista e apresentador Mário Kertész, da Rádio Metrópole, com base em relatos feitos por um produtor de eventos que teve o nome preservado.

O CORREIO entrou em contato com a Secretaria de Comunicação Social do Estado (Secom) para pedir esclarecimentos sobre o repasse de patrocínio para um evento do qual o governo da Bahia se posiciona como realizador, assim como questionar se a gestão havia sido informada de que a empresa beneficiada com a verba não existe de fato e atuaria em segmentos sem qualquer conexão com a indústria de eventos e ou o setor de turismo, mas não obteve resposta até o fechamento desta edição. A Sufotur também foi contactada para comentar sobre os indícios apontados, por meia de sua assessoria de imprensa, mas não respondeu até a noite de ontem.

Órgão virou duto para irrigar eventos sem apelo público

O levantamento nas contas da Superintendência de Fomento ao Turismo mostra que, além de irrigar empresas de fachada e projetos desconhecidos, o órgão se transformou em um duto por onde escoam repasses milionários para eventos musicais com pouco ou nenhum apelo público, sem destaque na cobertura da imprensa, salvo por pequenos blogues patrocinados com verbas do estado, e visibilidade zero nas redes sociais. Nessa seara, a Tamy, outra produtora do Top 20 da ex-Bahiatursa em 2022 e 2023, desponta pela quantidade de pagamentos recebidos nos últimos dois anos.

Somente o projeto Baile de Todas as Cores recebeu sete repasses de setembro de 2022 a julho deste ano que totalizam cerca de R$ 900 mil. Curiosamente, a cota de patrocínio teve salto exponencial de valor durante o período, praxe constatada ainda nos cachês pagos para a artistas bancados pela Sufotur no Carnaval e festas juninas. De inícios, os primeiros repasses foram de R$ 90 mil, depois subiram para R$ 95 mil e R$ 111 mil. Nos dois últimos, contudo, o montante subiu para R$ 160 mil.

Os projetos cujo nome faz referência a cor foram uma constante na lista da Tamy, empresa supostamente ligada à Brilho Estrelar e sediada, segundo a Receita Federal, em uma sala do Senador Dantas que está desocupada e colocada para aluguel, a mesma onde deveria funcionar a Estrelar, conforme reportagem publicada pelo CORREIO em 19 de setembro. A busca no site de transparência da Sefaz aponta pagamentos para duas edições do evento Meu Colorido é Musical.

O primeiro, realizado em Salvador no dia 29 de janeiro de 2022, recebeu R$ 80 mil em março passado. O outro, que não traz a data, foi beneficiado com quase o dobro: R$ 150 mil. Há ainda outro projeto com nomenclatura similar, Setembro Colorido, favorecido com R$ 100 mil. Quando não usa cor, a Tamy recorre a flor. Caso do evento Flores Musicais, ocorrido na capital em 29 de janeiro deste ano, de acordo com o resumo do contrato de R$ 155 mil disponibilizado no portal de transparência do governo.

Primeira do grupo de produtoras com o maior volume de repasses da Sufotur de janeiro de 2022 a setembro deste ano, a Mais Ações Integradas também tem aparece na relação de projetos desconhecidos, fora os eventos sem conexão com as atribuições do órgão, ou seja, estimular o turismo. Entre os quais, o Carnaval do Turista, realizado durante o período da folia de Momo em Salvador, embora não seja informado de que realmente a iniciativa se trata. Por ela, a empresa foi patrocinada em R$ 380 mil, pagos no último dia 11 de abril.

Em todos os projetos citados acima, os valores foram repassados por contratos sem licitação, termos de reconhecimento de débito e indenizações por serviços prestados e não contratados formalmente. O excesso de dispensa de processos licitatório e repasses por acordos de boca já causaram problemas para o chefe da Sufotur, Diogo Medrado, junto ao Tribunal de Contas do Estado desde os tempos em que ele comandava a Bahiatursa, como prova auditoria realizada pela corte nas contas do órgão referentes ao exercício de 2019.

Ex-coordenadora da Bahiatursa teve empresa favorecida

Apesar de novata entre as empresas com maiores recursos recebidos da Sufotur em 2023, a Realiza Eventos tem uma particularidade em relação às demais. Entre os nomes que aparecem em seu quadro societário, está o da produtora Carla Macedo Gatis. Em 11 de setembro de 2019, ela foi nomeada para o cargo de coordenadora da Diretoria de Operações Turísticas da então Bahiatursa, departamento comandado por Paulo Vital Simoni, braço-direito de Diago Medrado na superintendência. Atualmente, ela não pertence mais aos quadros do órgão, mas é abastecida pelos recursos dele.

No último dia 3, a Realiza recebeu nada menos que R$ 1,19 milhão em patrocínio para o Encontro Estadual de Líderes Baianos 2023, evento organizado em agosto deste ano no Gran Hotel Stella Maris. O evento, conforme noticiou a Secretaria de Educação do Estado, reuniu cerca de 160 estudantes da rede pública para troca de experiência e discussões acerca de políticas públicas educacionais para a juventude.


Fonte: Jairo Costa Jr./Correio da Bahia - 06/10/2023 09h:25

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