Ronaldo Christofoletti: “Mesmo que o oceano volte para a sua temperatura normal agora, é sabido que, pelas mudanças climáticas, eventos extremos como esse do Rio Grande do Sul vão continuar aumentando”. Foto: Arquivo pessoal
No último dia 13, a água do mar em Fernando de Noronha registrou incríveis 33 graus Celsius. O que pode ser comemorado por turistas ávidos pelo mergulho em um paraíso natural é uma má notícia para o planeta e está por trás da maior tragédia ambiental do Rio Grande do Sul. A alta temperatura das águas no litoral brasileiro reflete a febre que atinge o oceano há 14 meses e teve impacto direto na maior tragédia ambiental do Rio Grande do Sul. O alerta é feito pelo biólogo Ronaldo Christofoletti, professor do Instituto do Mar da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) na Baixada Santista.
“O oceano está com 0.4 a 0.5 grau acima da sua temperatura média esperada. Se fosse comparar com o corpo humano, seria o equivalente a estarmos com 37.7 ou 37.8 graus, o que é febre. Um oceano febril é mais água evaporando, ele absorve menos temperatura. Agora vamos olhar esse cenário: mais água na atmosfera, mais energia e mais calor, uma bolha de ar quente e uma bolha de ar frio brigando, isso levou a muito mais chuva [no Rio Grande do Sul]”, explica Christofoletti em entrevista exclusiva ao Congresso em Foco.
Segundo o professor, o aquecimento do oceano, causado pelo excesso de emissão de gás carbônico, é fator fundamental para a compreensão das intensas chuvas que assolam o Rio Grande do Sul desde o início do mês.
“Ele foi o responsável pela evapotranspiração, pela água, e está sendo responsável por impedir que a água dos rios desemboque no mar. É preciso reconhecer a complexidade desse sistema e o quanto isso impacta nas vidas, na economia, na perda da agricultura, na perda das casas, na perda cultural. Em termos ambientais, a origem da catástrofe no Rio Grande do Sul está no oceano e se soma com a urbanização e impacto antrópico [relativo à ação humana]”, afirma.
Christofoletti defende a adoção de medidas imediatas sob o risco de repetição de tragédias como a que já deixou mais de 165 mortos e 581 mil desalojados em território gaúcho. Também cobra que as autoridades deem ouvidos à ciência.
“A gente publicou nessa mesma época, em maio do ano passado, um dado científico que mostrava a variação da temperatura do ar, os picos extremos de temperatura na costa brasileira. A gente já havia mostrado em 2023 que, no litoral gaúcho, nos últimos 40 anos, tinha dobrado a frequência de eventos extremos de temperatura. Os dados estão aí postos”, conta o biólogo.
Além de reduzir a emissão de gás carbônico, o que passa pela redução do desmatamento e de gases poluentes e por uma nova matriz energética, o Brasil precisa repensar suas cidades. “O que nós precisamos, como resposta imediata, é adaptar as nossas cidades. É entender como é que nós vamos ter cidades que vão receber esses eventos extremos de temperatura ou de chuva. Como elas vão estar preparadas para lidar com isso. Alguns prefeitos começaram a mencionar que bairros de suas cidades foram totalmente alagados. Alagados até o teto. Já estão pensando em realocar em outras áreas. Esses prefeitos estão corretos em trazer esta discussão”, analisa.
O professor também defende respostas urgentes do Congresso Nacional. Uma delas, segundo ele, deveria ser a aprovação do Projeto de Lei 6969/2013, mais conhecido como o PL do Mar. Há menos de duas semanas, a Câmara foi palco de um ato da Frente Parlamentar Ambientalista, liderado pelo deputado Túlio Gadêlha (Rede-PE), relator da proposta.
“Agora é o momento de ter essa legislação, que vai nos trazer o arcabouço jurídico legal. Ela é muito simbólica neste momento. Ela é uma resposta do Legislativo à sociedade brasileira, reconhecendo o papel do oceano na regulação climática e no bem-estar das nossas vidas. Todo deputado, toda deputada, todo senador ou senadora que quer cuidar do seu eleitor, neste momento, tem de cuidar do oceano”, defende Christofoletti.
O PL do Mar abrange o Bioma Marinho Brasileiro, definido como o conjunto de ecossistemas marinhos presentes nas zonas costeiras, na plataforma continental, nas ilhas, no talude e no mar profundo. A proposta unifica a legislação brasileira em torno do assunto. O mar é o maior regulador de temperatura do planeta, e onde mais carbono é sequestrado.
Veja a íntegra da entrevista do professor Ronaldo Christofoletti, do Instituto do Mar, da Unifesp:
Congresso em Foco – Como o aquecimento do oceano pode ter contribuído para a tragédia no Rio Grande do Sul?
Ronaldo Christofoletti – Esse evento extremo no Rio Grande do Sul tem origem em uma série de fatores. Entre os principais, choveu muito. E choveu muito porque tinha uma massa de ar quente do centro do Brasil e uma massa de ar frio que vinha da Antártica, que ficou presa ao sul do Rio Grande do Sul. Essas duas massas ficaram brigando, como se fosse uma luta de boxe. No meio delas estava o Rio Grande do Sul. Além disso, toda a umidade que vem da Amazônia pela atmosfera, os chamados “rios voadores”, acumulou, pois a massa de ar quente e seco não permitiu chuva no Centro-Oeste. Consequentemente, concentrou a umidade no sul entre as massas de ar quente e frio, e fez com que chovesse muito mais do que deveria. Mas de onde vem a água da chuva? Além dos rios voadores, temos a evaporação da água que vem pelo oceano, que cobre 70% do planeta. Imagina a nossa casa com 70% de água no chão. Para piorar a situação, o oceano está há 14 meses febril. Essa é a lógica. Ele está com 0.4 a 0.5 grau acima da sua temperatura média esperada. Se fosse comparar com o corpo humano, seria o equivalente a estarmos com 37.7 ou 37.8 graus, o que é febre. Um oceano febril é mais água evaporando, ele absorve menos temperatura. Agora vamos olhar esse cenário: mais água na atmosfera, mais energia e mais calor, uma bolha de ar quente e uma bolha de ar frio brigando, isso levou a muito mais chuva.
Se não bastasse isso, a água está demorando a baixar no Rio Grande do Sul. Por quê?
Uma vez que choveu, essa água agora está no chão do Rio Grande do Sul. Ela vai percorrer os rios e cair no oceano. No caso do Rio Grande do Sul ela veio pelos rios e chega a Porto Alegre. Ela cai na Lagoa dos Patos e de lá ela vai até o sul do estado para chegar no oceano. Nós tínhamos uma corrente oceânica e de ventos que estava impedindo a água de sair da lagoa. Por isso, continuou represando. Se a gente olhar o cenário da catástrofe, do ponto de vista ambiental, o oceano foi o responsável por iniciar o processo, regulando as massas de ar. Ele foi o responsável pela evapotranspiração, pela água, e está sendo responsável por impedir que a água dos rios desemboque no mar. É preciso reconhecer a complexidade desse sistema e o quanto isso impacta nas vidas, na economia, na perda da agricultura, na perda das casas, na perda cultural. Em termos ambientais, a origem da catástrofe no Rio Grande do Sul está no oceano e se soma com a urbanização e impacto antrópico [relativo à ação humana].
Com essa febre do oceano, novas tragédias como a do Rio Grande do Sul podem se tornar mais frequentes?
Infelizmente, sim. Esse estado febril que a gente está tendo constante por 14 meses não era previsto pela ciência. Esperava-se que houvesse picos, que fossem dias ou semanas de uma temperatura acima da média. Jamais se imaginou 14 meses consecutivamente nessa temperatura. Logo, as tragédias podem se tornar mais frequentes, especialmente em áreas urbanizadas e com perda de ambientes naturais.
Esse aumento se dá só na costa brasileira?
Esse dado é uma média geral. A gente pega o oceano todo e o transforma em uma média de temperatura por dia. Então significa que tem áreas do mundo muito mais quentes e áreas que estão mais frias. Ele está desregulado, mas a média está acima. O Oceano Atlântico não está no resfriado. Ele está aquecido, principalmente, no Sudeste, no Nordeste e no Norte do país. A temperatura das águas está muito acima do esperado, em alguns lugares 2 a 3 graus acima, o que seria o equivalente ao ser humano estar com 41 a 43 de febre. Em Fernando de Noronha ela chegou a registrar 33 graus, o que é absurdamente acima da média. Estamos vendo o branqueamento dos corais em toda a costa brasileira. Além do impacto visual claro, tem todo um impacto na reprodução dos recursos pesqueiros. Tem todo um impacto nos microrganismos dos vírus e bactérias, porque o oceano tem vírus e bactérias que a gente desconhece e sequer sabemos o que está acontecendo ali. Então, no nosso litoral, esse é o impacto. O Rio Grande do Sul tem uma característica de águas mais frias por estar mais próximo da Antártica, mas, quando a gente olha o mapa e a temperatura, vê que, desde há muitos meses, acentuadamente desde o início de maio, ela também está acima da temperatura média. Essa é a força motriz.
O que fazer diante de um cenário como esse do Rio Grande do Sul?
Neste momento, temos de salvar as vidas e reestruturar da melhor forma possível, com soluções baseadas na natureza e já iniciar o processo de pensar a reconstrução com um olhar para o futuro e com base na ciência. Mas nós temos a obrigação de entender como isso surgiu e qual a probabilidade de isso continuar existindo e o que nós podemos fazer para ser diferente. Respostas precisam ser dadas por governos em todos os níveis – municipais, estaduais e federal. É preciso olhar a questão de mitigação e adaptação ao clima. Mesmo que o oceano volte para a sua temperatura normal agora, é sabido que, pelas mudanças climáticas, eventos extremos como esse do Rio Grande do Sul – o terceiro no prazo de um ano – vão continuar aumentando. Uma das respostas imediatas é garantir a conservação e restauração de ambientes naturais, eles são uma defesa natural contra eventos extremos. Por exemplo, alterações na legislação que flexibilizam a conservação ambiental não podem ser aprovadas, como a PEC 03/22 em tramitação no Senado, uma Proposta de Emenda à Constituição que quer privatizar Terrenos de Marinha. No formato que tramita, esta PEC não considera apenas as áreas ocupadas antes da existência de legislações ambientais costeiras, que são as áreas de uso que geram conflitos. A PEC 03/22 está redigida de forma que flexibiliza o uso de todos os Terrenos de Marinha, ou seja, de todas as áreas naturais costeiras preservadas que são essenciais na mitigação e resiliência climática e a alteração do seu uso poderá ampliar os desastres naturais para a sociedade.
Esses alertas foram ignorados pelas autoridades brasileiras?
A gente publicou nessa mesma época, em maio, um dado científico que mostrava a variação da temperatura do ar, os picos extremos de temperatura na costa brasileira. A gente já havia mostrado em 2023 que, no litoral gaúcho, nos últimos 40 anos, tinha dobrado a frequência de eventos extremos de temperatura. Os dados estão aí postos. O que nós precisamos, como resposta imediata, é adaptar as nossas cidades. É entender como é que nós vamos ter cidades que vão receber esses eventos extremos de temperatura ou de chuva. Como elas vão estar preparadas para lidar com isso. Alguns prefeitos começaram a mencionar que bairros de suas cidades foram totalmente alagados. Alagados até o teto. Já estão pensando em realocar em outras áreas. Esses prefeitos estão corretos em trazer esta discussão.
Por quê?
Porque, se vierem novos eventos extremos, no curto prazo, essas áreas serão alagadas novamente. A ciência mostra que virão outros eventos. Se demorou 80 anos entre o último grande evento e agora, não vai demorar 80 anos para o próximo. Então como que a gente realoca os bairros, como que a gente refloresta as cidades? Como a gente pensa nesse fluxo dos rios para que quando as chuvas vierem mais intensas não haja um impacto humano tão grande. Isso tem de ser feito em curto prazo, mas só vai reverberar em médio prazo. E por que o oceano está mais quente, tem mais chuvas e mais temperatura? Porque é muito gás carbônico na atmosfera. Então como podemos passar pela transição climática? É isso que a gente ouve todo ano nas COPs. É a discussão do Acordo de Paris, em que os governos acordaram fazer uma transição energética para minimizar a emissão de gases. O Rio Grande do Sul nos mostra que, se não diminuirmos o gás, isso vai continuar ocorrendo. Então esses processos precisam ser iniciados, alguns já foram fortalecidos, agora. É importante que toda a sociedade, e em especial o legislativo, deem atenção às pautas de conservação ambiental e desenvolvimento sustentável, e não ampliem a flexibilização de uso de áreas naturais, que são essenciais no combate às mudanças climáticas. Estes alertas têm sido trazidos há anos, e mais do que nunca é importante que sejam ouvidos e respeitados na tomada de decisão.
A Frente Parlamentar Ambientalista pressiona pela aprovação da Lei do Mar, projeto que está engavetado na Câmara, embora esteja pronto para votação em plenário. Como ela pode auxiliar no enfrentamento do aquecimento do mar?
A Lei do Mar nos ajuda a ter um arcabouço legal para regulamentar as atividades do oceano e fazer ele sair desse estado febril. O oceano saudável vai regular melhor o clima do planeta e vai minimizar esses eventos, que vão aumentar em frequência. Enquanto o oceano não estiver saudável, o clima vai estar com uma saúde ainda pior. O resultado disso nós estamos vendo. A Lei do Mar vai nos dar todo o respaldo necessário. Ela foi construída pela sociedade para que todos os setores envolvidos com o oceano possam fazer o melhor uso sustentável desse espaço, fazendo com que ele fique saudável. Isso vai minimizar os impactos do que a gente vê agora. Esse projeto foi construído com toda a sociedade. A gente sempre precisa destacar isso. Ao longo desses mais de dez anos de discussão, a sociedade civil participou em todos os momentos das discussões iniciais da construção da lei. É um tema muito complexo. Envolve desde a extração de petróleo à pesca artesanal. Nós chegamos a um texto sobre o qual existe consenso. Mesmo que nem todos estejam plenamente satisfeitos, existe o consenso de reconhecer que o processo é tão complexo e que a Lei do Mar, tal qual está, vai nos ajudar para que todos possam caminhar em seguida da melhor forma possível. Agora é o momento de ter essa legislação, que vai nos trazer o arcabouço jurídico legal. Ela é muito simbólica neste momento. Ela é uma resposta do Legislativo à sociedade brasileira, reconhecendo o papel do oceano na regulação climática e no bem-estar das nossas vidas. Todo deputado, toda deputada, todo senador ou senadora que quer cuidar do seu eleitor, neste momento, tem de cuidar do oceano.
Fonte: Edson Sardinha/Congresso em Foco - 28/05/2024 às 09h:10
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