Volto ao assunto do reitor da UFPB que, por cotas, ingressou na terceira graduação. Pelo andar da prosa, uma vaga em universidade pública não deve ter custo. É grátis. E a viúva — federal — deve estar com as burras cheias, sobram vagas, os pobres estão todos na universidade e o reitor, "isonomicamente", abocanha uma terceira graduação (escrevi sobre isso aqui).
O Ministério Público Federal (ver aqui reportagem da ConJur) fez uma recomendação para que a Federal da Paraíba revisse o ato. Há um jovem pobre da Bahia (ler aqui) que se preparava para entrar nessa vaga. Um na Bahia e milhões espalhados pelo Brasil...!
Mas a procuradoria federal da UFPB não aproveitou a chance que o MPF lhe deu. Preferiu defender a vaga do reitor. Disse que (ver aqui), se a recomendação do MPF fosse atendida, criariam odioso tratamento discriminatório.
Deixa ver se eu entendi: o reitor pega uma vaga por cota para fazer sua terceira graduação, um jovem pobre da Bahia fica de fora (e qualquer outra pessoa ainda sem graduação) e a procuradoria — também paga com dinheiro público — diz que, se o reitor perdesse a sua terceira graduação, haveria odiosa discriminação? Sim, mutatis, mutandis, é disso que trata a manifestação da procuradoria. É uma isonomia às avessas. Isonomia não é dar ao rico a sua riqueza e ao pobre a sua pobreza — só para registro.
O que parece que não ter sido entendido é aquilo que Anatole France ironizava.
"A majestosa igualdade das leis, que proíbe tanto o rico como o pobre de dormir sob as pontes, de mendigar nas ruas e de roubar pão."
Fica a nítida impressão de que a defesa da UFPB — que inclusive cita texto meu — se baseia em uma coisa que Ferrajoli chama de paleojuspositivismo — o velho textualismo primitivo — em que vigência e validade estão coladas, são a mesma coisa. Ora, é disso que se extrai a caricatura do "proibido cães na plataforma", pelo qual o textualista diria que "então é permitido levar ursos"... porque o que não é proibido é permitido. Não me parece que um órgão público — falo da procuradoria da UFPB, que possui excelentes quadros jurídicos — que se diz autônomo (como a AGU que diz "sou advocacia de Estado e não de governo!") deva fazer esse tipo de interpretação, comportando-se como "advocacia de partido".
Da Colômbia vem um bom exemplo. Em sua Constituição (artigo 126), está posto que juízes e funcionários públicos em geral não podem contratar-nomear familiares das pessoas envolvidas em sua nomeação. O que alguns magistrados fizeram? Contrataram as próprias pessoas envolvidas. Magistrados da Corte Suprema de Justiça designaram ex-juízes que haviam participado dos seus processos de nomeação para cargos no alto escalão do judiciário. Argumento: era (só) proibido contratar parentes dos juízes, mas não os próprios. Genial, não? Textualismo primitivo e ingênuo (quer dizer, ingênuo, mas não tanto!). O Conselho de Estado precisou declarar o óbvio: a nulidade dessa prática.[1] O caso colombiano se parece muito com o caso das cotas do reitor. Não há proibição expressa, diz a procuradoria. Os juízes colombianos também diziam isso...!
Pergunto de novo: o que é odiosa discriminação? O reitor, se perdesse sua vaga, seria discriminado? É isso?
Meus argumentos já foram postos dias atrás. Não vou repeti-los. Já ninguém lê textos de mais de quinze linhas. Apelo, aqui, aos sentimentos republicanos dos agentes envolvidos. Inclusive do reitor.
De todo modo, correndo o risco de "textão", não resisto à seguinte comparação. Se está escrito que cada faminto terá direito a um prato de comida em um determinado bairro, por qual razão alguém poderá furar a fila e reivindicar dois pratos? Ou três? Ah, dirão os "paleojus": é possível porque não está proibido buscar o segundo prato. É isso? Então, quem impedir o sujeito que já comeu um prato de buscar mais um ou dois pratos estará fazendo "odiosa discriminação" do gajo, enquanto a filam por comida dobra o quarteirão?
Lembro do caso Marbury v. Madison (1803), conhecidíssimo de todos. Não estava proibido na Constituição que a Suprema Corte apreciasse recursos. Pois é. Na Colômbia também não estava proibido que juízes... E a lei brasileira não proíbe que um cotista reivindique a segunda ou terceira vaga... É que o direito é um fenômeno bem mais complexo que fazer um jogo "lego".
Mas, mesmo assim, vamos lá: mesmo que fosse possível uma segunda ou terceira graduação por cotas (vejam, dinheiro público!) para a mesma pessoa, por si só essa lei já careceria de uma análise à luz da jurisdição constitucional, pela simples razão de que existem milhares ou milhões de pessoas sem nenhuma graduação. Essa lei seria inconstitucional.
De mais a mais, de qualquer maneira não poderia ser o reitor da própria Universidade o beneficiado desse privilégio (inconstitucional, por óbvio) — pela simples questão que haveria conflito de interesses. Se pode cursar mais de uma graduação pelo mesmo tipo de cota utilizada na primeira, então, por óbvio, a preferência — porque é dinheiro público — deverá ser dada, em edital universal, para quem jamais cursou uma universidade. Aqui, sim, para não se fazer uma odiosa discriminação.
Direito é um sistema de regras e princípios. E, fundamentalmente, o direito deve ser aplicado por princípio. Que é arché. Que fundamenta. Que está no início de tudo. D’onde ausência de princípio é anarché.
Fonte:Conjur - 05/04/2022 - 09h:25
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