SALVADOR, BA (FOLHAPRESS) - Um encontro com Pelé, uma visita à irmã Dulce e um vencedor do Oscar. São os bastidores da gravação de um filme que resultou numa inesperada conexão cultural entre Jorge Amado e Dorival Caymmi com o cinema americano e o presidente russo Vladimir Putin.
Na casa da família Fraser, em Salvador, essas histórias estão em um diário deixado pela americana Marian Fraser, morta em 2018. Entre setembro e dezembro de 1969, ela foi uma espécie de faz tudo, inclusive atriz, na produção do filme "The Sandpit Generals", uma adaptação do livro "Capitães da Areia", de Jorge Amado.
Lançado em 1937, o romance mostra a vida de um grupo de crianças que vivem pelas ruas de Salvador e precisam roubar para sobreviver, lideradas pelo personagem Pedro Bala. Pouco depois de seu lançamento, 808 exemplares de "Capitães da Areia" foram queimados por ordens da ditadura do Estado Novo. A obra foi acusada de conter propaganda comunista e de ser nociva à sociedade.
Dirigido, escrito e produzido por Hall Bartlett, o filme foi rodado em Salvador e na ilha de Itaparica, mas só fez sucesso -e foi um grande sucesso, mesmo- na União Soviética, exercendo fascínio no imaginário cultural dos russos até hoje. Futuro presidente da Rússia, o jovem Vladimir Putin viu sua infância retratada na tela.
"Afinal, criei-me no pátio, onde a autoafirmação de uma criança se manifesta de maneira totalmente diversa. Viver no pátio e criar-se nele é equivalente a viver numa selva. É muito parecido. No pátio, a vida é livre. A vida na rua é, em si mesma, muito livre. Exatamente como no filme 'The Sandpit Generals'", escreveu Putin em suas memórias.
Figura proeminente da colônia americana em Salvador, Marian Fraser foi atriz de teatro em Nova York, nos anos 1940. Em 1953, casou-se com um baiano de família escocesa, que conhecera num cruzeiro, e veio morar em Salvador.
"Ela fez amizade com o ator John Rubinstein, que é um nome reconhecido hoje em dia em Hollywood. Ele não é ponta, mas é um coadjuvante de respeito", diz o escritor baiano Ian Fraser, neto de Marian, sobre um dos atores do filme, que depois participou das séries "ER", "24 Horas", "Friends", "Law & Order" e "House", mantendo contato com Marian até o fim da vida dela.
O diário de Marian, datilografado por ela em inglês, mostra suas impressões e suas muitas tarefas no dia a dia das gravações.
O filme tem a trilha sonora de Dorival Caymmi, que também faz o papel de John Adam -o equivalente a João Adão. Sua "Canção da Partida", com os famosos versos "Minha jangada vai sair pro mar/ Vou trabalhar, meu bem-querer" tornou-se um sucesso na URSS e já foi regravada diversas vezes em russo.
"Bem na hora em que eu pensei que íamos ver e ouvir Caymmi, tivemos que ir à penitenciária", lamentou Marian em seu diário. Depois, ela conseguiu que Caymmi lhe autografasse alguns discos. Cenas do filme foram gravadas na penitenciária Lemos Brito, local que recebeu presos políticos durante a ditadura militar vigente à época.
Na cena final, uma rebelião com centenas de figurantes foi filmada na porta do palácio da Aclamação, residência oficial dos governadores da Bahia. Bem-recebido na URSS, "The Sandpit Generals" foi proibido no Brasil pela censura.
"A gente assistiu ao filme no estúdio, na Califórnia", conta Puni Fraser, filha de Marian. Puni e a irmã Sandy foram figurantes na produção.
O pequeno primo Jimmie teve participação mais destacada. Na visita aos EUA, em 1971, Puni e Marian foram recebidas pelo assistente de produção Bill Thomas, que tirou uma foto das duas com o Oscar de melhor figurino que ele ganhou por "Spartacus", de Stanley Kubrick.
"The Sandpit Generals" foi estrelado por Kent Lane, no papel de Bullet/Pedro Bala. Seu par romântico foi a bela Tisha Sterling, que participou do icônico seriado "Batman" em 1966.
Mãe de Lane, a atriz Rhonda Fleming era casada à época com o diretor Hall Bartlett. Ela acompanhou as gravações na Bahia e conheceu Irmã Dulce. "Nós fomos ao hospital, onde todo mundo fez perguntas. Ela [Irmã Dulce] nos levou para ver as crianças internadas", anotou Marian.
Entre os brasileiros, atuaram o pianista Aloysio de Oliveira, no papel de um bispo, a cantora Eliana Pittman e o adolescente Guilherme Lamounier, no papel de Cat/Gato. "Eu me lembro que ele era bonitinho", sorri Puni Fraser.
Nos anos 1970, Lamounier seguiu carreira musical, mas na década seguinte sumiu de cena como se fosse um Syd Barrett brasileiro. "Depois do filme, eu lembro de o pessoal dizer que ele tava fazendo sucesso", conta Puni. Lamounier morreu em 2018, aos 67 anos.
Machucado depois de uma cena de luta, o ator Peter Nielsen ficou acamado. Fã de Pelé, soube que o time do Santos estava hospedado no mesmo hotel. A produção do filme foi até o jogador e explicou-lhe a situação. O Rei então resolveu fazer uma surpresa ao fã.
"Pelé foi até o quarto dele visitá-lo. Mas, quando chegou, Peter tinha saído para ir à praia. Quando voltou e soube o que perdeu, Peter ficou maluco", escreveu Marian. No dia seguinte, na Fonte Nova, Pelé quase marcou seu milésimo gol.
"Foi um filme pequeno, não teve distribuição. Acho que foi feito apenas para ser catálogo, pelo que minha avó falava", conta Ian Fraser, dono de uma coleção de mais de 2.500 DVDs.
Ele agora avalia a publicação do diário da avó Marian, com os bastidores que relatam casuais encontros históricos em uma babel artística sem fronteiras, pacífica e multicultural.
Fonte: FOLHA S .PAULO - 08/04/2022
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