Há oito anos vivendo em solo brasileiro, a ex-consulesa da França em São Paulo Alexandra Loras diz que o racismo no Brasil está 'por todo o lado' e faz vítimas independentemente da classe socioeconômica — ela própria, apesar de se reconhecer 'privilegiada', alega ter sido alvo de discriminação por sua cor de pele em diferentes situações.
"Tenho consciência de que sou privilegiada. Mas isso não significa que não sou alvo de racismo. Quando entro no supermercado, costumo comprar muitos produtos importados e sempre tem um segurança atrás de mim. No shopping em frente à minha casa, percebo como sou observada. Ou quando vou ao clube com meu filho e os sócios me olham com surpresa, pois não estou vestida de branco, como a maioria das babás", conta ela, em entrevista à BBC News Brasil.
Falando sobre João Alberto Freitas, homem negro que foi espancado e morto por vigias na noite de quinta-feira (19/11) em uma unidade da rede de supermercados Carrefour em Porto Alegre (RS), Loras opina: "É o George Floyd brasileiro", em alusão ao americano, também negro, que morreu após ter o pescoço prensado pelo joelho de um policial. Sua morte desencadeou protestos antirracistas ao redor do mundo.
Assim como no caso de Floyd, manifestações também ocorreram em diversas cidades brasileiras após a morte de Freitas, na véspera do Dia da Consciência Negra (20/11). Segundo a polícia, em mais uma semelhança ao caso do americano, ele morreu por asfixia. Os vigias tiveram a prisão preventiva decretada.
Nas redes sociais, um debate foi levantado sobre se ocorreu 'crime de racismo', uma vez que Freitas foi levado para fora da loja após agredir verbalmente uma funcionária. Sobre isso, Loras (que é filha de pai negro e mãe branca) acha que "ele não teria sido espancado e morto se fosse branco".
Jornalista e mestre em gestão de mídia pela Sciences Po, a mais prestigiada escola de Ciências Políticas da França, Loras chegou ao Brasil em 2012 acompanhando o marido, Damien Loras, que havia assumido o consulado geral francês em São Paulo.
Com o fim da missão diplomática, o casal decidiu permanecer no país — e Loras passou a dedicar-se em tempo integral a conscientizar e buscar o equilíbrio étnico-racial dentro de organizações. Hoje, ela é palestrante e consultora em diversidade.
Recentemente, Loras lançou o documentário Inconscientes Revelados, que ela mesma dirigiu. O longa, que tem como ponto de partida a própria experiência pessoal de Loras desde que se mudou para o Brasil, aborda o panorama da atual questão racial brasileira por meio de entrevistas com personalidades negras. Assista ao trailer oficial aqui.
"São 800 mil jovens negros mortos entre 2001 e 2015", diz ela, citando dados da Anistia Internacional. "A cada 12 minutos, uma pessoa negra é assassinada. O Brasil precisa acordar desse conto de fadas da democracia racial", acrescenta.
Confira abaixo os principais trechos da entrevista.
BBC News Brasil - Como a senhora vê o que aconteceu com João Alberto Freitas, espancado e morto dentro de uma unidade da rede de supermercados Carrefour em Porto Alegre?
Alexandra Loras - Infelizmente, não me surpreende. O Brasil vem escravizando, estuprando e violentando milhões de corpos negros há séculos. Foi o país que mais escravizou e o último a abolir a escravidão. O racismo no Brasil é normalizado e está por todo o lado. Negros morrem e viram estatística. Me arrisco a dizer que o caso do João Alberto só ganhou repercussão porque é muito similar ao de George Floyd. Em ambos, o espancamento foi gravado em vídeo. Todo mundo pôde assistir à morte. Restam poucas dúvidas, portanto, sobre o que aconteceu.
Prestei consultoria de diversidade para o Carrefour. Interessante notar que a empresa tem 58% de negros em seu quadro de funcionários e 18% em cargos de liderança. Ou seja, em teoria, estaria preocupada com a diversidade. Mas vemos que não adianta só ter funcionários negros. Falta treinamento. Falta trabalhar a inclusão de forma verdadeira, dentro da cultura empresarial. Também é preciso exigir isso de empresas terceirizadas e fornecedores.
BBC News Brasil - Nas redes sociais, houve debate se o crime foi motivado por racismo. Mesmo sem citar o caso especificamente, o presidente Jair Bolsonaro disse que "existem diversos interesses para se criem tensões entre nosso próprio povo". Qual é a sua opinião sobre isso?
Loras - Se João Alberto não fosse negro, não teria sido abordado. Eu, como mulher negra de classe média alta e diplomada por uma universidade francesa de prestígio, sou seguida e abordada por seguranças dentro de supermercados. Não sou atendida em lojas ou restaurantes. Sou olhada de cima para baixo. Vivo essas micro-agressões e micro-humilhações a minha vida inteira.
Não existe essa história de que o racismo no Brasil é socioeconômico. Se fosse, como explicar que negros como eu continuam sofrendo racismo? O Brasil precisa acordar desse conto de fadas da democracia racial. Os negros morrem por serem negros. Basta olhar as estatísticas.
BBC News Brasil - A senhora já sofreu algum tipo de racismo no Brasil?
Loras - Algum? É o tempo todo. Todos os dias. Sofro racismo quando entro em uma loja de brinquedos e não vejo um super-herói negro nacional, apesar de o Brasil ter a 2ª maior população de negros do mundo depois da Nigéria e a maioria das crianças ser negra; sofro racismo quando ligo a TV ou abro uma revista e não me vejo; sofro racismo quando vou à farmácia e não acho um curativo da minha cor.
Mais da metade da população brasileira se considera negra e isso não se reflete no governo, nas empresas e na mídia. O racismo no Brasil não é nada velado; é escancarado.
BBC News Brasil - A senhora acredita que, por ser estrangeira e de classe alta, sofre menos racismo?
Loras - Tenho consciência de que sou privilegiada. Mas isso não significa que não sou alvo de racismo. Quando entro no supermercado, costumo comprar muitos produtos importados e sempre tem um segurança atrás de mim. No shopping em frente à minha casa, percebo como sou observada. Ou quando vou ao clube com meu filho e os sócios me olham com surpresa, pois não estou vestida de branco, como a maioria das babás.
Nasci e cresci em uma família de racistas. Meus avós e bisavós nunca aceitaram minha mãe branca se casar com meu pai negro. Então, já lido com isso há muito tempo.
O racismo nem sempre se manifesta de modo agressivo. Racismo não é só chamar alguém de 'macaco'. Às vezes, pode ser também sutil — quando você é tratado diferente dos demais só por causa da sua cor de pele.
Uma vez, quando era consulesa da França, participei de um almoço e as mulheres da elite me olhavam torto. Mas passaram a me tratar totalmente diferente quando fui apresentada como sendo consulesa da França.
Nessa época, sentia que era olhada com a mesma fascinação com que olhavam Meghan Markle e o príncipe Harry. Ou seja, como se eu tivesse tido a sorte de me casar com um aristocrata.
Mas penso que meu marido, branco e de origem aristocrática, teve a sorte de se casar comigo. Somos mulheres extraordinárias. Para ter conseguido chegar aonde estamos, ralamos muito. Nos esforçamos para conquistar esses espaços.
São espaços que não são favoráveis à nossa presença, mas faço questão de permanecer neles. É meu ato político. Gosto de desafiar o sistema — e educá-lo estando justamente onde ninguém espera que eu esteja.
FONTE; BBC NEWS/ 24.11.2020 08H;50min.
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