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A mestra em direito agrário, advogada popular e assessora jurídica na organização Terra de Direitos e na Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq), Vercilene Francisco Dias, 30 anos, é uma das profissionais que participou da elaboração da peça jurídica contra supostas violações aos direitos dos quilombolas por parte do governo federal, que hoje tramita no Supremo Tribunal Federal (STF).
Entre os casos denunciados estão a falta de assistência médica, de acesso a materiais preventivos contra a Covid-19 e de soberania alimentar aos quilombolas e seus descendentes.
Sem opções para o escoamento da produção em suas comunidades e com problemas no acesso às políticas públicas voltadas à agricultura familiar, muitos quilombolas têm sofrido com a escassez de alimentos durante a pandemia da Covid-19. De acordo com eles, os principais motivos são a falta de renda motivada por vetos de verbas às comunidades e as baixas perspectivas de comercialização de suas produções no campo.
O documento sob apreciação no Supremo, construído de forma coletiva por advogados, organizações de direitos humanos e entidades da sociedade civil, denuncia as condições que afetam as comunidades quilombolas. A previsão para o ano que vem é que a situação se agrave.
Ao Metrópoles, Vercilene descreveu um pouco da sua trajetória e explicou que o objetivo da ação que tramita no STF como Arguição de Descumprimento de Preceito Fundametal (ADPF) com pedido de medida liminar é contestar o Estado pela sua omissão em assegurar a vida e a saúde da população quilombola.
“Nossa expectativa é impedir que os direitos fundamentais quilombolas continuem sendo violados. Os quilombolas já tinham pouco acesso às políticas públicas e, após a pandemia, o cenário se agravou. Os projetos de lei com temas da agricultura familiar foram vetados pelo presidente Jair Bolsonaro. Grande parte produz para subsistência e comercializa os ingredientes excedentes”, explicou a advogada.
“Queremos os direitos básicos e fundamentais a essas comunidades. O direito de não serem despejados de seus territórios por reintegração de posse, acesso à alimentação e à saúde. Além de um plano de combate aos efeitos da pandemia nos territórios quilombolas. Estamos nessa esperança”, destacou.
Descendente de kalungas
A advogada nasceu no povoado Vão do Moleque, uma comunidade Kalunga localizada na região da Chapada dos Veadeiros, em Cavalcante (GO). Ela é a segunda de seis filhos de um casal. Mas, como os pais de Vercilene se separaram, ela possui mais dois irmãos por parte de mãe e outros cinco por parte de pai. No total, são 12 irmãos.
Ainda criança, aos 5 anos de idade, ela deixou a casa dos pais pela primeira vez e foi morar com os padrinhos, em um vilarejo no Tocantins, para frequentar a escola. “Foi quando eu e a minha irmã mais velha saímos de casa. Era muito difícil porque o meu pai não tinha como ajudar financeiramente nas despesas, mas os meus padrinhos me adotaram como filha e me deixaram ficar lá”, contou a advogada.
Em meio às lembranças, encontrando o que achava pertinente relatar sobre a sua história, Vercilene disse que uma das primeiras memórias que tem da infância são discussões da família com um coronel da região, que se dizia dono das terras e ameaçava expulsá-l0s.
Já com 11 anos, ela foi morar na casa de um fazendeiro no município de Arrais (TO) e fazia trabalhos domésticos para estudar no outro período. Aos 14, ela pediu para voltar para casa e continuar os estudos. Foi quando viu a oportunidade de cursar o ensino médio em Aparecida de Goiânia (GO), onde uma tia morava.
Veja fotos da advogada quilombola e da terra onde nasceu:
Certa vez, ganhei de presente uma dupla de soldadinhos. Meus padrinhos explicaram que eles eram bons e puniam pessoas más. Aquilo fez despertar o meu interesse por justiça e coloquei na cabeça que também queria ser soldado para prender o coronel que ameaçava a minha família. Já na casa desse fazendeiro em Arrais, tive contato com a filha dele que cursava direito e decidi que faria o mesmo curso para ajudar as pessoas
VERCILENE FRANCISCO DIAS, ADVOGADA QUILOMBOLA
“A gente nunca anda sozinho”
Após concluir os estudos, Vercilene prestou vestibular, aos 21 anos, para direito na Universidade Federal de Goiás (UFG). “Na época, a universidade implementava uma política de cotas para negros e quilombolas, o programa UFG Inclui. Me inscrevi e passei na primeira prova. Fiquei muito emocionada e nem acreditava no que havia conquistado. Tive muito orgulho da minha caminhada”, contou.
O início da vida acadêmica, contudo, não foi fácil. “Entrei na faculdade de direito e não sabia nem o que era Constituição. Além de mim, havia apenas mais um aluno negro na sala. Estava sempre muito só e sentia o preconceito na pele”, recordou.
Nesse momento difícil, ela recebeu apoio de Raimunda Montelo, amiga dos parentes do quilombo, que passou a considerar como uma terceira mãe. “Raimunda é uma mulher negra, forte. Psicóloga por formação e militante por profissão, que me ensinou muito. Me ofereceu um salário para ajudá-la nos afazeres domésticos, introduziu noções da identidade negra e me deu um lar”, destacou Vercilene.
No 10º semestre de curso, em 2016, prestou o exame da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e foi aprovada. Em seguida, entrou no mestrado de direito agrário também na UFG. Mas faltava colocar a teoria em prática e concretizar o objetivo inicial, que era ajudar os quilombolas. Em 2018, começou a trabalhar como assessora jurídica na Terra de Direitos, organização com sede em Curitiba (PR), e se mudou para o Distrito Federal.
Agora, o maior desejo da advogada é ajudar a família e o povo do território quilombola. “A minha vida toda foi baseada nessa luta, tanto nas questões fundiárias como nas questões culturais”, disse. “Contei com muita ajuda na minha trajetória. Minha vó dizia que eu era uma peça dura. Acredito que a gente nunca anda sozinho e sempre acreditei que chegaria onde almejava”, concluiu.
fonte:Metrópoles - 17/10/2020 10h:50min.
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