segunda-feira, 23 de novembro de 2020

Livro retrata a despedida do jornalista Gilberto Dimenstein, vítima do câncer de pâncreas



Crédito: Bruno Santos / Folhapress -jornalista morreu aos 63 anos.Gilberto Dimenstein

Lançado neste mês pela Editora Record, o livro Os últimos melhores dias da minha vida conta a experiência do jornalista Gilberto Dimenstein, vítima de um câncer no pâncreas, que nos deixou em maio deste ano.

Pelo seu olhar apurado e da jornalista baiana Anna Penido, esposa de Dimenstein, o livro é a última reportagem do jornalista com mais de 30 anos de carreira, cujo tema foi sua própria vivência com a doença. Nesta entrevista, Anna Penido fala sobre o processo de concepção e escrita do livro, sua história com Gilberto que antecede os 20 anos de casamento e conta quem foi o idealizador do site Catraca Livre, autor de diversos livros, projetos e colecionador de prêmios.

Como surgiu a ideia do livro?

Essa é uma das histórias que eu mais gosto, porque no final do ano passado, a repórter da Folha de S.Paulo Ana Estela de Souza Pinto estava fazendo uma reportagem especial sobre o jornal e veio entrevistar o Gilberto sobre a trajetória dele na Folha. Foi aí que ele começou a falar coisas para ela sobre a doença que já estava bem avançada. Ela ficou tão interessada que perguntou se podia ir no dia seguinte para fazer uma matéria sobre a experiência dele com o câncer. Ele não tinha falado publicamente sobre esse assunto com ninguém, só tinha postado alguma coisa nas próprias redes sociais e no Catraca Livre. Aí ele topou. No dia seguinte, ela veio e eles ficaram conversando mais de uma hora. A entrevista saiu no último dia do ano e foi muito impactante, causou muita repercussão, talvez porque era fim do ano e as pessoas param para pensar sobre a vida. Três dias depois, o Carlos Andreazza, editor da Record, ligou para o Gilberto o convidando para transformar aquela conversa em um livro contando o processo que ele estava vivendo. Ele falou que só se chamasse um jornalista para fazer o trabalho junto com ele, e quando eu ouvi aquilo, saí pulando na frente dele “olha, eu sou jornalista, eu posso fazer isso com você”, e ele achou perfeito, porque a gente estava o tempo todo junto e vendo as coisas juntos, então, fizemos esse trabalho a quatro mãos.

Como foi o processo de produção?

A gente começou a gravar no dia 3 de janeiro, dia sim, dia não. Foram mais de 20 horas de gravação. Ele foi contando as coisas, e eram momentos especialíssimos do nosso dia: parar para fazer as gravações, porque ele falava sobre tudo com tanta poesia, dizia que não era algo em vão, que tinha sentido naquilo tudo, e isso se transformou nos nossos maiores rituais durante os últimos dias. A gente já tinha definido tudo, o nome, a estrutura, e eu disse a ele que naquele momento não era ainda a hora de escrever, era hora de viver o livro e eu prometi que depois iria escrever. E assim que ele faleceu, duas semanas depois, eu me tranquei em um chalé na Serra da Mantiqueira e durante um mês e meio transformei todas aquelas gravações no livro. Uma coisa que eu tinha combinado com ele foi contar a minha versão dos fatos, e ele achou que isso ia ser o grande diferencial do livro. No final, tem uma carta para ele, da parte que ele não pode contar mais. No meio disso tudo, como ele era muito imagético, falava muito de paisagens, ele queria que essas imagens pudessem ser retratadas, mas não queria a obviedade da fotografia, então, pediu ao artista plástico Paulo von Poser para vir aqui em casa fazer as ilustrações baseadas em tudo que é retratado nele.

Como foi para você e para a família esses últimos meses com ele?

Gilberto em nenhum momento se desesperou em relação ao câncer porque ele fez essa avaliação e chegou à conclusão de que tinha vivido uma vida muito intensa. Tinha se dedicado fortemente a um propósito que sempre guiou todas as ações. Essa ideia de que ele tinha vindo ao mundo para contribuir com pessoas, para transformar as cidades, defender direitos humanos, e tudo isso, de alguma maneira, ele tinha realizado, e isso o dava muita tranquilidade para avaliar se a vida tinha valido a pena, mesmo que findada tão precocemente. E por ele estar tão íntegro e sereno, nós todos também embarcamos nessa. Como Gilberto falava muito que ele achava que ele ia cedo, que precisava aproveitar cada momento, ele era muito acelerado e era quase como se a gente já soubesse que isso ia acontecer. Não foi uma coisa que a gente passou por aquela fase da rejeição, da revolta. Não. A gente quis aproveitar ao máximo o que tinha a cada dia e aproveitamos. Por isso ele disse que foram os melhores dias da vida dele, porque a gente não desperdiçou um minuto com trivialidades, amarguras, ressentimentos.

Qual o maior legado de Gilberto para a sociedade e para a família?

Gilberto sempre foi um provocador de consciências. Ele sempre teve capacidade de cutucar as pessoas, de questionar suas atitudes, suas incoerências. Isso podia ser um cidadão qualquer, podia ser um empresário que conseguia se envolver com causas sociais, financiar projetos importantes, podia ser um político que toma decisões importantes. Ele dizia que usava a comunicação para empoderar as pessoas e ele realmente usou muito essa competência de mobilizar e provocar as pessoas. Para a família, Gilberto era uma figura muito forte. O olhar dele sempre foi um olhar muito inusitado, para tudo que acontecia à sua volta. Tinha a coisa de cuidar e proteger as pessoas que ele amava. A gente se sentia muito protegido ao lado dele e era, ao mesmo tempo, aquele vulcão de ideias, não parava de ter ideias um minuto. O que fazia a gente também ser criativo e querer fazer coisas importantes. Sempre foi uma inspiração muito grande. Mesmo para mim, antes de conhecê-lo, ele já era um jornalista famoso e eu uma recém-formada. As ideias e a própria forma como ele exercia o jornalismo, de alguma maneira, formatou muito a minha maneira de lidar com a minha profissão. Eu acabei deixando as redações para me dedicar inteiramente às causas sociais, mas sabendo que a comunicação sempre seria uma ferramenta importante para a transformação do mundo, usando-a também para fazer um pouco do que ele fazia, que era mobilizar pessoas.

Como vocês se conheceram?

Um dia eu cheguei em casa da balada de madrugada, liguei a televisão, e Gilberto estava lançando o livro Meninas da noite, em 1992. Um canal estava passando a entrevista com ele falando sobre o livro. E enquanto ele falava, eu pensava: “Meu Deus, ele é um jornalista que faz o que eu quero fazer”. A partir daquele momento, eu lia todos os dias a coluna dele na Folha de S.Paulo, todos os livros dele. Foram muitos anos até que a gente se conhecesse pessoalmente, em 1996, mas foi um encontro muito impactante desde o primeiro momento. A gente, de fato, começou a namorar em 1999. Foram 20 anos cheios de muitas coisas que me fazem agradecer todos os dias por cada minuto que pude conviver com esse homem, o quanto que ele me fez me sentir amada, empoderada, apta para fazer grandes coisas, sempre muito cúmplice. A vida com ele era surpreendente, a gente saía andando pela rua e tudo podia acontecer. Faz muita falta.

Gilberto Dimenstein sempre comentou muito sobre o que acontecia no Brasil e no mundo. O que ele acharia deste momento que estamos vivendo?

Gilberto fala muito sobre isso no livro, porque ele é muito atual. Fizemos ao longo deste ano, então, tudo que ainda está acontecendo já estava. Ele fala sobre responsabilidade dos governantes em relação ao nosso problema de saúde pública com o coronavírus, ele fala muito do quanto ele sofreu com essa polarização, das pessoas se atacarem de forma gratuita apenas por terem opiniões diversas, ele faz até um paralelo, que nas redes sociais viveu o mundo da pancadaria e quando ele ficou com câncer, mudou-se para o universo da gentileza, porque as pessoas se comovem com a doença, todo mundo quer ajudar, todo mundo quer oferecer, desde um livro a um chá, uma reza, um curandeiro, todo mundo quer mandar flores. Então, para ele, foi uma mudança muito brusca, viver em um universo tão árido, tão agressivo e depois, por conta da doença, usufruir do que há de melhor na natureza humana, a solidariedade, empatia e amor ao próximo. Isso foi algo que ele prezou muito.

Qual a importância do jornalismo para você? Imagino que compartilhe um pensamento parecido com o de Gilberto.

Primeiro, nos reconhecemos a partir da nossa missão. Nós dois nos reconhecemos como agentes de transformação da sociedade, isso era o que nos movia, e o jornalismo entrou como uma ferramenta muito potente. O jornalismo, para a gente, sempre foi essa alavanca para que pudéssemos ter mais impacto nas ações que fazíamos para alcançar o nosso propósito. Isso é uma das coisas que realmente mais nos conectava e era muito engraçado porque saímos para trabalhar e, quando a gente voltava, ele dizia as coisas que tinha feito, eu contava os meus projetos, e ele falava “e a rua Rodésia ataca outra vez”. Interessante que a gente tinha essa cumplicidade nas causas, mas Gilberto mesmo falando no livro de toda a dificuldade dele de lidar com sentimentos e com a subjetividade, sempre foi muito romântico, e eu tenho as recordações mais especiais. Não era só aquela coisa dura da luta pela construção de um mundo melhor, mas tinha também as sutilezas da relação afetiva próxima, muito permeada pelos pequenos gestos, e o jornalismo estava nesse grande balaio de sentimentos entre nós.

Qual o sentimento ao lançar o livro?

O momento é um pouco dúbio, porque, de um lado, era um sonho, foi um projeto que a gente gestou junto. Eu dizia que ele foi embora e me deixou grávida de um livro, resultado do nosso amor, mas ao mesmo tempo, colocar esse filho no mundo significa também, de alguma maneira, que ele não vai ser só meu. É igual a um filho quando vai para o mundo, tenho também aquele sentimento de ninho vazio. Ele se foi, agora o livro se vai e aí fico eu tendo que me reinventar sozinha. Então, não é uma coisa tão simples. Mas os retornos têm sido ótimos, as pessoas se sentem tocadas e gostam da leitura. Essas coisas também vão me nutrindo. É o retorno também de quando os filhos fazem suas conquistas e a gente fica satisfeito e orgulhoso por ter contribuído para tudo aquilo.


fonte:atardeonline - 23/11/2020 às 09h:25min.

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